Mães de Acari: a luta jurídica no âmbito internacional
Confira a entrevista que encerra o especial 32 anos da chacina de Acari com Carlos Nicodemos, advogado que atua no Projeto Legal das Vítimas da Chacina de Acari. Desde 2006, ele acompanha os desdobramentos jurídicos do caso
A entrevista que segue foi realizada com Carlos Nicodemos, advogado militante que há anos atua com organizações da sociedade civil, entre elas, o Projeto Legal das Vítimas da Chacina de Acari e o Movimento Nacional de Direitos Humanos. Desde 2006, o advogado acompanha os desdobramentos jurídicos do caso Acari. Ao longo da entrevista, Carlos narra a trajetória jurídica do caso, sobretudo no que tange à tramitação no âmbito internacional, as falhas no inquérito, que foi arquivado, e as distinções entre políticas indenizatórias e políticas reparatórias, demonstrando, entre outras questões, os meandros da batalha jurídica.
Para começar, gostaríamos que você falasse sobre a trajetória jurídica do caso Mães de Acari e como ele foi parar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos?
Eu sou um advogado militante há muitos anos e, hoje, advogo para um conjunto de organizações da sociedade civil, entre elas o Projeto Legal e o Movimento Nacional de Direitos Humanos, que estão liderando o caso na questão internacional, com algum rebatimento em nível local. Em 2006, nós apresentamos, através do Projeto Legal, o caso na Comissão Interamericana. Quem acompanha a questão do Sistema Interamericano sabe que há uma crítica em relação à questão da morosidade. Ou seja, da falta de uma devolutiva mais rápida e objetiva por parte do sistema. Resultado: somente agora, 16 anos depois, tivemos, no ano passado, uma posição da Comissão no que diz respeito não só à admissibilidade, mas um relatório de mérito sobre o caso, que aponta um conjunto de medidas, em caráter reparatório, para as famílias.
Faço aqui um parêntese: a gente, hoje, tem um grupo no WhatsApp com todos os familiares, onde reportamos todas as ações que foram feitas e desenvolvidas em torno do caso, que agora conseguiu um impulsionamento, especialmente a partir dessa internacionalização, que, volto a dizer, é de 2006, mas com resultado agora. Houve, então, esse relatório, com um conjunto de medidas, que foram apontadas pela Comissão Interamericana. Entre elas, a questão da indenização individual; a questão de medidas de não-repetição, como políticas públicas e leis; a questão da retratação; a questão dos documentos de óbito; o acompanhamento psicológico e médico para as vítimas etc. Nós fomos para uma rodada internacional com o Estado Brasileiro, depois, duas locais, e a CIDH resolveu judicializar. A gente alimentou a Comissão, dizendo que evoluía pouco e evoluía mesmo. Por quais motivos? Imaginamos que seja em razão da própria falta de compromisso do Estado em relação a temas como esse. E foi aí que a CIDH resolveu judicializar. Salvo engano, no dia 19/02/2022, foi encaminhado para a Corte Interamericana.
O que significa a judicialização na Corte Interamericana?
A Comissão é uma instância anterior à Corte. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é dividido em duas instâncias: uma instância mais administrativa, que é a Comissão; e a Corte. O indivíduo, a pessoa, não pode mitigar a Corte, a gente não pode. Somente a Comissão e os Estados podem apresentar casos na Corte. Quando a Comissão encaminha para a Corte é porque ela esgotou as vias dela, em termos administrativos, para poder o Estado honrar com aquilo que é responsabilidade dele. Então, ela judicializa, ela manda para a Corte, uma instância acima, e a Corte opera um processo que daí vira uma sentença. E essa sentença tem vinculação, ela tem obrigação de cumprimento, porque o Brasil reconhece a Corte Interamericana. Nós tentamos solução amistosa com o Estado no âmbito da Comissão. Como falei, foram várias rodadas de reuniões. Portanto, o caso está agora na Corte. A gente apresentou, tem mais ou menos uns 15 dias, os documentos iniciais, as considerações iniciais. Haverá audiência, ratificação, oitiva de testemunhas etc.
Paralelamente a isso, o caso ganha impulsionamento político com duas iniciativas legislativas. Uma no Estado do Rio de Janeiro, que já é lei, virou lei. É uma lei que determina a indenização e o memorial para os familiares. Na semana passada, eu protocolizei na Secretaria de Atenção às Vítimas, aqui do Estado, a lei. Perguntando: e aí, como é que a gente faz? Onde é que a gente comparece pra pegar as indenizações? E estamos esperando uma resposta da Secretaria. É uma Secretaria Especial de Atenção às Vítimas, então, estamos aguardando essa posição. A deputada Talíria Petrone também apresentou um Projeto de Lei e uma resolução. A resolução é para poder dar um nome de um corredor na Câmera de Deputados, de “Mães de Acari”, e também uma indenização nacional, federal. Então, uma estadual e outra federal. São indenizações que obedecem ao mesmo padrão, pagamento de uma pensão mensal no valor de um salário mínimo, com um salário correspondente a cada expectativa de vida. Há essas duas iniciativas legislativas e há um conjunto de inúmeras questões para trabalhar no caso. O caso é de altíssima complexidade, há um júri aberto em relação ao episódio da Edméia, que ainda não foi julgado e está parado no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). A gente tem o processo na íntegra, em que temos que analisar para saber se houve ou não omissão ou conivência por parte de agentes públicos, para poder transformar isso em um outro inquérito. O fato em si não corre risco de prescrição porque como estão desaparecidos, a gente sabe que o crime se prolonga no tempo, então, não há um marco temporal inicial da prescrição. Em relação às reparações, nós temos esses dois projetos de lei e o processo na Corte Interamericana.
Você faz a narração do caso a partir de 2006 na alçada internacional. Mas, do ponto de vista local, como é a trajetória jurídica do caso desde 1990? E quando você fala que o caso não tem prescrição, ele não tem prescrição segundo o Direito Internacional?
Sim, o caso está arquivado. O caso, em si, está arquivado. O caso que está aberto é do homicídio da Edméia, que é um caso correlato. Está para ser marcado um júri. Respondendo a essa pergunta da questão da prescrição, é um caso típico de desaparecimento forçado. Nós [o Brasil] somos inclusive signatários da Convenção em relação ao desaparecimento forçado, mas o Brasil não reconhece o sistema de comunicação do sistema de desaparecimento forçado internacional, o que é grave. Inclusive, numa audiência pública em que nós estivemos, a gente mencionou isso e essa seria uma boa medida a ser trabalhada e perseguida: a questão do Estado brasileiro rever a sua posição e reconhecer o sistema de comunicação internacional. O que acontece? Eu tenho vários casos no Sistema Interamericano, vários casos de inquéritos não investigados. O inquérito, quando arquivado, não há na legislação brasileira um recurso judicial para desarquivá-lo. Então, o que acontece? Quando ele é arquivado, evidencia-se o exaurimento das vias internas, o esgotamento das vias internas, porque eu não tenho como compelir um juiz a desarquivar e deixar desarquivado. Até porque ele é arquivado exatamente em razão da compreensão de que não há mais como investigar, apurar, chegar nos seus autores etc. Se nós entrarmos no inquérito, veremos que existem vários buracos em termos de investigação. E que isso também seria evidência para invocar o artigo 25 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que diz respeito à chamada proteção judicial. O artigo 25 diz que a todo cidadão americano é dado o direito de ter proteção judicial frente ao Estado. Então, houve esse esgotamento que permitiu, em 2006, apresentar o caso internacionalmente. Paralelo a isso, essa regra que eu estou dizendo, de que não há uma prescrição em curso, é porque os corpos estão desaparecidos, a gente sabe que eles foram a óbito, mas não serão localizados. Enquanto eles não aparecerem, está caracterizado o desaparecimento forçado e o desaparecimento se prolonga no tempo. Ele vai se prolongando no tempo, não há um esgotamento; como todo o caso de desaparecimento forçado, não é possível haver uma demarcação da prescrição. Só poderia se contar a partir do momento em que o corpo aparece e aí você tem um homicídio, começando a contar o prazo prescricional. Tecnicamente é isso.
Você mencionou que houve várias falhas no inquérito. Você poderia nos contar alguns dos principais problemas identificados?
Na verdade, quando eu apresentei a denúncia em 2006, eu já apresentei com ele arquivado. Para mim, o fato principal era o arquivamento dele, o que por si só denotava o esgotamento da via interna e a ausência de uma proteção judicial por parte do Estado. Mas, em várias matérias, fica evidente que houve uma operação para que não se chegasse a uma conclusão. Em razão, inclusive, do envolvimento de determinadas autoridades policiais em relação ao caso. A questão da prova pericial, a questão dos locais apontados como de desova dos corpos, a questão da oitiva de determinadas testemunhas. Então, há um conjunto de questões que estão colocadas no inquérito, que naturalmente apontaram para uma não elucidação. Uma questão que está pendente, agora, é analisar quem ou quais autoridades se omitiram e não cumpriram o dever de ofício na investigação, porque isso pode ser um pedido a ser formulado nessa ação internacional a título de responsabilização dos seus autores.
O Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra o desaparecimento forçado de pessoas, mas, como você diz, ele não reconhece o sistema de comunicação internacional de desaparecimentos forçados. O que isso significa?
Os tratados e as convenções, se eles não tiverem um mecanismo de monitoramento, eles não servem para nada. Então, você pega, por exemplo, a Convenção dos Direitos da Criança. Há um comitê e um sistema de comunicação. O Brasil é signatário do Comitê e ele se submete aos relatórios do Comitê. Assim como o Brasil é signatário da Convenção Interamericana de Direitos Humanos da OEA e ele reconhece a competência da Comissão e da Corte. Ele se submete. No tema do desaparecimento forçado, o Estado brasileiro não reconhece. O decreto legislativo que incorporou a Convenção ao nosso ordenamento não reconheceu o sistema de comunicação, então, se queremos denunciar internacionalmente um desaparecimento forçado, temos que ir para o sistema de comunicação global da ONU. Global! Não específico! Aí, você deixa no meio do caminho toda a identidade política do debate do desaparecimento forçado. Então, como eu disse na audiência pública, essa é uma questão a ser perseguida, especialmente com o tema do desaparecimento forçado. Essa é uma questão importante que deve ser pensada.
A categoria desaparecimento forçado tem toda uma história ligada às ditaduras, ao estado de exceção. Por outro lado, segue sendo uma prática recorrente, sobretudo no contexto de expansão das milícias. Que leitura você faz do uso político dessa categoria atualmente?
Eu acho que há três grandes momentos. Em termos do conceito político internacional, o conceito de desaparecimento forçado ou o debate sobre desaparecimento forçado, esteve e ainda está muito vinculado a uma ideia de um chamado Estado de Exceção, dos chamados Estados Ditatoriais, que dizem respeito a um momento histórico que nós passamos, por exemplo, no Brasil, e que reivindica um debate bem amplo que vai desde a elucidação, mas também da questão da memória com uma alta densidade política e tudo mais. Nós tivemos uma transição e depois o processo de redemocratização do Estado brasileiro, e esse conceito sofreu alguns ajustes, que no meu ponto de vista precisariam ter sido melhor conduzidos. Não é à toa que não reconhecemos o sistema de comunicação da ONU, como também não temos um conceito de criminalização de desaparecimento forçado propriamente dito.
Mas o debate sobre o desaparecimento forçado tem um fundo ideológico, em relação a quem o pratica, como agentes do Estado, que vem da ditadura e ganha um outro contorno na conjuntura atual, dentro dessa transição que ocorreu. Hoje, essa questão é da segurança pública. Porque aquela premissa de que: “não há corpo, não há crime”, ela foi superada tecnicamente, mas, por outro lado, também permite a apropriação pelo chamado crime organizado contemporâneo, de trabalhar esse conceito como uma estratégia inclusive de poder. Então, é bem complicado. Eu tenho uma posição que é em relação à questão da criminalização, que é uma posição cuidadosa. Eu acho que a gente tem que ter um olhar muito focal.
No caso do desaparecimento forçado das Mães de Acari há inúmeras questões e recortes identitários: a questão da violência, a questão de gênero, a questão da criança, a questão da violência na favela, a questão racial, a questão da violência policial, do racismo estrutural. Você tem aí múltiplas dimensões de violências e que você tem que tomar cuidado para não deixar tudo isso emergir em nome de um debate genérico de desaparecimento forçado. Então, não discutimos somente o desaparecimento forçado. Na verdade, ele é um meio de violência perpetrado a partir desse conjunto de identidades, que é o caso, por exemplo, das Mães de Acari. Você não pode deixar isso ser apropriado por essa ideia de desaparecimento forçado e não fazer o debate de fundo com todas essas questões identitárias.
Em outras ocasiões, nós vimos você falar que as políticas indenizatórias são insuficientes. Gostaríamos que você comentasse essa distinção entre indenização e reparação.
Pois é. Esse é um cuidado que temos, não somente em relação a esse caso, mas a tantos outros, porque esse conceito de justiça que se reivindica, ele não pode ser monetizado. Então, a gente redimensiona sempre o conceito que é dado. Ah, o que se reivindica são indenizações? Não são indenizações, são reparações. E aí, temos o conceito de reparação para além da fronteira da indenização. A indenização é apenas um capítulo da reparação. A gente trás como elementos de reparação desde questões de caráter individual até de ordem coletiva, como, por exemplo, o memorial, que é um desafio para os familiares no caso Mães de Acari. Porque já se sugeriu várias coisas, nomes de rua, busto, agora a proposta de nomear uma ala da Câmara de Deputados. A ideia de reparação tem nuances individuais, mas tem também nuances coletivas. O tema da política de reparação foi um tema muito tenso nas mesas de negociação que a gente fez no caso Mães de Acari, porque o Estado brasileiro ofereceu na mediação com um membro da Comissão Interamericana editar leis: “Vamos editar leis para reparar, para não haver repetição”. Eu falei: “Ah, não, leis, não. Políticas! Políticas públicas! Orçamento, políticas públicas, programas identitários. Nós não estamos aqui só pra falar de desaparecimento forçado, mas de múltiplos temas...”. Então, reivindicamos recurso público investido para essas políticas. Esse é o debate. Sempre utilizamos essa expressão e operamos com essa dimensão da reparação. A reparação coletiva, difusa, estrutural, que possa repercutir em termos de políticas públicas, de ações educacionais e que garanta, efetivamente, uma reparação ao caso.
Fábio Araújo é sociólogo e editor do Radar Covid-19 Favelas – Fiocruz.
Fábio Mallart é sociólogo e pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ). É integrante da equipe Radar Covid-19 Favelas – Fiocruz.
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Este especial é uma parceria Le Monde Diplomatique Brasil e Radar Covid-19 Favela – Fiocruz, cuja equipe é composta por Fábio Araújo, Marina Ribeiro, Fábio Mallart, Larissa França, Raimundo Carrapa, Emerson Baré, Mariane Martins, Luciene Silva e Paulo Roberto Ribeiro.