De quem é a última palavra sobre novos cursos de medicina
Se antes, todos sabiam o que era preciso para uma Universidade ofertar o curso de medicina (ter cursos de saúde, boa parte com hospitais próprios, forte relacionamento com o SUS etc.), tudo ficou incerto a partir da Lei n.º 12.871 de 2013 que mudou a sistemática histórica e impôs a publicação de editais de chamamento público para que as Instituições de Ensino Superior (IES) pudessem concorrer entre si
Desde 2023 há um tema que tem sido cercado de polêmicas. As novas autorizações de cursos de medicina e a expansão de vagas de cursos antigos. Em 2013, a Lei n.º 12.871 mudou a sistemática histórica e impôs a publicação de editais de chamamento público para que as IES pudessem concorrer entre si. A ideia parecia boa, mas a execução pelo Ministério da Educação deixou muito a desejar. Se antes, todos sabiam o que era preciso para uma Universidade ofertar o curso de medicina (ter cursos de saúde, boa parte com hospitais próprios, forte relacionamento com o SUS etc.), tudo ficou incerto dali em diante. Por exemplo, nos dois grandes editais anteriores (já concluídos), o cerne da questão era a análise econômico-financeira das entidades em disputa, fórmulas sobre performance financeira, análises de EBITDA, conceitos típicos de Sociedades Anônimas foram fortemente utilizados. O tópico acadêmico ficou relegado ao plano secundário, menos importante.
Como era de se esperar, a situação gerou um inflacionamento de ações judiciais, principalmente de Universidades, Centros Universitários e Faculdades sem fins econômicos que se sentiram prejudicadas. Imaginem uma IES que mantém dois doutorados e quatro mestrados (o mínimo para ser titulada como Universidade). Isso custa muito e o retorno está atrelado à formação de mão de obra altamente especializada para ensino, pesquisa e para indústria, mas não ao superávit direto e imediato.
São essas mesmas entidades que estão montando grandes parques tecnológicos para o país e o que foi examinado pela Administração Pública foi sua capacidade de geração de lucros de curto prazo? A rentabilidade imediata da educação é algo tão complexo que a maior parte dos sistemas de ensino superior gozam de altos incentivos e fomentos públicos não só no Brasil (FIES e PROUNI…), como no resto do mundo, dos países mais capitalistas como os Estados Unidos (com seu amplo financiamento estudantil) até a Europa, China e Austrália.
Compreendido o contexto geral de incerteza, é impossível não falar sobre alguns de seus aspectos de destaque e que estão entrelaçados com essa história; um deles é a batalha judicial que tem sido travada até o presente momento pelas IES e o MEC. No STF, o ministro Gilmar Mendes é relator de duas ações de controle de constitucionalidade (ADI n.º 7.187 e ADC n.º 81) que discutem se os editais são um meio válido ou não para autorização de cursos médicos. Esse mesmo juiz concedeu uma liminar para que as instituições que conseguiram protocolizar seus pedidos individuais de curso ou aumento de vagas via eMEC (sistema eletrônico de peticionamento do MEC) possam seguir com eles até o final, mas desde que os procedimentos administrativos já tivessem ultrapassado a fase pré-análise documental. A decisão é do início do segundo semestre de 2023, entretanto, até o mês de novembro, o Ministério da Educação não deu cumprimento à ordem. É verdade que a União publicou a Portaria MEC n.º 397/2023 em outubro, que criava as bases para seguir o comando da Suprema Corte. Porém, a leitura do texto levou à conclusão que a regra administrativa confrontava disfarçadamente a decisão judicial.
O que o ministro Gilmar determinou é que o Poder Público criasse um “padrão híbrido” de autorização, utilizando a legislação em vigor à época do protocolo dos pedidos administrativos de cursos e aumento de vagas, mas também os §§1º, 2º e 7º, do art. 3º, da Lei do Mais Médicos. Com isso, a estrutura SUS da região, programas de urgência e emergência, atenção ambulatorial especializada e hospitalar, compromisso de bolsas de estudos e investimentos na rede hospitalar, além de critérios como proporção de médicos por habitantes (até 3,3 médicos por cada mil habitantes) deveriam ser observados pelo Ministério da Educação. Ocorre que o MEC criou uma alternativa a isso, algo que não tinha a ver com essas determinações. Para que fique claro, enquanto tudo o que foi relatado ocorria, em paralelo, foi lançado o “edital de chamamento público de 2023”, após mais de cinco anos sem um instrumento do tipo. A previsão é de 95 novos cursos com 60 vagas cada um e com a possibilidade de aumento de mais 40 por novas vagas, após seu reconhecimento. O Ministério da Educação, então, em vez de cumprir a imposição do Poder Judiciário, resolveu vincular os processos administrativos individuais de pedidos de cursos e aumento de vagas ao dito instrumento editalício, dizendo que apenas analisaria os procedimentos administrativos que estivessem nas cidades listadas e que tanto o campeão do certame como os detentores de pedidos individuais dividiriam as mesmas vagas, independentemente da capacidade instalada da rede SUS na região de saúde.
Leia também
Painkiller e os riscos da sacralização da medicina
Ensino superior, sociedade e Enem 2023
Como era de se esperar, isso gerou um forte desentendimento entre as IES com pedidos individuais e o MEC, que insistia que estava cumprindo a ordem liminar. Ocorre que vários especialistas mostraram duas evidências constrangedoras ao Ente Público: i) a primeira, que o edital não indicava ou detalhava como foram escolhidas as regiões de saúde, justamente porque os estudos eram sigilosos ou de conhecimento reservado. Mais do que isso, havia incoerência flagrantes, o subdimensionamento da região Norte – por exemplo, o Acre que sequer foi listado para receber vagas –, enquanto São Paulo (o maior epicentro de concentração de médicos do país) receberá treze novos cursos; ii) o segundo, não há razão para que uma região de saúde só receba sessenta vagas iniciais de cursos para serem repartidas entre todos os interessados se houver equipamentos SUS suficientes para mais vagas. Nessa hipótese, o critério principal sempre foi cinco leitos SUS a cada uma vaga de curso médico.
Todas essas inquietações foram levadas não só ao Ministério da Educação, mas também à Corte Constitucional e em processos judiciais próprios na primeira e segunda instâncias e isso fez os gestores públicos recuarem e publicarem uma nova regra administrativa, a Portaria MEC n.º 421/2023. Basicamente, ela volta atrás e estabelece mais claramente que “necessidade social de curso de medicina” não é um conceito político, mas técnico, parametrizado pela Lei n.º 12.871/2013 a partir de critérios fortemente concretos.
Há algo que ainda não ficou claro, por que a Administração Pública Federal resiste tanto em cumprir às determinações judiciais nessa matéria? Talvez porque a União queira retomar todo o protagonismo que perdeu a partir de 2018, quando declarou uma inconstitucional moratória de cursos de medicina. Não se pode perder de vistas que big players educacionais foram muito beneficiados nos certames anteriores e, finalmente, as outras instituições, de alta qualidade e muito menores do que esses conglomerados empresariais, aprenderam a resistir, a não se deixarem lesar em razão de condutas públicas estranhas, para dizer o mínimo. Tanto é que várias entidades representativas de IES comunitárias e, inclusive, a CNBB assinaram cartas em que repudiavam a gestão pública nessas questões. A UNE apoiou essas demandas das entidades de educação.
O que está em jogo não são apenas novas vagas em cursos médicos; essa é uma parte do problema. O que não é visível a olhos nus é que tais cursos nas mãos de poucos conglomerados empresariais podem aniquilar as demais concorrentes como as Pontifícias Universidades Católicas, as Universidades Mackenzie, Metodistas, Lassalistas, o sistema de Universidades sem fins lucrativos de Santa Catarina e do Rio Grande Sul, aquelas entidades historicamente interiorizadas pelo Brasil.
Dyogo Patriota é assessor jurídico da ABRUC.