A urgente retomada do transporte público em São Paulo
Transporte público menos poluente, de maior capacidade e melhor qualidade pode ajudar a reduzir quantidade de carros circulando
A pandemia de Covid-19 forçou a cidade de São Paulo a deixar estacionados muitos dos seus seis milhões de automóveis. Algumas vantagens foram notórias: menos trânsito, melhor qualidade do ar, poluição sonora reduzida, ônibus circulando com maior fluidez. No entanto, a pandemia também causou um forte choque no sistema de ônibus paulistano, que é peça fundamental na construção de uma cidade menos voltada para os carros e mais para as pessoas. Comparando o mês de abril de 2020, início da pandemia, com janeiro do mesmo ano, pré-pandemia, a média de passageiros diminuiu em mais de 60%, devido à adoção de medidas de distanciamento social. Mas a redução em mais de 40% da média de frota circulante em dias úteis gerou queixas de aglomerações nos veículos. Por outro lado, um ponto positivo foi o aumento da velocidade do sistema de ônibus, em quase 20%.
Já em 2021, o sistema de ônibus da cidade de São Paulo vem mostrando estabilidade combinada com uma recuperação gradual nos padrões operacionais. A frota circulante em dias úteis permaneceu em torno da média de 12.200 veículos, independentemente da fase da pandemia, mas a quilometragem total percorrida pelos coletivos aumentou 9% de janeiro a agosto. A velocidade média diária também variou pouco, mantendo-se em torno de 19 km/h durante todo o ano. O número de passageiros, apesar de ainda estar cerca de 30% menor do que no período pré-pandemia, tem, pouco a pouco, aumentado. O momento agora é propício para a retomada dos planos que a cidade tinha antes da pandemia, para melhorar o transporte público e a qualidade de vida do paulistano, contribuindo para a mitigação das mudanças climáticas globais.
Em setembro de 2019, foram iniciados novos contratos de operação do transporte coletivo por ônibus em São Paulo. Mudanças importantes no sistema estavam previstas nesses contratos como o aumento do porte dos ônibus e da quilometragem média percorrida por cada veículo, a fim de elevar a oferta de transporte na cidade, ou seja, mais viagens e mais lugares disponíveis. Os contratos também incluem metas de redução de emissões em consonância com a Lei Municipal de Mudanças Climáticas, que obriga, até 2038, que o transporte coletivo elimine suas emissões de dióxido de carbono (CO2) e reduza em, no mínimo, 95% suas emissões dos poluentes material particulado (MP) e óxidos de nitrogênio (NOx) em relação ao ano de 2016.
A frota paulistana tem progressivamente evoluído em direção a uma frota menos poluidora, conforme os veículos mais antigos são substituídos por novos veículos de geração tecnológica menos poluente. Entre janeiro e agosto de 2021, a parcela da frota paulistana composta por veículos a diesel fabricados anteriormente a 2012, que são equipados com sistemas de controle de emissões de poluentes menos eficazes, diminuiu de 17% para 12%. Esses veículos têm sido consistentemente substituídos por novos veículos movidos também a diesel, mas com controles de emissões atualizados. Consequentemente, as emissões de material particulado e óxidos de nitrogênio por quilômetro rodado têm sido reduzidas, mas não as emissões de dióxido de carbono.
A redução de emissões de dióxido de carbono exige uma mudança de paradigma que passa pelo uso de tecnologias alternativas ao diesel de petróleo, um combustível fóssil. Planos de renovação de frota foram exigidos às empresas operadoras de ônibus para atender a essa redução. Em outubro de 2020, a SPTrans revelou, em reunião do Comitê Gestor do Programa de Acompanhamento da Substituição de Frotas por Alternativas Mais Limpas (Comfrota), que o número total de veículos elétricos que estariam rodando em 2021 segundo os planos seria de 2.620 ônibus. Evidenciou-se, ali, a opção pelos veículos elétricos como a principal solução apresentada.
Porém, até o momento, esses planos não foram concretizados. Hoje, o número de ônibus elétricos rodando na cidade é de apenas 219 veículos, sendo 201 trólebus (alimentados por linhas elétricas aéreas) já antigos, com média de idade igual a nove anos. Os efeitos econômicos negativos da pandemia se adicionaram ao desafio inicial de introdução dessa tecnologia de ônibus nas frotas das empresas, que significava superar a barreira dos maiores preços de aquisição dos veículos elétricos em relação aos veículos diesel, ainda que estudos apontem que o custo total de operação dos veículos elétricos tende a ser mais baixo do que o dos veículos a diesel. O Brasil é autossuficiente em ônibus a diesel, e, inclusive, os exporta para o mercado sulamericano, mas a tímida oferta de ônibus elétricos no país é um fator limitante, com apenas duas fabricantes desse tipo de veículo, com capacidades de produção ainda insuficientes para atender uma frota como a de São Paulo. Em agosto, a maior fabricante de ônibus no Brasil anunciou seus planos inéditos de produção de ônibus elétricos, mas com previsão de início de vendas somente dentro de dois anos.
Prometendo alcançar o cenário traçado nos planos, a prefeitura de São Paulo reapresentou o número de ônibus movidos a eletricidade a serem incorporados na frota, mas com defasagem de três anos: no mínimo 2.600 novos coletivos deverão ser adicionados à frota até 2024. Esse número,em análise simplificada, representaria cerca de metade do necessário para atender as reduções de emissões exigidas contratualmente, assumindo que outras alternativas além da eletrificação não fossem também adotadas. A redução de emissões de dióxido de carbono exigidas nos contratos de concessão é próxima a 40% em 2024 (para os sistemas estrutural e de articulação), comparando-se com as emissões de 2016, ano de referência.
Assim, temos aqui uma questão aberta: os planos de substituição de frota precisam ser revisados e as condições para sua implementação devem ser equacionadas. Mudanças estruturais em qualquer sistema de transporte público devem ser realizadas dentro de um processo transparente, gerando mecanismos que busquem atender cada vez mais garantir o direito universal ao transporte. Para tanto, um passo importante para o maior sistema de ônibus do Brasil, e um dos maiores do mundo, é resgatar o fórum oficial de acompanhamento, o Comfrota. Esse comitê, composto por membros do poder público, fabricantes de veículos, empresas operadoras e sociedade civil, prevê reuniões bimestrais que, no entanto, estão interrompidas desde abril. Passado o baque maior da pandemia, é hora de retomar as ações para uma melhor mobilidade em São Paulo, livre de poluição do ar e colocando a cidade como referência na agenda climática.
David Tsai e Felipe Barcellos e Silva, pesquisadores do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA).