A veemência do general
Heleno tem sentimentos fortes com relação ao presidente Lula e talvez o culpe por não ter chegado ao comando da força terrestre
Não é tarefa fácil reconstruir a obra do general Augusto Heleno, tantas são as notícias de jornal que falam dele, bem como suas lives, entrevistas e palestras. Há duas décadas, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Bolsonaro só fazia sucesso dentro dos quartéis. Saiu do anonimato ao assumir, entre junho de 2004 e agosto de 2005, o comando da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah). Como general de Exército, a partir de 2007 ocupou o Comando Militar da Amazônia. Nesse posto, ganhou ainda mais visibilidade ao criticar em 2008 a política indigenista do governo Lula, em meio à crise da demarcação da Terra Indígena[1] Raposa Terra do Sol, em Roraima. Sua trajetória é significativa para entender vários aspectos do processo de politização na caserna, fazendo-o voltar para bem antes da instalação da Comissão Nacional da Verdade. E para lembrar como os generais rebeldes não agiram sós, mas tiveram, desde o início, forte apoio de setores civis, o que os incentivou a manter sua rota de desobediência ao poder político. Por último, a análise de suas falas fornece um bom exemplo sobre a versão militar da história brasileira, especialmente do golpe de 1964.
Augusto Heleno Ribeiro Pereira nasceu em 1947, em Curitiba, estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro e graduou-se na arma de Cavalaria na Academia Militar das Agulhas Negras, em 1969. Dessa forma, da plêiade de generais estreitamente ligados a Bolsonaro, é um dos poucos que frequentou a Aman nos anos 1960. O ex-capitão se formou em 1977, Mourão em 1975, Santos Cruz em 1974 e os outros à mesma época.[2] Heleno concluiu a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO) em 1978. Como capitão, foi ajudante de ordens do então ministro do Exército, Silvio Frota, demitido por Geisel por conspirar contra a abertura política.[3] Não se envergonha dessa fase de sua carreira. Terminou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) em 1986, já sob o governo Sarney. Ocupou postos no Paraguai e na França e chefiou o Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX), o que sempre permite conhecer jornalistas e editores. Depois do Haiti, foi chefe de Gabinete do comandante do Exército, entre 2006 e 2007. Já após o Comando da Amazônia ocupou, contra sua vontade, o Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército. Passou à reserva em 2011.[4] Como veremos, Heleno tem sentimentos fortes com relação ao presidente Lula e talvez o culpe por não ter chegado ao comando da força terrestre. Além do ato de rebeldia de 2008, um episódio ocorrido no Haiti, alguns anos antes, pode ter colaborado para isso.
Operação punho de ferro
O general foi o primeiro force commander brasileiro na Minustah, de uma série de onze. O Brasil teve o maior contingente da operação e ficou com a área da capital, Porto Príncipe. No depoimento a Celso Castro e Adriana Marques, contou que estava, por acaso, na sala do então comandante do Exército, Francisco Roberto de Albuquerque, quando este recebeu um telefonema do chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, James Hill, que comunicou a indicação do Brasil para chefiar a nova missão. “Aí eu falei para ele (Albuquerque): ‘eu sou voluntário’”, e complementou: “general, sou médico sem doente. Eu quero um doentinho”. O processo de indicação foi muito rápido. O comandante enviou apenas o nome de Heleno ao ministro José Viegas, quando o correto, segundo ele mesmo, seria apresentar alternativas:[5] “o ministro ficou sem escolha, mas acabou aceitando”. “Hoje nós temos uma doutrina de operações de Garantia da Lei e da Ordem, graças a tudo que vivemos no Haiti”, explicou. Perguntado sobre como avaliava sua experiência de um ano e três meses como force commander, respondeu: “para mim foi extremamente gratificante, do ponto de vista pessoal, profissional”.[6]
No mesmo testemunho, ele mencionou “o cara que acabou dando margem a uma grande operação em Cité Soleil, ‘Dread’ Wilmer”, mas não se estendeu sobre o tema.[7] A operação teve início às 4h00 de 6 de julho de 2005 e foi batizada “Punho de Ferro”. Com pleno uso da força, tropas da Minustah sob o comando do general cercaram, acuaram e mataram o líder das gangues. O problema é que atiraram na população civil, muitas vezes do alto de helicópteros, com armas de grosso calibre. Neste artigo, partimos do pressuposto de que podemos atribuir a Heleno a mesma regra lembrada pelo general José Elito, terceiro comandante das forças da Minustah: “Eu assumia 100% da responsabilidade de todos os soldados. Se ele atirou, foi porque eu mandei”.[8]
No documentário de 2017 It stays with you: use of force by UN Peacekeepers in Haiti (ver abaixo), os cineastas Cahal McLaughlin e Sióbhán Wills, ambos norte-irlandeses, ouviram vários sobreviventes para saber exatamente o que passou.[9] Em certo ponto, aparecem na tela as informações: “Houve 15 grandes incursões em Cité Soleil entre 2005 e 2007. Uma das maiores foi a Operação Punho de Ferro em 6 de julho de 2005 na qual a Minustah afirma ter usado: 22.700 cartuchos de arma de fogo, 78 granadas, 5 morteiros”. O embaixador dos Estados Unidos no Haiti declarou: “É provável que os disparos tenham penetrado em muitas moradias, atingindo alvos não intencionais”. O número dois da embaixada disse que os relatos que falavam de vinte vítimas fatais, homens e mulheres, “eram dignos de confiança”. Há quem diga que houve o dobro de mortos. Até hoje o relatório da ONU sobre o episódio não foi publicado. A organização se recusou a colaborar com o documentário.
It Stays With You: Use of Force by UN Peacekeepers in Haiti from Cahal McLaughlin on Vimeo.
No artigo “Terra Desolada” (Piauí, agosto de 2019), o jornalista Fabio Victor lembra:
“Depois de sua volta ao Brasil, Heleno deu mais detalhes sobre a operação, numa palestra em setembro de 2006, em São Paulo. ‘Nós estabelecemos um ponto forte [espécie de trincheira reforçada] no interior de Cité Soleil, cheio de proteção. […] Toda noite, tinha tiroteio de quinze, vinte minutos em cima do ponto forte. Eu botei os [soldados] peruanos lá. Eles fizeram uma festinha boa ali. Acertaram um monte de bandido; eles eram bons atiradores. Aí eles me perguntaram uma vez: ‘General, por tradição, bandido, quando cai lá, morto ou ferido, vem gente pra buscar o corpo. O que a gente faz? Podemos atirar em quem vem buscar o corpo do bandido?’ Eu tava tão machucado com essa crise que respondi: ‘Atira também, amigo de bandido também toma tiro para eles pararem de vir buscar o corpo. Chega um ponto que a gente perde a paciência’, disse Heleno, conforme relato do portal Carta Maior, em 20 de setembro de 2006. Questionado em seguida pelo portal sobre a declaração, o general afirmou que os homens da missão apenas reagiram aos tiros dos bandidos que iam buscar corpos.”
Os sobreviventes ouvidos pelos cineastas viram morrer familiares próximos. Selecionamos um deles, talvez o mais detalhado. Victor Jean tem cabelos grisalhos curtos, veste uma camisa de algodão azul clara com listas verticais. Mostra muita dignidade, em meio à miséria. Chorou só uma vez. Fala com fluência, usando o créole haitiano. Seu depoimento, com legendas em inglês, aparece no documentário intercalado com outros:
“Em julho de 2005, entrando em 2006, a Minustah tomou todo o país. Nesta área, as pessoas viviam com medo. A gente estava muito infeliz, numa situação desesperadora. Um monte de problemas. A gente não podia sentar, não podia se deitar, não podia comer, não podia beber, não podia nem se lavar. Começou com os helicópteros sobrevoando, passando no ar, e havia tiros dia e noite. Não havia o que fazer. Nenhum lugar era seguro. Quando eles estavam atirando, não dava para ir a nenhum lugar, tudo estava bloqueado. Eu vi muitas coisas quando os helicópteros da Minustah estavam atirando […] eu tinha uma criança, uma filha – quando eles estavam atirando lá, ela foi atingida do alto, […] dentro da casa. Eu corri para me salvar e quando voltei não consegui encontrar ela. Eu achei que estava atrás de mim, mas quando olhei [chora, põe a mão na cabeça baixa]. Eu a perdi! Isso dói tanto!”
Ainda chorando, o velho homem ergue a cabeça:
“Ela era uma rocha para mim. Ela me ajudava. [repete] Ela me ajudava. Eu sou um homem velho. Ela era boa para mim. Quando tive aquela criança, foi muito bom para mim. Eu sinto tanta falta dela. Mas Deus é poderoso. Ele pode vir e me levar. Porque dói muito quando você tem uma filha como aquela, que morre em condições tão ruins. Ela nunca fez nada de errado. Nunca roubou, nunca foi para a prisão. Ela não fez nada para merecer isso. Realmente dói.”
E conclui:
“Ela ia para a escola. Ela tinha um diploma. Depois que eu a perdi, senti que não sabia mais o que fazer. A mãe fugiu depois que as coisas começaram a acontecer. Ela era o tipo que não pode aguentar o som de armas de fogo, simplesmente não conseguia suportar. Não podia aguentar isso aqui, então eu a levei para ficar com alguns parentes meus. Eu tomei conta do enterro sozinho. Ela teve que ir para Les Cayes. Do jeito que ela estava, não podia ajudar, ela foi para Les Cayes.”
Os outros depoimentos de testemunhas dos fatos de julho de 2005 são do mesmo teor. Eveline Myrtill mostrou o ponto nas costas onde foi atingida por um estilhaço de bala. Disse que estava dentro de casa quando os projéteis penetraram, destruindo tudo: “Tudo isso foi feito por balas dos homens brancos”. Edren Elisma garante: “Os sons eram definitivamente da Minustah”. Para Jacklin Clerveau, esta “usou helicópteros por cima, tanques por toda parte” (na verdade, carros blindados). Eveline Pierre, mulher de Edren, diz: “Eu lhe conto como perdi minha filha, como estávamos dormindo quando ouvimos o tiroteio. Pensamos que eram os homens atirando, parte da guerra que a Minustah estava lutando contra Wilmè. Foi o dia em que meu marido tomou um tiro no pulso. Então, eu estava ajudando meu marido, uma das crianças que estava deitada na cama, seu nome era Vanne Elisma, ela foi atingida”.
A menina e o pai foram levados ao hospital St. Catherine, mas não foi possível extrair a bala. Ela morreu quatro ou cinco meses depois, ainda com a bala no corpo, segundo o pai. Tinha 10 anos. Sem recursos, a família a enterrou numa das ilhotas do litoral. Ele disse que só não morreu graças às folhas de zinco de seu barracão, que desviaram as balas. Foi ferido no pulso. Contou que ninguém estava atirando nos “brancos”. Sua mulher afirmou que as pessoas do bairro só puderam sair para fora às 2 horas da tarde e que ficaram presas nas casas desde as 3 horas da madrugada.
Depois da eleição de Bolsonaro e antes do início de seu governo, o jornalista Gabriel Stargardter da Reuters, sediado no Rio de Janeiro, escreveu matéria onde dizia que a operação de 5 de julho “coroou a cruzada de Heleno para restaurar a ordem no país depois que o presidente haitiano (Aristide) foi deposto por insurgentes. Heleno declarou a ação um sucesso. Mas vários grupos de direitos humanos a classificaram como um ‘massacre’, alegando que dezenas de civis morreram no fogo cruzado, muitos deles mulheres e crianças”. O artigo lembrava também uma declaração de Bolsonaro sobre a experiência brasileira no Haiti: “Estamos em guerra. O Haiti também estava em guerra […] a regra era: você encontra um elemento com uma arma, você atira, e depois vê o que aconteceu. Você resolve o problema”.[10]
A Reuters entrevistou pessoas a par da operação, inclusive diplomatas, funcionários de ONGs, autoridades haitianas e moradores de Cité Soleil, analisou relatórios da ONU, telegramas diplomáticos divulgadas pelo WikiLeaks, além de artigos de imprensa. No artigo, Stargardter diz que “esses documentos pintam um quadro detalhado das pressões que Heleno sofreu para ser rígido no Haiti”. Lembra que, pouco depois, ele “ordenou que 440 soldados da ONU apoiados por 41 veículos e helicópteros blindados” entrassem em Cité Soleil. E conclui: “Heleno expressou desdém por aqueles que questionaram suas ações, segundo Seth Donnelly, ativista de direitos humanos que estava no Haiti à época. Em relatório sobre o ataque, Donnelly afirmou que Heleno disse a ele e a seus colegas ativistas que ‘eles só pareciam se importar com os direitos dos ‘fora da lei’”. O ativista também foi entrevistado em “It stays with you”, como membro da US Labor and Human Rights Delegation to Haiti, 2005. Seu relato:
“Nós entramos no dia 7 de julho, dentro de cerca de 24 horas. Nós vimos vários barracos com buracos de balas. As pessoas saindo em massa, muitas pessoas, claramente, elas estavam emocionalmente arrasadas com o que tinha acontecido. E compartilharam conosco como a comunidade tinha sido atacada por tropas da ONU. Nós vimos o corpo de [nome de mulher, incompreensível] e suas duas crianças, ainda no chão, e dentro de seu barraco. E de acordo com o sobrevivente – o marido, pai das crianças –, tinham sido mortas por soldados da Minustah, tinham atirado uma espécie de bomba de gás lacrimogêneo dentro do barraco. Ele sobreviveu. As pessoas contaram que as forças da ONU atiraram no transformador de eletricidade e que tinham bloqueado o acesso e a saída com o uso de carros blindados e um container.”
Enquanto fala, são exibidas imagens de casas destruídas, no bairro miserável:
“Mas tarde naquele dia, nós fomos até o hospital local, que servia basicamente Cité Soleil e era administrado pelos Médicos sem Fronteiras e pudemos conversar com seu pessoal. Pessoal médico. E perguntamos se no dia 6 eles tinham visto alguma anormalidade, pessoas chegando para serem tratadas, vindas de Cité Soleil. E eles nos contaram que tiveram um afluxo de pessoas, no dia 6 – 26 pessoas, mulheres e crianças que eram principalmente vítimas de tiros, mais da metade no abdômen. E contaram que um repórter tinha sido atingido pelas forças da ONU.”
Onze dias depois de deixar o comando da missão no Haiti, o general Augusto Heleno assinou um artigo, publicado em 11 de setembro de 2005 na Folha de S.Paulo, no qual afirmava o que depois repetiria, como vimos, na entrevista a Castro e Marques: “vivi, durante quinze meses, uma experiência fantástica, pessoal e profissional” em Porto Príncipe. Seu tema principal foi a falta de ações da “comunidade internacional” (aspas do texto): “desculpas inconsistentes continuam adiando providências urgentes no campo econômico e social, obrigando os militares a realizar ações humanitárias que fogem a sua alçada”. Até aquela data tinha cabido “quase que exclusivamente aos vetores de segurança criar condições para o cumprimento da resolução do Conselho de Segurança da ONU”. Dois meses apenas depois da “Operação Punho de Ferro”, que ele não mencionou, disse sobre as condições vigentes em Porto Príncipe “graças à atuação conjunta de militares, PNH e polícia internacional, controlamos a situação e a cidade retomou a tranquilidade”.[11] Diante disso, fica difícil entender por que houve tantas operações depois disso, com vimos nas legendas do documentário.
Raposa Serra do Sol
Em abril de 2008, dois anos após voltar ao Brasil, com o prestígio angariado por sua atuação no Haiti, o general Heleno ganhou o centro da cena. Naquela época, chegou a um ponto crítico o problema da demarcação, em Roraima, da Terra Indígena Raposa Terra do Sol. A favor da demarcação contínua, garantida pela Constituição, manifestaram-se o Conselho Indigenista de Roraima, a Igreja Católica, ONGs nacionais e internacionais, setores minoritários da mídia, a Advocacia Geral da União e o Ministério da Justiça – ao qual se subordinavam a Polícia Federal, a recém-criada Força Nacional e a Funai. Defendiam a demarcação não contínua da reserva, o que garantiria a permanência de arrozeiros que ali se instalaram ilegalmente, o Ministério da Defesa, os partidos de oposição ao governo federal, o governo de Roraima, a grande mídia e o deputado Aldo Rebelo (PCdoB).
O governo Lula tinha resolvido finalmente colocar em prática a decisão de três anos atrás, quando foi decretada a homologação. Identificada como terra indígena pela Funai, dada a existência ali de mais 15 mil índios, em 1993, a Raposa/Serra do Sol foi criada no governo de Fernando Henrique Cardoso em 1998. Em 2008, dada a decisão de retirar invasores da terra indígena, foram deslocados para lá quinhentos agentes da Polícia Federal a fim de garantir a remoção dos fazendeiros. Decidido a chamar a atenção nacional para o problema, o maior desses fazendeiros, Paulo César Quartiero, prefeito de Pacaraima, ordenou o ataque a uma aldeia indígena, deixando nove feridos à bala. A PF prendeu o fazendeiro, seu filho e seis empregados da fazenda. Antes, ele havia posto abaixo pontes e ameaçado destruir um posto dos federais. Ao ser libertado, o fazendeiro propôs o emprego do Exército para pacificar a região.[12]
Foi nesse contexto que, em 16 de abril de 2008, como parte do seminário “Brasil, ameaças à sua soberania”, realizado no Clube Militar do Rio de Janeiro, o general Heleno, comandante militar da Amazônia, sem mencionar a terra indígena, atacou frontalmente a política indigenista do governo federal, considerando-a “completamente dissociada do processo histórico brasileiro”, “lamentável, para não dizer caótica”, sendo responsável pelo completo abandono dos índios a quem não sobraria outra opção senão “gravitar” em torno dos pelotões do Exército. Em sua visão, era inconcebível que brasileiros não índios fossem proibidos de entrar na Raposa Serra do Sol, o que contrariaria a formação “miscigenada” da sociedade brasileira. Porém, a sua afirmação mais grave foi a de que suas posições coincidiam com as do Estado-Maior do Exército, segundo ele “um órgão que serve ao Estado brasileiro e não serve ao governo”.[13]
Heleno não ficou só. A noção foi repetida depois, em declarações à imprensa, pelo chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Leste, Mário Madureira. O Clube Militar e o Clube da Aeronáutica emitiram notas em apoio às posições do general rebelde.[14] Para Luiz Gonzaga Lessa, ex-comandante militar da Amazônia, havia “um grande perigo em gestação na fronteira norte do país, ou seja, a transformação daquela vasta região em algo semelhante ao que ocorreu no Kosovo, nos Balcãs, com consequente risco à soberania nacional”, que poderia resultar na divisão do país em 227 nações, com 180 diferentes idiomas.[15]
Outro ponto inédito na crise foi o inesperado apoio que os generais receberam de setores da sociedade insatisfeitos com o governo Lula. Antes mesmo da palestra de Heleno, o governador de Roraima, José de Anchieta Junior, disse ao jornal O Estado de S. Paulo: “Nós defendemos a Amazônia para os brasileiros – assim como as Forças Armadas, que se opuseram a essa operação e negaram qualquer apoio”.[16] Para o presidente do DEM, deputado federal Rodrigo Maia, o governo não deveria cobrar o general Heleno, procurando silenciá-lo, mas levar em conta sua advertência.[17]
Embora o líder do PSDB, senador Arthur Virgílio, tenha afirmado que “um general da ativa deve se abster de opinar sobre essas questões”, parlamentares de seu partido tomaram posição diversa. O deputado federal Paulo Renato Souza endossou a tese castrense da ameaça à soberania nacional, acrescentando tema ainda mais explosivo: “Não existirá hoje um terceiro grupo de interesses, ligado aos movimentos guerrilheiros que atuam na América Latina”? Finalmente, Aldo Rebelo saiu em defesa dos invasores e assumiu a concepção de que os militares dependeriam de autorização da Funai para entrar na área, em clara ameaça à soberania nacional: “O desconforto vem das restrições e das campanhas que se fazem dentro e fora do país contra a presença das Forças Armadas nas áreas indígenas”.[18] Para Arnaldo Jabor, colunista da TV Globo, o general “sabe do que fala”, ao contrário dos burocratas de Brasília, não sendo possível afirmar que houve quebra de hierarquia. Na revista Veja (17-4-2008), Reinaldo Azevedo, que depois passou a ser crítico severo da participação dos militares no governo Bolsonaro, publicou coluna com o título “Se alguém está ferindo a Constituição, não é o general Heleno”.
Segundo o Jornal do Brasil, em matéria de 18 de abril de 2008, “as declarações do general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, contra a política indigenista e a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol em área contínua, causaram desconforto no Palácio do Planalto”. Citando “alta fonte do Ministério da Justiça” (cujo titular era Tarso Genro), o artigo dizia que, no dia anterior, Lula tinha aproveitado despacho com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, para discutir a questão do aumento dos soldos, no qual também estava presente o comandante do Exército, Enzo Peri, para pedir explicações por escrito para as críticas. “O primeiro reflexo da crise teria sido a decisão de retirar o nome do general Heleno como a primeira opção do governo numa eventual sucessão no comando do Exército”, continuava a matéria.[19] Como disseram Cristiano Romero e Monica Gugliano, em texto citado atrás, o general “chegou ao topo da carreira, general de Exército, com muitas realizações e uma amargura: a de não ter sido comandante do Exército”.[20] Desde então, dedicou a Lula um sentimento que seria reiterado inúmeras vezes nos anos seguintes.
Militar à paisana
No início de 2011, quando completou doze anos como general e necessariamente passou à reserva, em cerimônia de despedida no Quartel-General de Brasília, Heleno fez sua última fala ainda na ativa. Dirigindo-se ao pai coronel, que perdeu ainda como tenente, disse: “lutastes, em 1964, contra a comunização do país e me ensinastes a identificar e repudiar os que se valem das liberdades democráticas para tentar impor um regime autoritário”. Em entrevista, disse que a passagem pelo DCT tinha sido um castigo, pois o posto “nada tinha a ver” com seu perfil e suas aptidões. E alfinetou Lula: “Por decisão do comandante supremo. Eu me tornara o exemplo típico do homem errado no lugar errado”. O ministro Jobim não compareceu ao ato.[21]
Ao pendurar a farda, foi contratado pela Rede Bandeirantes. Além disso, como “diretor de comunicação e educação corporativa do COB”, Comitê Olímpico Brasileiro, logo depois de passar à reserva, recebeu o pagamento mensal de R$ 58.581 em valores da época.[22] Só saiu do novo emprego em 2017, quando estourou o escândalo envolvendo Carlos Arthur Nuzman, o presidente do órgão de quem era muito próximo. Nuzman viria a ser preso por corrupção nas Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro.[23]
No último dia de março de 2014, Heleno pronunciou palestra na loja maçônica Grande Oriente do Distrito Federal, sobre o tema “31 de março de 1964: a contra-revolução que salvou o Brasil”.[24] Já de início, alfinetou a presidenta Dilma Rousseff, por esta ter declarado que o regime militar roubara vinte anos de liberdade ao povo brasileiro. O general perguntou ao público quantos anos a esquerda roubaria se tivesse triunfado. Para ele, a história exigia o contraditório e era preciso ficar nos “fatos”, sem ideologias. Assim, leu os editoriais dos grandes jornais nos dois primeiros dias de abril de 1964, que apoiavam a intervenção militar contra o governo Jango, recomendando-os aos “ilustres membros da Comissão da Verdade”.[25]
A partir daí, traçou as origens do movimento de 1964, desde a Revolução Comunista de 1917, até os episódios finais da crise que levou à derrubada de João Goulart. Destacou os bons propósitos do movimento tenentista, mencionou a “deplorável” Intentona Comunista de 1935 e não fez menção ao golpe do Estado Novo, nem ao papel das FFAA. A derrubada de Vargas, para ele, foi apenas a expressão do sentimento democrático da época. Não havia militares presentes. A crise de 1954, que levou ao suicídio de Vargas, não teve participação castrense. Na conjuntura de 1955, o contragolpe de Lott, que garantiu a posse de Juscelino, nada teve a ver com as FFAA. Sua descrição da crise de 1961-1964 enfatizou os erros da esquerda e desembocou no clamor da maior parte da sociedade brasileira pela intervenção militar. Pelo menos, reconheceu que os generais lideraram o golpe. Terminou a palestra citando o general Bini Pereira: “A história fará justiça aos militares”. No salão completamente lotado, foi aplaudido longamente de pé.[26]
Ao lembrar a revolta de 1935, destacou com veemência a atitude “traiçoeira” dos amotinados ao assassinar companheiros de farda enquanto estavam na cama, dormindo. Aqui, vale lembrar a análise do renomado brasilianista Frank McCann sobre esses “fatos”:
Nenhum dos testemunhos dos que presenciaram o episódio fala em soldados mortos na cama, mas essa logo se tornou a referência clássica à revolução. É verdade que alguns praças de prontidão estavam na cama, totalmente fardados e armados. Mas tratava-se de uma medida de controle para impedir contatos subversivos. Havia escolta até para irem ao banheiro. Outros estavam em formação no pátio, sob a mira de armas. O general Pessoa recorda-se de ter aconselhado repetidamente os vários comandantes da escola (da Praia Vermelha, JRMF) e seus amigos entre comandantes de unidades a estar alerta e ter cuidado. A rebelião, incluindo Natal, Recife e Rio de Janeiro, resultou em 22 mortos e 157 feridos dos dois lados.”[27]
Em fevereiro de 2018, outro ano chave, depois de decretada a intervenção federal na segurança do estado do Rio de Janeiro, deu longa entrevista a Cláudio Dantas, d’O Antagonista. Na ocasião, voltou a falar que as lições aprendidas em Porto Príncipe valiam para o Rio de Janeiro. Fez grandes elogios ao interventor, o general Braga Netto. Defendeu três condições prévias para fazer aquilo que chamou de “choque de ordem”: 1) a autonomia para escalar a violência repressiva, até chegar à letalidade, mesmo no nível operacional mais baixo; 2) o uso de helicópteros e a vinda de soldados de fora do Rio, de preferência forças especiais; e 3) a existência de sustentação jurídica para a atuação militar. Para ele, tratava-se de uma situação de “segurança nacional” e o Judiciário tinha que colocar de lado as ideologias e os “dodóis”.[28]
Indagado sobre qual foi a missão mais difícil de sua experiência de force commander mencionou a existência de duas “forças adversas”: os ex-militares (o Exército haitiano tinha sido dissolvido), que logo foram controlados, e os bandidos. Disse que a mensagem da imposição e não manutenção da paz era: “acabou a brincadeira!”. Segundo ele, era preciso ganhar a simpatia da população. O jornalista insistiu: como se deu a neutralização dos criminosos? O general não respondeu.
Heleno foi um dos sustentáculos da candidatura Bolsonaro. No dia seguinte à vitória de “seu ex-cadete”, a 30 de outubro de 2018, disse em entrevista à Rádio Nacional que concordava “com a ideia do governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, de posicionar atiradores de elite na cidade para abater o que classifica(va) como bandidos com fuzil”. Afinal, tratava-se de “uma reação à atuação de criminosos”.[29] Atravessou todo o período do novo governo como chefe do GSI, escapando dos sucessivos expurgos de generais no mandato do ex-capitão. Enganou-se, porém, quem achou que o trabalho de informações implicaria na discrição do velho general, afastando-o dos microfones e das câmeras. Protagonizou, com frase duras, momentos célebres do governo do ex-capitão, numerosos demais para citar neste artigo.
Após a derrota de Bolsonaro, de dentro do carro, diante do chamado “chiqueirinho do Alvorada”, disse aos apoiadores do presidente, no dia 6 de novembro: “Esse negócio de Lula estar doente, não está, infelizmente. Vamos torcer para que tenhamos um futuro melhor. Na mão do cachaceiro, não vai”.[30] Na entrevista ao Antagonista, ao ser perguntado como ficava a relação dos militares com Michel Temer, depois das denúncias de corrupção que o envolviam, saiu pela tangente: “não importa o presidente, a instituição da Presidência da República tem que ser respeitada”. Heleno tem boa memória, mas tem o hábito de esquecer o que não lhe convém.
João Roberto Martins Filho é pesquisador das Forças Armadas no Brasil e professor titular da Universidade Federal de São Carlos.
*Devo a Carlos Eduardo Viegas a leitura atenta e os comentários à primeira versão deste artigo.
[1] Agradeço a Luís Gustavo Guerreiro Moreira por me ensinar a designação correta desse tipo de área, dado que na imprensa usa muitas vezes o termo “reserva”.
[2] Outra exceção é o general Maynard Santa Rosa, que cursou a Aman de 1964 a 1967. Ele ficou no governo Bolsonaro somente no primeiro ano.
[3] Segundo Cristiano Romero e Monica Gugliano, “filho único de Ari de Oliveira Pereira, coronel e professor no Colégio Militar, Heleno é descendente de uma família de militares. Herdou do avô, que foi almirante de esquadra e comandante da Escola Naval, o nome. Cresceu ouvindo histórias das Forças Armadas e do papel delas no Brasil”. Ver “General Heleno – um general no olho do furacão”, Valor, 21 de junho de 2019, apud Ricardo Costa de Oliveira, “Hereditariedade e família militar”, in João Roberto Martins Filho, Os militares e a crise brasileira, São Paulo, Alameda, 2021, p. 235.
[4] Para os dados específicos à carreira militar, ver Celso Castro e Adriana Marques (orgs.), Missão Haiti: a visão dos force commanders, Rio de Janeiro, FGV Editora, 2018, p. 17.
[5] O titular da pasta da Defesa caiu cinco meses depois, a 4 de novembro. Ver João Roberto Martins Filho, “Tensões militares no governo Lula (2003-2009)”, Revista Brasileira de Ciência Política, 4, Brasília, julho-dezembro de 2010, p.285-86.
[6] Ver Celso Castro e Adriana Marques, op. cit., pp.17-49.
[7] Idem, ibidem, p.43.
[8] Idem, ibidem, p. 61.
[9] Devo a minha filha Camila Martins este link. Para um debate na USP com os dois realizadores (21-10-20019), ver https://youtu.be/lCOmo1tbsPU
[10] “Alvo de críticas, operação no Haiti virou glória de ministro de Bolsonaro”, UOL Notícias¸ 29-11-2018.
[11] Augusto Heleno Ribeiro Pereira, “Haiti, um grande desafio”.
[12] “Lula diz que índios defendem fronteiras”, O Estado de S. Paulo, 09-5-2008; “Presença da PF muda situação dentro de reserva”, O Globo, 11-5-2008; “Líder dos arrozeiros quer Exército em RR e diz que sua prisão foi política”, O Estado de S. Paulo, 16-5-2008.
[13] http://www.youtube.com/watch?v=Q3ZyNbnRmWI. Foi a terceira manifestação do general em uma quinzena. No dia 9 de abril, ele tinha falado num evento promovido pela FIESP e pela USP: “não vou entrar para a história como o comandante que foi conivente com a perda de parte do território nacional”. E completou: “estão instalando malocas onde não existem e distribuindo gado aos índios, para, daqui a alguns anos, alegarem que essa terra sempre foi indígena”. “Comandante da Amazônia afirma que ONGs estrangeiras ameaçam soberania”, CUT-Notícias, 18-4-2008. Na mesma semana, no programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, fez uma leitura própria da “Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas”, da ONU, para defender que, com base nela, o Brasil poderia perder a soberania sobre a Terra Indígena Yanomami. General Augusto Heleno – Parte4de5 – Canal Livre. – YouTube.
[14] “Chefe do Comando Militar do Leste endossa críticas”, O Estado de S. Paulo, 19-4-2008.
[15] “Questão indígena ameaça a soberania do Brasil”, O Estado de S. Paulo, 25-4-2008.
[16] “A Amazônia precisa ser discutida entre brasileiros”, O Estado de S. Paulo, 12-4-2008.
[17] “Oposição e base defendem revisão da política indigenista”, O Estado de S. Paulo, 19-4-2008.
[18] “Raposa Serra do Sol e a soberania nacional”, O Estado de S. Paulo, 27-4-2008; “O Exército não pode desterrar os não-índios”, O Estado de S. Paulo, 27-4-2008.
[19] “Lula exige explicações de general”.
[20] “General Heleno – um general no olho do furacão”, cit..
[21] “General Heleno volta a defender o golpe de 64 ao passar para a reserva”, Folha de S.Paulo, 10 de maio de 2011.
[22] “Relatos sobre o melhor emprego do mundo: a doce vida do General Heleno nos 6 anos como diretor do COB”, Sportlight, 16 de março de 2021.
[23] O próprio Heleno “foi condenado pelo Tribunal de Contas da União, o TCU, por autorizar convênios ilegais que custaram 22 milhões ao governo- e favoreceram militares conhecidos seus”. O episódio ocorreu durante os Jogos Mundiais Militares, quando ocupava a chefia do DCT do Exército, “General Heleno, futuro ministro de Jair Bolsonaro, assinou contratos irregulares de R$ 22 milhões”, The Intercept Brasil, 27 de novembro de 2018. “Foi somente depois de nova apelação que o tribunal absolveu os militares e anulou as multas, mas manteve a avaliação sobre irregularidade e a recomendação de fazer licitações para convênios de TI”, explica a matéria.
[24] https://youtu.be/jNPGKZQcdVM O general Maynard Santa Rosa, um dos primeiros críticos da CNV, leu o currículo do palestrante. A apresentação durou uma hora. Com a CNV na reta final, os ânimos estavam acirrados na caserna. A 26 de outubro, Dilma Rousseff seria reeleita. Em novembro, pela primeira vez, o ex-capitão Bolsonaro compareceria à cerimônia de formatura da Aman, onde falou aos formandos e lançou sua candidatura a presidente em 2018. Em dezembro, seria divulgado o relatório final da CNV.
[25] Esqueceu-se que, dez dias depois do 31 de março, o Correio da Manhã passou a condenar a ditadura militar e que o governo do marechal Castelo Branco terminou sob críticas severas d’O Estado de S.Paulo, um dos patronos da mobilização golpista. Na crise de 1968, toda a imprensa viu com simpatia os protestos estudantis. Heleno também não falou da censura prévia.
[26] Ao se referir à Segunda Guerra Mundial, o general defendeu que “a Rússia corre para pedir ajuda às democracias ocidentais”. Olvidou-se, assim, do papel amplamente reconhecido dos soviéticos para a vitória aliada. E da batalha de Stalingrado. Ver Gerhard Weinberg, A world at Arms, a global history of world war II, New York, Cambridge University Press, 1994, 1174 p. e Vassili Grossman, Vida e destino, Rio de Janeiro, Objetiva, 2014, 915 p.
[27] Soldados da Pátria: história do Exército brasileiro, 1889-1937, São Paulo, Cia.das Letras, 2007, p. 486.
[28] https://youtu.be/J62BLZG_Rwg
[29] “General Heleno defende fortalecimento do trabalho de combate ao tráfico de drogas”, Agência Brasil, 31-10-2018.
[30] Blog do Noblat, “A saúde do general Augusto Heleno, infelizmente, não vai bem”, Metrópoles, 9-11-22.