A tempestade perfeita
A destituição de Pedro Castillo abriu um novo capítulo na crise política peruana. A fragmentação do sistema partidário e o comportamento antidemocrático da oposição somaram-se à inexperiência do presidente. Nada indica que a convocação de novas eleições devolverá a estabilidade perdida há uma década
O lugar comum é uma parada que é sempre aconselhável evitar. No entanto, episódios como o protagonizado pelo agora ex-presidente peruano Pedro Castillo se encaixam tão bem na máxima de que “a história se repete duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa” que omitir a referência ao 18 de Brumário poderia ser lido como uma extravagância. A tragédia que Castillo evocou tacitamente em 7 de dezembro ao ler um decreto que dissolvia o Congresso, reestruturava o Judiciário e declarava um “governo de exceção” emulou o autogolpe de Alberto Fujimori levado a cabo em 1992. Episódio que inaugurou, entre outras coisas, um longo período do terrorismo de Estado.
A unânime desobediência de todos os níveis de poder ao decreto de Castillo expôs a farsa de uma iniciativa que instantaneamente se desfez no ar, embora quatro horas tenham se passado desde a leitura até que Castillo se transformasse em ex-presidente e fosse detido pela sua própria guarda. Com certeza ainda vamos demorar algum tempo para entender o porquê de uma ação tão improvisada e disparatada. Mais ao alcance das mãos está a possibilidade de responder à pergunta de se a jornada governamental do ex-presidente peruano poderia ter terminado de outra forma.
Ainda que a tentativa de Castillo tenha chegado a um cúmulo de trapalhada difícil de comparar com outros eventos políticos de que se tenha registro, o contexto em que se produziu guarda uma óbvia semelhança com situações que foram ou estão sendo vividas em outras partes. A parcela do mundo em que vigoram constituições democráticas observa hoje em dia diferentes sistemas políticos passarem por uma metamorfose e suportarem tensões das quais nada garante que sairão ilesos, se por isso entendermos continuarem a ser democracias num sentido amplo e substantivo. Esses fatores parecem se apresentar no Peru como uma tempestade perfeita interminável.
Entre os países sul-americanos que sofreram golpes de Estado militares nas décadas de 1960 e 1970, o Peru foi o primeiro a recuperar a democracia, em 1980. No entanto, também foi o mais rápido a voltar a um regime autoritário, após o autogolpe de Alberto Fujimori, que havia sido eleito democraticamente. Estamos falando do fujimorato, que começou em 1992 com o que seria um breve período de governo de um homem só sem Congresso, mas que se estendeu até o final de 2000, marcado pela repressão estatal ilegal e clandestina. Foi também um período de mutação do sistema partidário: se no primeiro turno das eleições de 1990, em que Fujimori havia sido eleito democraticamente presidente, o total dos partidos tradicionais chegou a dois terços dos votos, em 2000 eles somaram cerca da metade.
As promessas não cumpridas por essas formações no período anterior e a debilidade da oposição ao regime de Fujimori foram deficiências próprias que acabaram diminuindo sua representatividade. No entanto, Fujimori empurrou os partidos tradicionais de fato para o ostracismo corrompendo-os, como assinalou César Arias Quincot,[1] isolando-os cada vez mais dos cidadãos e demonizando-os com seu monopólio dos meios de comunicação. A desintegração do velho sistema partidário atingiu um novo ápice nas eleições de 2021, quando, de todas as forças tradicionais, apenas um de seus expoentes, a centrista Acción Popular, alcançou uma votação com alguma significância, pouco mais de 9% dos votos.
Esse processo de liquefação se acelerou de forma espetacular a partir da eleição de Pedro Pablo Kuczynski (PPK) em 2016: contando com ele, nestes últimos seis anos, a República do Peru teve sete presidentes. Condição para que isso ocorresse foi a existência de um Congresso muito fragmentado, em que o apoio ao presidente sempre foi minoritário, com a bancada governista abaixo do número mínimo necessário para impedir a formação de maiorias absolutas como as exigidas para declarar vaga a Presidência; o que aconteceu com PPK, com seu sucessor Martín Vizcarra e agora com Castillo, lista à qual deve se acrescentar a renúncia de Manuel Merino.
Uma mostra da vertigem com que ocorreram essas múltiplas sucessões presidenciais antecipadas é dada pelo fato de que a obra acadêmica de referência sobre a destituição de líderes pelo Congresso, escrita por Aníbal Pérez-Liñán em 2009,[2] não inclui em seus estudos nenhum caso do Peru. Isso não quer dizer que as coisas corressem bem antes: os três presidentes imediatamente posteriores a Fujimori acabaram sendo condenados ou presos por corrupção (por receber propina da transnacional brasileira Odebrecht), incluindo o duas vezes presidente Alan García, que cometeu suicídio no dia em que foi transferido para a prisão.
A chegada de Castillo ao governo repetiu quase como uma cópia em carbono os elementos da eleição de PPK cinco anos antes: apoio de menos de um em cada cinco peruanos no primeiro turno, margem de vitória de menos de 0,25% sobre a eterna candidata Keiko Fujimori e um bloco governista com bem menos de um terço das cadeiras no Congresso unicameral.
Inexperiência e difamação
Além desses fatos concretos, outra série de elementos definiu a fraqueza congênita de Castillo. A primeira, que explicaria em grande parte o seu fraco desempenho, é a falta de experiência (poderia se dizer até de familiaridade) de Castillo na gestão de assuntos governamentais. Antes de ser candidato à Presidência, ele havia concorrido a apenas outro cargo executivo, em 2005: a prefeitura de Anguía, cidade do norte do país com 4.500 habitantes, para a qual não foi eleito. Em termos de vivência partidária, Castillo pertenceu desde 2005 ao partido centrista Perú Posible, do ex-presidente Alejandro Toledo, integrando sua direção departamental em Cajamarca até 2017, quando perdeu seu status eleitoral por não atingir 5% dos votos em todo o país.
Castillo desempenhou papel mais destacado no sindicalismo docente, onde teve responsabilidades de liderança nos níveis provincial, departamental e nacional. Em 2017, ganhou notoriedade nacional durante uma greve de professores que durou quase um mês e conseguiu arrancar melhores salários do governo de PPK. Nessa época, Castillo liderava um movimento popular de oposição à direção do sindicato nacional de professores e destacou-se como agitador e organizador, embora nunca tenha tido responsabilidades estáveis de direção da organização sindical, além de um papel de relevo na organização de greves e protestos.
Junto com o modesto reconhecimento nacional que obteve com a greve de 2017, vieram as primeiras tentativas de espalhar uma lenda sombria sobre Castillo. Em um país que viveu durante doze anos a experiência traumática da violência insurgente do Sendero Luminoso (SL), as tentativas de associar todo ativismo social ao terrorismo são uma forma de macarthismo que tem um nome propriamente peruano: terruqueo.
No caso de Castillo, foi o governo de PPK que denunciou sua associação com os senderistas, mais especificamente com o Movimento pela Anistia e os Direitos Fundamentais (Movadef), organização dedicada a pedir liberdade aos presos do SL. O governo (e alguns sindicalistas questionados pela corrente sindical basista de Castillo) sustentava que os membros do Movadef eram ativos ou influenciavam os ativistas sindicais que participavam com o líder de Cajamarca na organização de greves. Foi inútil para Castillo sustentar (com abundantes testemunhos em seu apoio) que durante a fase ativa do Sendero Luminoso ele fizesse parte das “rondas” de autodefesa camponesa, que surgiram justamente para combater o roubo de gado nas montanhas e que posteriormente enfrentaram violentamente o grupo guerrilheiro. O estigma sobre Castillo funcionou com grande eficácia, facilitando a narrativa antiterrorista de Keiko durante a campanha eleitoral do segundo turno de 2021 e servindo de álibi para os setores de direita e extrema-direita que tinham, como única pauta no Congresso desde a posse de seu governo, a destituição do presidente (vacância, segundo a definição da Constituição peruana).
Em um contexto diferente do peruano, algumas dessas deficiências poderiam ter sido compensadas por uma organização política estruturada e enraizada, que também teria servido para oferecer uma história alternativa ao terruqueo. No entanto, o veículo eleitoral que estava disponível para Castillo era o Perú Libre (PL), um grupo de base regional do departamento de Junín que só em 2016 obteve status legal para competir em nível nacional – embora Castillo tenha sido o primeiro e (até agora) único candidato presidencial. O partido não é descendente de nenhuma das muitas famílias da esquerda histórica do Peru, mas sim de uma organização personalista centrada em seu líder Vladimir Cerrón. O “marxismo-leninismo-mariateguismo” que ele proclama como ideologia é antes a apropriação rudimentar da propaganda do Partido Comunista Cubano, à qual Cerrón foi exposto quando era bolsista de Medicina em Camagüey. Dessa leitura do marxismo emana um programa claramente conservador na esfera social e estatista em seu aspecto econômico.
Castillo tornou-se candidato presidencial do PL por causa de uma circunstância fortuita: Cerrón, que foi presidente regional de Junín entre 2010 e 2014, não pôde concorrer por ter sido condenado em um caso de corrupção. Com os mesmos critérios que recrutou Castillo, Cerrón incluiu a hoje presidenta Dina Boluarte como candidata à vice, mas não sem antes tentar ser admitido para integrar a chapa (que no Peru é composta por três nomes).
Sem direção
A fluidez do sistema político peruano, a fragmentação parlamentar e a consequente propensão a destituir presidentes – de qualquer coloração que sejam – se articulam como uma estrutura que impõe limites muito rígidos às possibilidades de ação de qualquer presidente. As margens de manobra são dolorosamente escassas desde o início. Com uma legitimidade de origem muito apertada, o roteiro de Castillo deveria ter sido meticulosamente direcionado para alcançar rapidamente a legitimidade da gestão. Essa margem de ação foi rifada de forma espetacular por Castillo e Cerrón, sem colocar um à frente do outro hierarquizando responsabilidades.
Em pouco menos de um ano e meio no cargo, Castillo nomeou cerca de setenta ministros, em uma porta giratória de substituições que não parou desde que ele demitiu seu primeiro-ministro inaugural, Guido Bellido, apenas dois meses depois de nomeá-lo para o cargo. Enquanto a oposição no Congresso seguia o manual, apresentando um primeiro projeto de declaração de vacância da Presidência logo no início do segundo trimestre de um mandato constitucional de cinco anos, Castillo e Cerrón se envolveram em uma briga para definir o homem forte do governo. Cerrón cavou as trincheiras mais profundas em uma guerra civil contra os “caviares”, a esquerda democrática que poderia ter ajudado a construir (reunindo também componentes do centro) uma maioria precária no Congresso.
Castillo primeiro tentou contemplar Cerrón com Bellido, um ortodoxo da versão cerronista do marxismo. Depois o substituiu por Mirtha Vásquez, da Frente Amplio (centro-esquerda), e mais tarde por Héctor Valer, um ex-membro do Partido Aprista Peruano, que havia ingressado na ultradireitista Renovación Popular de Rafael López-Aliaga, atual prefeito de Lima. Castillo não foi capaz de governar com o partido que expressava os frágeis apoios do primeiro turno eleitoral, nem consolidar a coalizão de centro-esquerda que expressava aquilo que o levou à vitória no segundo turno, muito menos formar uma supermaioria que abarcaria personalidades de todo o espectro político.
Em meio a essas sucessivas estratégias fracassadas, Castillo não só deixou todos descontentes (ao ser afastado, não era mais membro do Perú Libre, de onde Cerrón o expulsara), como se limitou a montar equipes de gestão muito frágeis com pessoas que tinham com ele laços primários (familiares ou sociais) e não políticos. Por essa janela de nepotismo e clientelismo que misericordiosamente poderíamos considerar não eletivos, a má gestão administrativa e a corrupção se insinuaram, abrindo uma segunda frente para seu governo: a das investigações judiciais. No entanto, mesmo tendo construído diligentemente as condições para um fracasso espetacular, ao mesmo tempo em que o fujimorismo e os demais grupos de direita trabalhavam incansavelmente para derrubá-lo, Castillo tornou-se para muitos peruanos, especialmente fora de Lima, um símbolo do orgulho cholo. Ele alcançou assim uma identificação que emanava mais de uma reação ao que o racismo e o elitismo de Lima diziam sobre ele, do que de apoio a uma ação governamental completamente indiscernível em termos de intenções ou resultados.
A substituta de Castillo, Dina Boluarte, inscreve sua ação em coordenadas estruturais idênticas àquelas que tornaram o governo de Castillo uma missão impossível. Ela compartilha com seu antecessor a legitimidade de origem de ter recebido o voto popular como sua companheira de chapa, mas quando se trata de construir a legitimidade da gestão ela enfrenta desafios diferentes: Boluarte parte livre da influência de Cerrón (que também a expulsou do Perú Libre) e com certa boa vontade no que pode vir a ser uma maioria parlamentar, porém, enfrenta um protesto popular ao qual tem respondido – seja ela ou o autogoverno das Forças Armadas e de segurança – com uma repressão violenta que provocou várias mortes. Os setores populares mobilizados enunciam uma agenda que vai do “que se vayan todos” à ativação do poder constituinte. O cenário mais provável? Uma nova eleição presidencial antecipada em que a escolha será feita a partir do mesmo baralho de 2021, mas sem Castillo nem Boluarte.
Gabriel Puricelli, sociólogo, é coordenador do Programa de Política Internacional do Laboratório de Políticas Públicas (LPP), de Buenos Aires.
[1] César Arias Quincot, “Perú: El gélido invierno del fujimorato” [Peru: o gélido inverno do fujimorato], Nueva Sociedad, Caracas, jan-fev. 2001.
[2] Juicio político al presidente y nueva inestabilidad política en América Latina [Julgamento político do presidente e nova instabilidade política na América Latina], Fondo de Cultura Económica, 2009.