Aborto: entre o hospital e a clandestinidade
Ninguém duvida que a interrupção voluntária da gravidez constitui uma dolorosa e até mesmo trágica opção. Mais trágico, porém, é constatar que sob o véu de cruzadas conservadoras pelo “direito à vida” se ocultam em todo o mundo, práticas terríveis como os abortos clandestinos, o abandono de crianças e o infanticídio
Quando as mulheres queimaram seus sutiãs nas históricas manifestações do final dos anos 1960, as sociedades mais desenvolvidas conquistaram o direito ao aborto. Quatro décadas depois, porém, esta ainda é uma frágil conquista. Apesar de a liberalização ter avançado na maior parte da Europa, as condições concretas de atendimento pelos serviços públicos de saúde e o estatuto legal da Interrupção Voluntária de Gravidez (IVG) variam sensivelmente de país a país. Enquanto a Europa Ocidental oferece atendimento estruturado, especialmente nas nações nórdicas, a situação permanece precária no Leste. E a IVG só foi descriminalizada em Portugal em março de 2007. Na contramão da tendência européia, o direito ao aborto foi praticamente inviabilizado nos Estados Unidos.
A Holanda é o melhor exemplo de uma política empreendedora em matéria de educação sexual e acesso aos contraceptivos. De fato, 75% das holandesas de 15 a 44 anos utilizam algum método moderno para evitar a gravidez1. Conseqüência disto, a taxa de abortos no país é uma das mais reduzidas da Europa: oito em cada mil gestações. As IVGs são praticadas em clínicas especializadas, por médicos altamente qualificados. E o atendimento conta com a cobertura integral de uma empresa pública de seguros.
Outro caso positivo é o da Dinamarca, onde a legitimidade da interrupção da gravidez foi reconhecida já em 1939 para casos específicos. E autorizada indiscriminadamente até a 12ª semana em 1973. Depois disso, as interessadas devem submeter seu pedido a uma comissão composta por ginecologistas, assistentes sociais e psicólogos. Como as menores de idade precisam de autorização dos pais, e esta é uma exigência problemática para certas adolescentes cujas famílias se recusam a admitir que elas possam ter vida sexual, a comissão costuma atender ao pedido sem exigir a anuência prévia dos familiares2. O resultado de todo esse sistema é uma taxa de abortos muito reduzida: 13 a cada mil gestações. Ao contrário do que ocorre na Holanda e na França, o número de interrupções por medicamentos ainda é pequeno. Mas a operação é gratuita e praticada em hospitais, e a Dinamarca dispõe de médicos e enfermeiros em quantidade suficiente para todos os procedimentos.
Na Alemanha e na Itália, as solicitantes devem se submeter a uma entrevista prévia. Mas, mesmo na outrora muito conservadora Espanha, a gravidez pode ser interrompida, se o seu prosseguimento colocar em perigo a saúde da mulher, inclusive a mental.
Do outro lado do Canal da Mancha, na Inglaterra, Escócia e País de Gales3, a prática é autorizada até a 24ª semana, caso a continuidade da gravidez apresente riscos elevados para a mãe. Esta definição, muito abrangente, justifica a inclusão da Grã-Bretanha no grupo dos países com legislação liberal na matéria.
De fato, as mulheres britânicas quase sempre conseguem interromper a gravidez, caso desejem. E a taxa de aborto na ilha, da ordem de 16 por mil, é uma das mais elevadas da Europa Ocidental. Contudo, alguns obstáculos persistem: dois médicos devem apoiar por escrito o pedido, e, embora a vasta maioria da comunidade médica seja favorável à IVG, cerca de 20% dos profissionais permanecem contra, valendo-se, não raramente, de seu poder de obstrução4. “Há médicos que se recusam a encaminhar suas pacientes para consultas com outros médicos”, lamenta Rebecca Findlay, porta-voz da Family Planning Association (Associação de Planejamento Familiar). Com isso, certas mulheres, que apresentam seus pedidos na 6ª semana, chegam à 11ª sem obter a permissão. Muitos protestos exigindo a simplificação da legislação vêm conquistando a atenção da população para o tema, mas sem efeito prático.
O principal para as candidatas, no entanto, continua sendo a carência de estrutura e meios. Em 2004, por exemplo, o governo alocou uma verba de 300 milhões de libras [pouco mais de R$ 1 bilhão] para as autoridades sanitárias locais, as chamadas Primary Care Trusts, que dispõem de autonomia administrativa e, por isso, decidiram gastar o dinheiro com outras demandas. “Elas investem em tratamentos considerados prioritários, como o das doenças cardiovasculares ou do câncer”, afirma Rebecca. Deste modo, embora cada IVG custe apenas R$ 17,13, os serviços de contracepção permanecem historicamente mal financiados.
A conseqüência disto é que o acesso à IVG gratuita está se tornando uma loteria. Em certas regiões, as mulheres precisam esperar muito mais do que as três semanas recomendadas pelo governo. Para cortar caminho, algumas pagam a operação do próprio bolso, despendendo cerca de R$ 2.100 em médicos particulares. Segundo estimativas da Family Planning Association, cerca de 13% dos abortos ocorridos em 2006 se deram desta forma. Ora, se R$ 2.100 não intimidam a classe média, eles representam uma quantia proibitiva para as mulheres pobres – mesmo na Grã-Bretanha.
Apesar destas dificuldades, as britânicas podem se considerar privilegiadas, em comparação com as habitantes do Leste. Lá, a taxa de aborto é altíssima para o padrão europeu: 44 por mil. Universal e gratuita, a IVG constituía, de fato, o principal meio de contracepção nos países do antigo bloco soviético (exceção feita à Romênia, onde o procedimento permaneceu proibido entre 1965 e 1989). Mas, desde o desmoronamento dos regimes comunistas, as mulheres vêm encontrando dificuldades crescentes para interromper a gravidez.
O primeiro obstáculo é o custo da operação, no contexto de privatização dos serviços de saúde. Na Hungria, onde os planos só dão cobertura às solicitações por “razões médicas”, a intervenção cirúrgica custa em média 100 euros [R$ 263] – cerca de um terço da renda mínima mensal, estimada em 273 euros [R$ 720].
Lobbies ligados às igrejas
O segundo obstáculo é a influência crescente do lobby anti-IVG, ligado principalmente às Igrejas católica e ortodoxa. Esses grupos exploram com sucesso o tema do declínio demográfico. Ainda na Hungria, pressionado pelos defensores do “direito de viver”, o governo limitou o acesso à IVG em 2001, impondo às candidatas duas entrevistas prévias. Na Rússia, as campanhas antiaborto vêm exercendo influência crescente desde o final dos anos 1990 e contam atualmente com o apoio do presidente Vladimir Putin. Em um discurso na Assembléia Federal, em maio de 2003, ele descreveu a questão demográfica como o desafio o mais importante a ser enfrentado pelo país5. Seu ponto de vista foi endossado pela maioria dos partidos políticos russos.
Nesse contexto, Alexandre Tchuev, deputado conservador, propôs uma lei visando suprimir a prática da IVG por razões sociais. Anteriormente, as mulheres podiam recorrer ao aborto pago pelo Estado em casos como desemprego e carência de recursos financeiros. Desde 2003, em decorrência da aprovação da proposta de Tchuev, o aborto passou a ser autorizado apenas em casos de estupro, prisão da mãe, destituição dos direitos maternos ou incapacidade do pai6.
O mesmo cenário pode ser visto na Polônia, onde o lobby fundamentalista conseguiu tornar o aborto praticamente ilegal. Desde 1997, ele é autorizado somente quando há perigo de morte para a mãe, se o feto tiver má formação grave ou se a gravidez resultar de estupro ou incesto. E, até mesmo dentro dessas exceções, a maioria dos médicos recusa-se a praticar a intervenção por temer processos judiciários7. Aqueles que são condescendentes cobram valores muito altos por seus serviços: de quatro a oito vezes o salário mínimo, que é de 311 euros [cerca de R$ 820]. A anestesia é cobrada à parte e sai por 250 euros [cerca de R$ 660]. Como, sem ela, a conta já é bastante alta, a maioria das mulheres prefere dispensar esse “luxo” e enfrentar a dor8.
Com tal quadro, o número de IVGs declaradas no país passou de 3.047, em 1997, para 199, em 2004. Ao mesmo tempo, os abortos clandestinos, com todas as suas mazelas, estão na faixa de 80 mil por ano.
Se os militantes anti-IVG no Leste europeu obtiveram uma série de vitórias contra os direitos das mulheres foi porque receberam apoio logístico e financeiro de seus homólogos dos Estados Unidos. Um exemplo é a Human Life International (Vida Humana Internacional), a principal associação católica antiaborto americana, que implantou uma base na cidade polonesa de Gdansk e começou a formar militantes em táticas de campanha contra a IVG9.
Nos Estados Unidos, o aborto foi legalizado em janeiro de 1973 pela sentença da Corte Suprema intitulada “Roe contra Wade”. Esta determinou que a decisão de interromper a gravidez cabia exclusivamente à gestante e seu médico. A sentença, em franca contradição com o conservadorismo norte-americano, foi logo questionada por uma série de leis federais. No mesmo ano, a emenda Church – do senador democrata de Idaho, Frank Church – permitiu que organismos ou indivíduos financiados pelo governo federal se recusassem a praticar a IVG por razões morais ou religiosas. Em 1977, a emenda Hype proibiu a utilização de fundos federais para financiar o aborto, exceto em casos de estupro, incesto ou risco de vida para a gestante. O financiamento da IVG passou a depender, então, inteiramente da boa vontade de cada governo estadual.
Mas os grupos antiaborto ainda não estavam satisfeitos. Durante os anos 1980, seus militantes engajaram-se em ações destrutivas contra os centros de planejamento familiar. E, na década seguinte, levaram suas práticas ainda mais longe, perpetrando sete homicídios e 17 tentativas de assassinato. Esses crimes obrigaram o governo federal a reprimir severamente toda intimidação dirigida aos médicos e suas pacientes. Em 1994, uma lei foi aprovada para proteger aquelas que buscavam os centros de IVG. Porém nada disso funcionou na prática. Durante a “Marcha pela Vida”, realizada em Washington em 22 de janeiro de 1995, um dos grupos fundamentalistas, a Coalizão Americana de Ativistas pela Vida, levantou cartaz com os nomes e endereços de treze “praticantes de aborto”. A partir de então, estes tiveram que viver sob proteção policial permanente10. Como os médicos americanos que praticam a IVG são uma minoria – apenas 2% dos ginecologistas –, é muito fácil identificá-los.
Diante desses ataques, o movimento “pró-escolha”11 permaneceu passivo. Aos poucos, os democratas foram incorporando certos aspectos do discurso anti-IVG dos republicanos. Hoje, uma grande parte de seu eleitorado pensa que o aborto é moralmente condenável – o que deixa os deputados e senadores mais conservadores à vontade para votar a favor de leis antiaborto. Se os democratas vacilam, os republicanos encontram-se cada vez mais mobilizados. Desde que se instalou no poder, em 2000, o presidente George W. Bush vem fornecendo apoio incondicional à cruzada anti-IVG. Seu governo financia prioritariamente os programas de abstinência sexual e vem efetuando cortes significativos nas despesas dedicadas à contracepção e à interrupção da gravidez. Além disso, a legislação tornou-se mais dura: os direitos do feto são agora iguais aos direitos da mãe12.
A administração republicana não só dificultou o acesso à IVG como também conseguiu proibi-lo parcialmente, desde a nomeação do ultraconservador Samuel Alito para ocupar um assento na Suprema Corte. Graças ao seu voto, em 18 de abril de 2007, a instituição baniu um método cirúrgico tardio de interrupção da gravidez, abrindo caminho para o questionamento dos próprios fundamentos do aborto. Em razão da ambivalência dos democratas, a vitória ideológica do campo anti-IVG é hoje total13. Em uma conferência que reuniu representantes dos centros de planejamento familiar do Estado de Nova York, a senadora Hillary Clinton declarou: “Nós todos podemos reconhecer que o aborto representa uma opção triste, e até mesmo trágica para muitas, muitas mulheres”. De fato. Contudo, mais trágico ainda é constatar que, sob o véu de cruzadas pelo direito à vida, se ocultam, em todo o mundo, práticas como os abortos clandestinos, o abandono de crianças e o infanticídio14.
*Anne Daguerre é pesquisadora na Universidade de Middlesex, de Londres, e pesquisadora-associada no CERI, Sciences-Po, de Paris.