Afeto é Verbo
Confira resenha do livro “Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão”, de Rachel Gouveia, publicado pela HUCITEC Editora
O mês da luta antimanicomial está chegando ao fim, mas a urgência de continuar o enfrentamento às estruturas de opressão social segue gritando. Os gritos são vocalizados por mães que transformaram o luto em luta. Mulheres negras, mães de filhos mortos pelo terrorismo de Estado, cujas vozes reverberam pelo megafone em forma de livro, lançado em 06 de maio de 2023.
“Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão”, publicado pela HUCITEC Editora, carrega o selo da Coleção Diálogos da Diáspora e é fruto do amadurecimento teórico de reflexões que acompanham, há tempos, a mulher negra-assistente social-professora-pesquisadora-militante antimanicomial, nas diversas encruzilhadas de sua vida.
Em algumas delas, vivendo sob a “lógica do encruzo”, nossos encontros permitiram que caminhássemos juntas. Por isso, tive a honra de ser testemunha da gestação dessa obra. Como se estivesse acompanhando os exames de pré-natal, li as versões do livro em construção. Elas vinham como se fossem imagens de exames de ultrassom, que mesmo sem a nitidez do filho parido, já permitiam o encontro com o brilhantismo de conceitos em elaboração e debatidos afetuosamente em jantares só encerrados quando as cadeiras do restaurante começavam a ficar de pernas para o ar.
O resultado da pesquisa de pós-doutorado, transformada em livro pela professora Rachel Gouveia, não se trata de ativismo sem teoria, nem de verbalismo sem prática. Mas da práxis de que falava Paulo Freire, a que é “ação criadora e transformadora da realidade”, porque eviscera as entranhas dos saberes do campo do direito, da psiquiatria e do serviço social, para explicar o modo pelo qual funcionalizam o racismo estrutural e, principalmente, para propor um caminho novo a ser trilhado, um que recupera as experiências de dor e resistência de mulheres negras mães.

A obra resgata o ontem, para entender o hoje e vislumbra o amanhã. Daí, chegar com a dedicatória “à minha ancestralidade” e com todas as entrelinhas sugeridas pelo ditado Iorubá, “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Entrelinhas que precisam ser (re)lidas, em toda a potência da circularidade que guardam, para serem farol no enfrentamento dos mecanismos da colonialidade do poder, do ser e do saber, historicamente instrumentalizados pelo direito e pela medicina, na “colonialidade do cuidado”.
O colonialismo jurídico conferiu, ao longo dos séculos, o respaldo legal para o saber científico psiquiátrico, chancelando-o na “neutralidade” da norma jurídica. O casamento entre loucura e violência geraram numerosa prole aprisionada na “zona do não ser”, aonde só chega o direito penal e o projeto genocida já enunciado por Ana Flauzina.
As reflexões da pesquisa desmascaram esses mecanismos, e a professora desenvolve a noção de “estado permanente de guerra” como produtor do “trauma psicossocial colonial”, que aciona a “máscara manicolonial” como resposta.
A “máscara manicolonial”, cuja imagem atualiza a máscara de flandres, instrumento de tortura que possuía orifícios para os olhos e nariz, mas impediam que as pessoas escravizadas ingerissem alimentos, bebidas ou que falassem, é conceito que atualiza a estratégia de controle e produção de morte em vida. Rachel Gouveia escuta as mães cujas dores foram amordaçadas por remédios e disciplinadas pela impunidade do sistema de justiça, forjado para sustentar os privilégios da branquitude.
É preciso lembrar que nós, pessoas brancas, também somos as herdeiras do processo da escravidão. Somos todos, pessoas negras (“herdeiros expropriados”) e pessoas brancas (“herdeiros beneficiários”), “partícipes de um mesmo cotidiano em que os direitos de uns são violados permanentemente pelo outro”. Conforme ensina Cida Bento, somos todos herdeiros de um mesmo processo histórico em que um grupo foi expropriado em benefício de outro.
O processo histórico da escravidão, nesse mesmo mês de maio e das mães, registra o 135º aniversário da abolição formal do regime jurídico que permitia que pessoas negras e ameríndias fossem tomadas por coisas de propriedade de outras pessoas. Mais de um século se passou, as estratégias se sofisticaram para manter os privilégios da branquitude e a subordinação social e racial de negros e indígenas, nos mesmos lugares sociais.
O livro denuncia essas permanências autoritárias, ao ecoar os gritos que a medicalização da dor aliada à impunidade do sistema de justiça tem o projeto de silenciar. Ele mostra que é preciso arrancar a máscara manicolonial. Não um arrancar com mais violência. Mas militante e responsavelmente, pelo cuidado da “clínica da delicadeza”, a fim de dialogar com o que as mães têm a dizer e, a partir de suas histórias de resistência, produzir o devido cuidado antimanicolonial.
O livro é corajoso, ético, sólido e refletido, por tantas razões. O mais impressionante é o modo como mobiliza o afeto, entendido enquanto afecção, o ato de afetar e de afetar-se. Ele é verbo e afeta quem o lê, porque a autora se permitiu afetar e atravessar pelas vozes das mulheres negras que continuam na mira do fuzil.
Patricia Magno é Doutora em Direito pela UFRJ. Defensora Pública do estado do Rio de Janeiro. Co-coordenadora do Projeto Encruzilhadas: diálogos antirracistas. Pesquisadora vinculada ao Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.