A universidade pública no governo de Gabriel Boric
Nesse cenário renovado, o sistema universitário deve refletir e substituir os ajustes e reformas que vêm sendo feitos no sistema educacional desde a década de noventa até hoje, caso contrário continuará sendo tutelado pelos porta-vozes que rendem homenagem a intelectuais neoliberais, à política conservadora e às premissas do mercado
Em setembro, a edição chilena de Le Monde Diplomatique reproduziu o discurso que o presidente Salvador Allende proferiu na véspera da posse, no qual, além de saudar com emoção a multidão que comemorava seu triunfo, também destacou “quão extraordinariamente significativo é que eu possa me dirigir ao povo do Chile e ao povo de Santiago aqui da Federação dos Estudantes! Isso assume um valor e um significado muito amplo” e acrescentava que “nunca um candidato que venceu pela vontade e pelo sacrifício do povo usou uma tribuna que tivesse uma transcendência tão grande. Porque todos nós sabemos. A juventude da pátria foi a vanguarda nessa grande batalha, que não foi a luta de um homem, mas a luta de um povo; ela é a vitória do Chile, conquistada de forma limpa esta tarde”. Assim, quase 52 anos depois, uma série de analogias liga a vitória eleitoral de Gabriel Boric à chegada da Unidade Popular. Para ambos os governos, a juventude nacional e a juventude universitária em particular ocupam uma posição de liderança nas transformações políticas e sociais do Chile.
O novo governo de Gabriel Boric vem para acabar com os governos de transição. O descontentamento iniciado pelos “pingüins” de 2006[1] hoje põe em xeque a sacrossanta aliança entre o modelo de desenvolvimento neoliberal e uma prática política de acordos mesquinhos que há décadas prejudica a população mais desfavorecida de nossa sociedade. Hoje, é possível que, liderado pela força da juventude, o mesmo país que há 40 anos é o exemplo mundial das políticas mercantis, se torne um novo laboratório para o aperfeiçoamento da democracia representativa e do desenvolvimento e do crescimento sustentáveis.
As esperanças de mudança e as expectativas associadas à nova administração também são precedidas de entraves e resistências. Por um lado, a extrema direita chilena e a internacional se unirão para torpedear e caluniar o processo transformador, diante do olhar instrumental e cúmplice do “tradicional” ou liberal. Junto a isso, o contexto nacional e o internacional antecipam uma limitação fiscal que, sem dúvida, produzirá frustração em parte da população. A tudo isso se somarão as birras do clientelismo político a que o sistema de partidos políticos estava acostumado. Dessa forma, é muito provável que o novo presidente se veja permanentemente diante de “fogo amigo” que clamará por uma fatia do poder. Nesse contexto, a universidade pública não pode se resignar a ser exclusivamente um reservatório de intelectuais e profissionais disponíveis para serem convocados pela necessidade dos governos no poder, tampouco pode ser um refúgio momentâneo para políticos ou profissionais demitidos pelas novas administrações públicas. As universidades estatais não são “passarelas da moda” nem “palácios de inverno”. Apesar de ser impossível terminar de erradicar essas práticas, as universidades estatais devem se concentrar em analisar seus processos de formação acadêmica, para reconhecer os mecanismos de qualidade associados aos critérios neoliberais que, entre outras coisas, reduziram seu protagonismo no que se refere a conectar-se com as transformações sociais e os enclausuraram em processos tautológicos de gestão.
Nesse cenário renovado, o sistema universitário deve refletir e substituir os ajustes e reformas que vêm sendo feitos no sistema educacional desde a década de noventa até hoje, caso contrário continuará sendo tutelado pelos porta-vozes que rendem homenagem a intelectuais neoliberais, à política conservadora e às premissas do mercado. Apesar das manifestações e expressões de desacordo que é possível ver de tempos em tempos nas mobilizações e protestos estudantis, nas salas de aula continua sendo promovido um perfil de graduados atrelados a uma sociedade de mercados desregulados, a uma cidadania indiferente à política, e treinados para a competição individual, para o prazer do consumo e para a submissão ao trabalho.
Nessa fase histórica, a universidade pública pode novamente se conectar com a nova questão social, fortalecendo mecanismos que promovam o diálogo para a transformação, e que possam denunciar o uso da violência e da repressão e acabar com ele. Essa universidade pode colaborar ativamente para a construção de um novo Pacto Social, que, juntamente com suas atividades de formação académica, esteja ligado a um conjunto de ações concretas e imediatas, que, juntamente com seu trabalho cotidiano, assumam um papel permanente que busque justiça e coesão social. Para enfrentar um período de transformações, as universidades estaduais são um dos poucos atores sociais que ocupam um lugar privilegiado na compreensão e no diálogo com os atores envolvidos com os processos de mudança que devem ser realizados para os ajustes necessários do ponto de vista cultural, social e econômico. Diferentemente de outras instituições, as universidades públicas estatais ainda são amadas, reconhecidas e valorizadas pelos cidadãos. Elas são um espaço legítimo e facilitador do debate e dos acordos transversais que o Chile exige. Por isso, as instituições estatais de ensino superior devem oferecer às novas autoridades políticas e administrativas e à sociedade em geral todas as capacidades de que dispõem para organizar e facilitar sistematicamente os mecanismos e procedimentos para avançar nas transformações exigidas pela nossa cidadania. As universidades públicas estatais enfrentam, tal como fizeram no final da década de 1960, a oportunidade histórica de se tornarem as facilitadoras do novo pacto social. São praticamente as últimas instituições que podem se unir para substituir a lógica neoliberal da competição e do consumo pela lógica da colaboração. Não podemos deixar passar a possibilidade de construir uma sociedade mais justa, bela e sustentável com base na organização dos debates e dos acordos que precisam ser identificados para responder à diversidade da inquietação social construída na ditadura e contida por 30 anos de governos democráticos. Em suma, as universidades públicas estatais são uma das poucas organizações que ainda têm legitimidade para participar das grandes transformações sociais, culturais e econômicas que o país demanda, e ao mesmo tempo constituem a única instituição que pode cumprir sua missão institucional, garantindo que todos os seus alunos, independentemente da origem sociocultural, se formem com as mesmas oportunidades de sucesso.
O novo governo que será comandado pelo presidente eleito Gabriel Boric precisará de um sistema universitário que colabore com os desafios científicos e tecnológicos que as políticas públicas exigem para serem implementadas. Nesta fase, a educação universitária não estará no centro das reformas, existem outras prioridades que surgem das demandas e dos compromissos assumidos no programa de governo. Por isso, esta é a hora de um sistema universitário público atuante e comprometido com a concepção, implementação e avaliação das ações que começarão a se concretizar a partir de março de 2022. No momento atual, as universidades estatais devem se colocar a serviço dos cidadãos e das transformações que buscam superar o modelo neoliberal, razão pela qual essas universidades e seus atores devem se voltar para a sociedade e as demandas da administração republicana.
Dante Castillo é pesquisador do Programa Interdisciplinario de Investigaciones en Educación (PIIE).
Mario Torres é aluno da Universidad Tecnológica Metropolitana (Utem).
[1] A mobilização estudantil de 2006 corresponde a uma série de manifestações realizadas por estudantes secundaristas do Chile entre abril e junho de 2006 e entre setembro e outubro do mesmo ano. Essa mobilização é conhecida informalmente como Revolução dos Pinguins devido ao tradicional uniforme utilizado pelos estudantes