A saída é pelo Sul
Ucranianos partem do diagnóstico de que os povos que sofreram formas de opressão várias são mais equipados para entender seus esforços por autonomia
No final de novembro aconteceu em Kiev, capital da Ucrânia, a segunda conferência “Crimeia Global: Entendendo a Ucrânia pelo Sul”. Fui ao evento a convite da Missão do Presidente da Ucrânia na Crimeia – instituição com escritórios em Kherson e Kiev, mas que, a partir de 2022 só opera de Kiev. O diagnóstico de base do evento foi: no passado, os ucranianos negligenciaram laços com o Sul Global – rótulo com o qual eles mesmos se identificam – e agora precisam construir pontes. É uma luta por sobrevivência, literalmente.
O Norte Global, por sua vez, não entregou o apoio necessário nesse meio tempo. Depender materialmente desses países e suas instituições levou a Ucrânia à situação catastrófica de hoje. Nenhum deles conseguiu inibir ou remediar essa guerra ilegal e injusta, tampouco assegurar a segurança energética e alimentar ao mundo.
Se, à primeira vista, os países do Sul Global não podem oferecer capital material, eles certamente podem engrossar o capital político ucraniano. Primeiro porque podem se posicionar em prol da Ucrânia na sua política externa – e ela vai muito além dos fóruns internacionais de cartas marcadas, em que a Rússia sempre abusará de seu poder de veto e desfilará desrespeito às normas regentes. Alternativas plausíveis e em curso são cúpulas e iniciativas transnacionais que contornam esses centros de poder desmoralizados.
Também recentemente, por exemplo, a Ucrânia realizou a Cúpula Grain from Ukraine, uma iniciativa do governo para promover a segurança alimentar no mundo. Além do presidente Volodymyr Zelensky, participaram chefes de Estado, bem como membros de instituições europeias e jornalistas de todo o mundo, em especial dos países africanos. Integraram a rodada de perguntas com o presidente repórteres de Gana, Guiné, Congo, Camarões, Costa do Marfim, Nigéria, África do Sul, Senegal, Tanzânia, Chade, Quênia e Brasil.
Em segundo lugar, os países do Sul Global conseguem prover redes concretas de solidariedade pelas margens – o que pode também se provar apoio material. Igualmente aqui os ucranianos partem do diagnóstico de que os povos que sofreram formas de opressão várias são mais equipados para entender seus esforços por autonomia. Os países marginais que foram sufocados pelas tesouras indômitas do Banco Mundial e do FMI podem ajudar os outros a navegar por dificuldades político-econômicas. Além disso, podem adquirir um senso mais apurado sobre o apagamento dos povos originários ucranianos – notadamente os tártaros da Crimeia – e sobre a “brutalidade jardim” patrocinada por um mundo que virou as costas para uma agressão injustificada já em 2014.
Entender esses esforços todos implica combater os oceanos de desinformação a respeito da guerra. Afinal, uma guerra não precisa só de armas para acontecer; ela precisa também de cabeças no front da disputa pelos “corações e mentes” – como já realizado em diversas coberturas complacentes mídias afora, tentando justificar o injustificável, na medida do impossível. Não raro os maiores hubs de desinformação russa se espalharam pela África e América Latina.
Fora isso, entendê-los envolve criar formas de compartilhamento de expertise, de know-how e know-where. Se queremos ir adiante, precisamos historicizar e espacializar nossos conhecimentos. Compartilhar experiências com tecnologias, inovações democráticas, agricultura. A Ucrânia tem iniciativas várias de participação digital dos cidadãos e de uso de tecnologia de ponta para a produção de grãos (mesmo depois da guerra, o país ainda exporta 50% do volume total de óleo de girassol do mundo, 10% do total de trigo e 15% do total de milho).
Por último, o que acontece hoje na Ucrânia deveria nos preocupar não só porque somos solidários à causa ou comprometidos com uma política externa inclusiva e dialógica, mas também porque estamos todos umbilicalmente conectados. Ligados pelo desejo de um futuro melhor e compartilhado. E um tal futuro não é possível em um presente que continua a depositar minas em florestas, destruir infraestrutura crítica e queimar toneladas de combustíveis fósseis em máquinas de guerra vorazes. O meio ambiente não aguenta mais guerras.
Os desafios, em suma, não são poucos. Mas é preciso pensar novas e criativas maneiras para lidar com eles. Elas passam necessariamente pelo Sul Global.
Marina Slhessarenko Barreto é pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia no Cebrap, bolsista da Fundação Rosa Luxemburgo e doutoranda em Teoria Política pela Universidade de São Paulo.