“A Venezuela é a grande questão da América Latina no século XXI”
O premiado repórter da The New Yorker discorda de quem chama Nicolás Maduro de ditador e ouviu Guaidó declarar-se um “social-democrata” e fã de Bernie Sanders
Para escrever uma série de reportagens sobre a crise na Venezuela, Jon Lee Anderson, escritor e repórter especial da revista The New Yorker, circulou por três continentes de fevereiro para cá: ouviu negociadores venezuelanos em Londres, entrevistou assessores do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em Washington, e finalmente viajou a Caracas em maio para observar a situação do país com os próprios olhos.
Quando desembarcou no aeroporto Simón Bolívar, a capital venezuelana ainda vivia a ressaca de uma ofensiva militar forjada pelo presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, autoproclamado presidente do país, no dia anterior. Sua tentativa de demover Nicolás Maduro da presidência ao lado de dissidentes do Exército não teve êxito e, enquanto Anderson fazia check-in em um hotel, Leopoldo López, opositor do chavismo até então mantido em prisão domiciliar, pedia asilo político na embaixada do Chile.
Não é a primeira vez que o jornalista vai à Venezuela: em 2001, já como repórter da New Yorker, ele entrevistou o então presidente Hugo Chávez debaixo de uma árvore do Palácio de Miraflores, sede do governo nacional – Chávez ainda lhe concederia outra entrevista em 2008. Testemunha das transformações sociais do período chavista durante toda a década de 2000, quando visitava o país anualmente, Anderson diz que percebeu a derrocada do projeto um ano antes da morte do líder, em 2012. “Chávez já estava moribundo, fraco, e a história da Torre de David era a expressão de uma crise que se avizinhava”, revela, referindo-se à carcaça abandonada de um edifício gigante no centro de Caracas que, naquele ano, fora ocupado por movimentos de moradia popular.
Autor de seis livros, entre eles o famoso Che Guevara: uma biografia (Objetiva, 1997), e em via de terminar a biografia do líder cubano Fidel Castro, Anderson concedeu esta entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Qual é a dimensão da crise venezuelana para o contexto da América Latina no século XXI?
JON LEE ANDERSON – A Venezuela é a grande questão da América Latina do século, porque, apesar da situação dos migrantes centro-americanos e de toda a história do muro na fronteira com o México, o país está colapsando em um cenário internacional que é quase uma segunda Guerra Fria e em que a declaração de vitória de um ou de outro lado teria impactos significativos sobre vários atores globais. Ela está no olho do furacão de um mundo em transformações radicais econômicas e políticas e num momento em que os Estados Unidos, surpreendentemente, são governados por um presidente antidemocrático. Não é à toa que oportunistas mundiais, como China e Rússia, observam a crise venezuelana como uma chance de aumentar zonas de influência. Além disso, a Venezuela é o primeiro país das Américas no século XXI cujos problemas foram internacionalizados: a crise já não pesa mais apenas sobre os ombros dos venezuelanos, mas também é sentida no exterior, à medida que o mando do país está sendo disputado entre Maduro e os Estados Unidos, por meio da figura de Juan Guaidó.
Você encontrou um país socialmente fraturado entre apoiadores de Guaidó e Maduro, como parece ser a divisão político-institucional?
Sim. O país está muito polarizado, apesar de ser difícil medir essa fratura por meio de pesquisas. A oposição usa as suas para dizer que quase 90% da população rechaça o governo Maduro. A situação faz o mesmo do outro lado. Maduro parece ter pouca popularidade, mas tampouco há um consenso entre os venezuelanos, porque estão divididos entre classes e entre quem mora nas cidades e no campo. Se por um lado há uma sensação de frustração com a administração chavista, que as pessoas consideram ineficaz e corrupta, por outro encontrei muita gente que apoia o governo pela nostalgia de Chávez. A oposição afirma que Maduro encontrou um jeito de coagir a população por meio dos programas sociais e exemplifica isso com o plano de remessas de alimentos que chegam uma vez ao mês: dizem que uma pessoa que sai de um bairro pobre para protestar no centro de Caracas corre o risco de não receber sua caixa de comida. Para mim, é evidente que a manutenção de Maduro no cargo é totalmente dependente de sua sustentação militar e, sendo assim, considero que a Venezuela não é mais uma democracia.
E onde reside a força da oposição? Você sente que a autoproclamação de Guaidó foi legitimada socialmente?
Não se pode dizer que a Assembleia Nacional não é legítima. Ela foi o Congresso do país até Maduro manobrar para criar outro parlamento com a intenção de marginalizá-la. Guaidó tem apoio popular, mas é difícil dizer quanto. Vi grandes concentrações de gente nas assembleias e nas tribunas em que ele participou. No entanto, Maduro também consegue reunir multidões no Palácio de Miraflores. É possível dizer que o apoio de Guaidó se situa mais entre as classes médias e altas, tradicionalmente opositoras ao chavismo, e se estendeu agora aos mais pobres, antes o baluarte de Chávez. Ele não é bem-visto apenas pelos militares – e não se sabe por quê. Um militar de alta patente me disse que não gosta da maneira como Guaidó se expressa e que o Exército jamais o deixará ser presidente.
Você esteve com Guaidó durante a viagem?
Falei em particular com ele em várias ocasiões e ele insistiu que é menos liberal do que se imagina. Obviamente que ele não quer perder o apoio de Washington, mas me revelou que gosta do [pré-candidato democrata ao governo dos Estados Unidos] Bernie Sanders e que se considera um social-democrata. O mais difícil na Venezuela de hoje é saber a verdade. Todo mundo usa uma espécie de guerra psicológica para empurrar sua agenda e minar a reputação dos adversários. Isso é frustrante para um repórter, porque, além de ter de observar o que está à sua frente, você tem de tentar descobrir quem está movendo as cordas das cortinas. As fontes parecem sempre estar escondendo algo.
Maduro resistiu há pelo menos duas tentativas de demovê-lo do cargo só em 2019 – como você disse, muito por causa do apoio do Exército. Mas esse governo ainda tem alguma mobilização popular?
Não sei quanto, mas tem. É preciso recordar que boa parte da população venezuelana é pobre e venera Chávez – algo muito parecido com Lula no Brasil. Maduro não tem o mesmo carisma, mas sua chegada ao poder coincidiu com o colapso do modelo econômico e dos preços do petróleo. É um fato também que a Venezuela nunca foi bem gerenciada durante o chavismo: o que se via como um “êxito” eram basicamente as quantidades de uma única mercadoria exportada e a presença de um líder como Chávez. Sem o dinheiro e sem o carisma, até os pobres venezuelanos se deram conta de que tinham um Estado bastante débil, mas ainda assim são leais a ele pela semelhança: o governo se parece e fala como eles. É mais moreno do que branco.
Alguns chavistas da oposição, como o ex-secretário de Relações Exteriores de Maduro, Temir Porras, promovem uma campanha de solução da crise sem Guaidó nem Maduro. É uma alternativa em jogo?
Não. Trata-se mais de chavistas que querem se perpetuar usando essa visão de que são uma alternativa à dualidade entre Guaidó e Maduro. Eles podem chegar a ter alguma voz em uma eventual transição, mas por ora o chavismo está em desvantagem em termos eleitorais.
Boa parte da imprensa internacional decidiu chamar Maduro de ditador. Como você vê essa decisão jornalística, assim como os atos desse governo que fazem a acusação ser possível?
Ainda resisto a chamá-lo de ditador. Primeiro, porque não gosto dessas campanhas que, como são os memes, parecem ser uma nova forma de comunicação coletiva em que os outros se sentem no direito de exigir que se mude uma semântica ao gosto deles, sejam de esquerda ou de direita. Segundo, porque prefiro encontrar minhas próprias definições. Não acho que Maduro seja uma pessoa democrática – ele se diz “revolucionário” –, mas é questionável julgar sua administração dessa forma. Ele assumiu poderes ditatoriais? Um pouco sim, um pouco não. Todo dia ele recebe grupos com quem mantém diálogo, seu governo conduz várias conversações com a oposição e ele nunca mandou a polícia entrar em um estádio atirando em todo mundo. É uma situação complexa, de fato, mas não chego a chamá-la de ditadura. Quando me der vontade de considerar Maduro um ditador, o farei não porque me disseram para fazê-lo ou porque o presidente da OEA [Organização dos Estados Americanos] acha.
A figura de Hugo Chávez segue sendo uma unanimidade na sociedade, como parecia ser até sua morte?
Ele não é unânime porque há uma oposição que critica seu legado, não sei se de maneira honesta ou estratégica. Mas também existe muita gente na oposição que reconhece os méritos, as virtudes, o carisma, a vontade e a entrega de Chávez durante seus anos no poder. Essa situação afeta até meu trabalho como jornalista, porque muitas fontes me relacionam com a figura de Chávez por causa das entrevistas que fiz com ele. Mas nos bairros pobres encontrei uma grande impaciência e várias críticas a Maduro, que não ganhou a população da mesma forma que Chávez, a quem as pessoas ainda são leais.
Como um “amigo crítico” de Chávez, pelas palavras dele próprio, você concorda com as afirmações de que, se vivo, ele condenaria o governo Maduro?
Em particular, creio que ele teceria críticas, mas em público ficaria calado, porque perceberia que quem está do outro lado agora são seus inimigos de sempre. Além disso, Maduro é resultado de sua obra. Mas, sinceramente, se Chávez estivesse vivo, a situação nem sequer teria chegado a esse ponto, porque ele sabia ser diplomático de uma forma que Maduro é totalmente incapaz. Sem contar que Chávez chegou a uma compreensão da política e a uma postura ideológica que lhe permitiam mudá-las ou suavizá-las, dependendo das circunstâncias – o que Maduro não consegue fazer.
Qual é a compreensão política de Maduro?
Ele se acredita um “revolucionário” e, de fato, foi de esquerda muito antes de Chávez. Ao contrário de Maduro, Chávez poderia abarcar todas as ideologias, ainda que tivesse a sua, o que fazia dele um populista nacionalista de esquerda. Mas no começo de seu primeiro mandato, em 2000, havia gente de direita próxima a seu governo, e Chávez podia fazer isso porque era capaz de escutar pessoas de outras linhagens políticas e até concordar com elas. Maduro, sendo um “revolucionário”, determina a si mesmo toda uma visão do poder, da sociedade e de seus inimigos.
Qual é sua percepção sobre a atuação do governo dos Estados Unidos ao longo da crise?
É preciso reconhecer, em primeiro lugar, que a iniciativa ao redor de Juan Guaidó foi engenhosa e, até certo ponto, exitosa. Com ele, os Estados Unidos conseguiram vender ao mundo que a Venezuela é um país em crise, que o êxodo de gente é um exemplo de desastre do chavismo, que Maduro é um ditador e que o socialismo, como crença – ainda que a Venezuela não seja socialista –, é um fracasso. Foi uma estratégia de isolamento de Maduro e de colocar o intempestivo Guaidó como alternativa que convenceu mais de cinquenta países, o que, reconheça-se, foi um golpe diplomático vigoroso. No entanto, desde que John Bolton se tornou assessor de segurança nacional da administração Trump, os Estados Unidos assumiram uma postura muito mais bélica e ameaçadora, à qual sou muito crítico. Tanto o presidente como Bolton e o senador Marco Rubio – também vinculado a essa política – se lançam contra Maduro, muitas vezes inventando coisas e apelando a um golpe de Estado, o que é muito irresponsável para um país como os Estados Unidos. Quando a Casa Branca se vê na necessidade de invadir militarmente um país da América Latina, trata-se de um fracasso da política norte-americana. Entrevistei alguns membros da diplomacia atual que rechaçam o comportamento de Trump com relação à Venezuela – e que só não o criticam publicamente porque temem por seu emprego. Mas em particular acreditam que os Estados Unidos estão levando essa situação ao ponto de uma “Guerra Fria 2.0”.
Em 2016, após a eleição de Trump, você argumentava que a América Latina estava em segundo plano no projeto político dele. A Venezuela trouxe a região de volta ao foco ou ela segue sendo marginal para a Casa Branca?
A chegada de Trump ao poder coincidiu com o desmoronamento da Venezuela. Não é seu objetivo principal, mas falei com um ex-assessor dele alguns dias atrás em Washington e ele estava me contando que, no segundo dia de mandato, Trump o chamou para perguntar sobre a crise venezuelana. Ele também revelou que, durante o primeiro semestre do governo, foram convocadas dezenas de reuniões para falar sobre a Venezuela. Certamente se tornou um foco.
Como você observa a cobertura da mídia estrangeira, sobretudo a dos Estados Unidos e a da Europa, sobre a situação na Venezuela?
Acho que as televisões deixaram de fazer entrevistas com Maduro depois do episódio em que ele encerrou uma conversa com Jorge Ramos [jornalista da rede de TV mexicana Univision] e ordenou que apagassem as imagens, afirmando que as perguntas tinham sido desrespeitosas. Acho que existem esforços positivos da imprensa, mas muito da cobertura internacional mantém uma óptica alinhada com a política ideológica de Trump. Quando ele acusa a Venezuela de alguma coisa, os jornais saem em busca das evidências dessa acusação. Há ainda linhas editoriais que dificultam o trabalho dos jornalistas, e nisso a oposição aparentemente tem uma vantagem sobre Maduro: ela conseguiu se vender muito bem na mídia internacional. Ainda assim, minha crítica é mais existencial: tem mais a ver com o comportamento dos meios em relação ao poder do que com a situação específica da Venezuela.
Vinícius Mendes é jornalista.