A visão dos indígenas do Alto Rio Negro sobre a pandemia e o clima
“Converso com os velhos da comunidade no final de tarde, depois de um longo dia de trabalho. Eles são grandes cientistas e compreendem bem as mudanças climáticas”. Leia o relato de Francineia Fontes Baniwa sobre a situação dos indígenas que vivem na região do Alto Rio Negro
Estamos vivendo um momento muito tenso e triste no mundo, no Brasil, no Amazonas, em São Gabriel da Cachoeira e nas comunidades indígenas da região do Alto Rio Negro. No final de dezembro de 2020, voltei à minha comunidade em Assunção do Içana, localizada no rio Içana, afluente do rio Negro. São dois dias de viagem para chegar até lá. Ouço relatos de como tem sido enfrentar a Covid-19, doença silenciosa. Contam-me que foram meses intensos de medo e angústia pelas perdas de parentes próximo e distantes. Nas comunidades não há enfermeiro nem médicos, algumas só têm um agente indígena de saúde, outras, nem isso. Há polos base que devem dar assistência, mas devido à forte demanda, não dão conta de atender todo mundo.
Converso com os velhos da comunidade no final de tarde, depois de um longo dia de trabalho. Eles são grandes cientistas e compreendem bem as mudanças climáticas. Fumando seu baruri tradicional (tabaco) meu pai manifesta sua preocupação com o clima, analisando as mudanças na região, bem como os eventos de 2020. “Grandes queimadas ocorreram este ano e, como consequência, tivemos mortes de vários animais e aves, mortes de várias nascentes de rios e igarapés, mortes de espécies de árvores e milhares de vidas levados pela doença, um desastre”, disse meu pai, com um tom de voz triste.
“Nós sentimos essas mudanças”, continuou meu pai, Francisco Fontes. “Chuva fora de estação, toda tarde vem tempestade do nada, o rio enchendo fora de época, atrapalhando todo o ciclo de reprodução de plantas e animais”. Nossos parentes se perguntam o tempo todo “O que está acontecendo com o mundo? O que está acontecendo com as pessoas no mundo? Por que tanta ganância?”. No meio de tudo isso, é constante a preocupação pelo não reconhecimento de nossos direitos, em especial, o direito de termos a posse permanente dos nossos territórios de origem. As narrativas míticas falam justamente dessas origens, dos donos dos lugares e do nosso lugar no mundo. Por isso, afirmamos que esse ou aquele lugar é nosso, pois o umbigo da nossa ancestralidade se encontra lá. Se esses lugares hoje aparecem em forma de pedras, nós entendemos o seu significado e sua importância, e, com outros olhos, reconhecemos sua plena existência. Porém, sempre vem a sociedade que se diz civilizada e quer ser dona daqueles lugares.
Para povos que já foram um dia quase exterminados ou que já passaram por situação parecida, o medo toma conta de nossos dias, sem sabermos o que vai acontecer pois não há remédio certeiro para a doença. Isso tira o sono de qualquer um, principalmente daqueles que têm filhos pequenos e pais idosos com problema de saúde. Ouvi muitos relatos sobre outras doenças que antes chegaram à região – sarampo, febre amarela, gripe espanhola, coqueluche, catapora e tantas outras. Isso é angustiante. Quantos projetos e sonhos foram interrompidos com a chegada dessas doenças.
No mês que voltei para Assunção do Içana, o índice de contágio da Covid-19 estava aumentando muito. Segundo me disseram as pessoas da comunidade – fato confirmado pela agente comunitária de saúde, Dinéia Fernandes – os sintomas haviam mudado em relação à primeira onda. Além da febre, agora os novos sintomas eram diarreia, vômito e tremedeira. Na comunidade de Assunção, as crianças também começaram a ficar doentes. Os novos sintomas apareciam mesmo naqueles que já tinham contraído a doença no meio do ano.
“Já faz meses que não durmo direito, pois passo a noite e madrugada cuidando das pessoas da comunidade. As mães vêm me acordar no meio da noite, pego minha lanterna e vou cuidar das crianças e de outros pacientes, passo dia e noite, correndo para lá e para cá, cuidando. Nem sei mais o que é dormir direito, dói demais ver as crianças doentes e sem ter muito o que fazer para amenizar. Por isso, tenho incentivado as mães a usar remédios caseiros”, conta a agente de saúde, Dinéia. De fato, em nossa comunidade, há uma intensa troca de conhecimento sobre esses remédios, principalmente, entre as mulheres. Acompanhei-as fazendo chás, preparando as plantas para dar banho nos doentes, bem como trocando remédios e receitas.
A realidade das comunidades é muito diferente. Aqui não temos máscara, nem álcool em gel. Aqui, nós cuidamos do nosso jeito, com nossos saberes e conhecimentos. Se fôssemos esperar algo dos governos, todos estaríamos mortos. Isolamo-nos do nosso jeito, usamos nossas plantas para nos curar, acreditamos no nosso conhecimento e em seus poderes. Aqui nos protegemos com benzimentos, defumação com cigarro, defumação com breu, karãnha e xikantá, plantas para banho (tukandira kaá, capim santo, folha de alho, formigas taxi), chás (limão, alho, mel, folha de boldo, folha de jambú, grelo da folha de embaúba, com formigas tucandera), remédios para diarreia (palmito de sororoca e casca de chichi). Com esses remédios, enfrentamos a Covid-19. A gente sempre afirmou que a floresta é a nossa casa, pois dela tiramos o nosso sustento, nossa cura e a purificação da nossa alma – e mais uma vez provamos isso. A floresta nos cura e nos protege.
A vida em tempo de pandemia mudou. A rotina das mulheres hoje é ir para o quintal ou para roça, tirar ervas e fazer chá para medicar os doentes. As mulheres foram e são as médicas da família toda. Cuidam dos maridos, filhos, netos, genros ou noras. Elas dizem que só vão parar de fazer chás, defumação, benzimentos e banhos com plantas, quando acabar a Covid-19. A minha mãe dona Lúcia Emílio é umas das mulheres que incansavelmente está nessa luta de cuidar. Quanta delicadeza há nesse cuidado! Vejo todas as mulheres da minha comunidade nesse empenho de combater a doença, sem deixar de cuidar dos seus afazeres do dia a dia. Estamos no isolamento, do nosso jeito indígena.
Um dos desafios da região é a distância e com isso, a remoção de pacientes por via fluvial, muitas vezes, pode dificultar a recuperação. As comunidades indígenas se sentem abandonadas, assim como os indígenas que vivem nas cidades. Em São Gabriel da Cachoeira, há um alto índice de pacientes internados com Covid-19. O Hospital de Guarnição estava sem leito e sem oxigênio quando passei por lá. A cidade é um polo por onde circulam 23 povos diferentes e mais de 750 comunidades indígenas, mas só existe um hospital, que é do exército, para atender uma demanda tão grande. E a cada dia, aumentam os casos de Covid-19 na cidade.
A situação em Manaus, assim como em outros locais da Amazônia, está bastante crítica. Agora imaginem as comunidades indígenas que se encontram nos municípios distantes perto da fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela? Nas primeiras semanas de janeiro, Manaus gritou pedindo socorro, pois não havia oxigênio para os pacientes. Tivemos muitas mortes. O mundo soube da dor que estávamos sentindo pelas vidas em jogo por meio da cobertura da imprensa. É impensável e inadmissível o que se passa com as pessoas do Amazonas e, principalmente, com os povos indígenas, até porque somos levados do nosso território sem querer, levados para capital por falta de estrutura nos hospitais nas pequenas cidades, e, muitas vezes, não voltamos mais para casa. É ainda mais desumano, pois os corpos de parentes são enterrados como pessoas sem famílias, são enterrados longe de casa. E o que nos revolta e nos machuca é pensar que tudo isso poderia ter sido menos ruim, se tivessem diretrizes de política sanitária claras e bem executadas. Ficamos no vazio da incompetência governamental, vazio cheio de morte.
Morando na comunidade e presenciando todos os desafios, eu percebo que o que está matando de verdade é a hipocrisia, o negacionismo e o egoísmo. Aqui no rio Negro, onde todo mundo se conhece, o número de amigos e parentes mortos aumenta a cada dia. Choramos todos os dias, quando lembramos da última conversa que tivemos com um parente que faleceu. Ficamos sem chão, quando lembramos da nossa última pescaria, nossa última ida à roça, quando passamos pelo pé de bacaba que subíamos. Hoje o maior medo de todos os parentes é a intubação por conta do alto índice de mortes.
Todo final de tarde vem uma tempestade ou um trovão com som muito triste. “O mundo está triste, o mundo todo está em luto, o mundo está chorando por tantas vidas perdidas. O som dos trovões fala disso, dos choros e das lágrimas que derramamos. Esses estrondos ouvidos ao entardecer são almas que retornam para suas casas de espíritos. Nós indígenas temos casas após a morte, retornamos para encontrar os parentes do mesmo clã”, relatou meu pai. Essas palavras me fizeram repensar sobre o “mundo que está chorando pelas vidas que perdemos”, a natureza estava sentindo e manifestando sua angústia sobre a doença do mundo. Perdemos muitas pessoas sábias, grandes conhecedores e mestres de nossas tradições, as comunidades estão perdendo pessoas-bibliotecas que sempre foram nossa ponte com o passado e o futuro.
O movimento indígena provou novamente que é uma grande maloca. A Federação das Organizações Indígena do Rio Negro (Foirn) está na linha de frente desde o início da pandemia, dando suporte na entrega de doações para as comunidades indígenas e auxiliando nas emergências. E quem mora no rio Negro sabe da complexidade que é dar assistência para centenas de comunidades rio acima, alcançadas somente por via fluvial, em viagens que podem levar vários dias, sob o sol e sob a chuva. Nesse triste ano de pandemia, vale lembrar, contamos com a ajuda de várias instituições: o Instituto Socioambiental (ISA); a União Amazônia Viva; o Rio Negro, Nós Cuidamos; a Aliança pelos Povos da Floresta; os Expedicionários da Saúde; os Médicos Sem Fronteira, além do DSEI/Alto Rio Negro. Por meio dessas instituições, a Foirn recebeu recursos e doações para realizar as ações de enfrentamento à Covid-19.
No dia primeiro de fevereiro de 2021, perdi um primo-cunhado, Isaías Fontes, que era diretor de referência para a região do Içana, na Foirn. Isaías era mais que parente, era um amigo e meu incentivador. Ainda lembro das palavras dele, em nossa última conversa, quando eu retornava para a comunidade depois de um tempo no Rio de Janeiro, cumprindo as disciplinas de doutorado no Museu Nacional. “Bem-vinda de novo Fran, estava a sua espera para me ajudar a trabalhar com nosso povo, precisamos de você, sei que já está pronta para ajudar nosso povo com seu conhecimento”.
Recebi a notícia de que Isaías não resistira um dia após a sua morte. Eu estava em nosso sítio familiar quando o professor Miguel chegou com a notícia: “nosso chefe maior Isaías, nos deixou”. Naquele momento, mais uma vez, fiquei sem chão, olhei para meu pai e para minha tia, sem ter nenhuma reação. Estávamos indo para Assunção. Desci da canoa, olhei de novo para meu pai e comecei a chorar. Na mesma hora, vi as lágrimas escorrerem dos olhos de meu pai. Desviei o olhar e olhei para as árvores. Sentia uma dor no peito sem tamanho. Agora estamos em luto. Até quando? Ainda não sabemos.
Hoje, gritamos #RespiraAmazonas. Respira, pois se a Amazônia não é o pulmão do mundo, ela é o pulmão das pessoas que nela vivem. São as nossas vidas que estão nela. Fortaleça os seus pulmões, Amazônia. Vamos resistir.
Francineia Fontes é mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando na mesma
instituição.
A autora agradece à Foirn, ao Departamento de Mulheres e Coordenadorias Regionais, pela garra e pela luta, em prol dos 23 povos rionegrinos