Ainda escrever – anotações sobre algum sentido para o texto
Cantor e compositor, Candeia mostra usos para o livro que superam o exibicionismo intelectual. Leia no novo artigo da série Entrementes
Atenção, falta foco para as entranhas de parágrafos, linhas e palavras. A cada pontuação, a leitura está sob risco: uma publicidade insistente, outra recordação de afazeres, prematuro cansaço – a frequência dos convites ao abandono faz com que o desvio seja vulgar, com aparência de naturalidade. A contrapartida é explícita; com leitores desgastados, a atitude de escrever tem mérito, função e repercussão questionáveis. Em curioso impasse, aliás, é bastante aceitável a hipótese de que atualmente a relação com os textos seja mais comum e difundida, ainda que somente por legendas e frases curtas.
Às vésperas da abertura, a Paralimpíada convive com silêncio internacional; Rebeca Andrade ensinou o Brasil a comemorar a prata antes de chegar no topo; Jogos Olímpicos escancaram um país neopentecostal em ano de eleições municipais; França encena normalidade a céu aberto após avanço da extrema direita – qualquer chamada, dias depois, está superada. Talvez apenas em um intervalo de horas. O influxo caótico de informação pode provocar expectativa, melancolia, excitação, desorientação. Mas o efeito automático é mesmo um súbito afastamento de leituras longas. As letras parecem repelir.
Exigem empenho. Não entretêm de imediato: requerem tempo. O volume de gigabytes consumidos em vídeos e fotos faz com que os caracteres soem estáticos. Em maré incessante de estímulos, a permanência das palavras gera estranhamento: parece peça de máquina em versão antiga. O funcionamento tem coerência no sistema para o qual foi projetado. Para hoje, dá a impressão de antiquado. Tendência exclusiva para clubes letrados, charme de poucos que dominam um idioma exótico. Ao livro se mostra a opção de ser etiqueta para diferenciação, rubrica de cosmopolitismo ou sinal de sofisticação. Não, o texto não é vintage.
Escrever é tratar com o caos – da agonia com a página em branco à leitura das próprias palavras, agora externas e incontroláveis. É uma agressiva experiência que dá pistas sobre como lidar com cacos espalhados, inclusive de imagens. Ainda que sem promessas de salvação, a familiaridade com o texto impresso, ou projetado em qualquer tela, oferece na pior das hipóteses fôlego. É um atributo e tanto. Historicamente, a associação é com o poder: onipotência divina, viabilidade eleitoral, reconhecimento cultural. Também é uma maneira de se relacionar com a multidão.
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O pensamento social brasileiro é marcado por grandes oradores. Abandone a dicção perfeita, a respiração intocável e a postura altiva: esses autores, enquanto tribunos, eram capazes de conquistar as audiências justamente por seus maneirismos. A pronúncia vetusta de Gilberto Freyre, a ansiedade das afirmações de Darcy Ribeiro ou a radicalidade ponderada de Florestan Fernandes apontam para a capacidade de articular plano e execução. Não à toa os três conseguiram pelo voto cadeiras no Congresso Nacional. Outros casos assinalam que, no Brasil, escrever é quase indissociável da oralidade.
O senador Abdias do Nascimento, para quem o teatro atrelou estética à política, e o fundador do Partido dos Trabalhadores Antonio Candido, que melhor denunciou a exibição fantástica em viva voz dos grandes escritores brasileiros ao longo da história, explicam que é um equívoco imaginar uma hierarquia entre livro e fala. A esses exemplos se somariam diversos outros, mais distantes das corridas eleitorais, como os de Nelson Rodrigues, na televisão para pensar o futebol, ou do humorista Jô Soares, no auge da rotina dos talk shows noturnos quando lançou seus romances.
O caminho inverso sugere respostas. Depois de conquistarem grandes públicos com a oralidade que marca a canção no Brasil, artistas da música popular lançaram livros. Além do ensaísmo de Caetano Veloso ou do romance de Chico Buarque – mais recentes e consagrados –, existe uma linhagem de compositores que decidiram legar palavras impressas para o público. Do rap ao rock, cantores escreveram obras fundamentalmente baseadas em memórias, direcionadas à curiosidade dos fãs. Em alguns casos, o propósito é experimentação poética. Em outros, a proposta é voltada para crianças.
Há parâmetros de civilidade no texto que não estão confinados no que foi impresso em folha ou projetado na tela: a contação de histórias, a narração de feitos épicos e o anúncio da purgação vindoura detêm essa meia dúzia de atributos e estão por aí, na canção popular, na novela e no culto da televisão. Capacidade de abstração, possibilidade de expor ou reagir a argumentos, aptidão para suspeitar do autor e proficiência para apresentar, ainda que com simplicidade, esboços ou fragmentos por escrito estão entre essas competências que a princípio facilitariam o convívio democrático, a própria ideia de res publica.
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O samba esgarça as bordas do intelectualismo: Martinho da Vila talvez seja o escritor mais prolífico da cultura popular, embora não receba a devida aclamação – sufocado pelos ruídos do Brasil preconceituoso e bacharelesco. Com olhar rigoroso e despretensioso, o sambista escreve sobre a sociedade com prisma distinto. Com bibliografia infinitamente mais sintética, é Candeia quem sussurra o avesso do pensamento social brasileiro. Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz, escrito em parceria com Isnard Araújo, é um libelo pela liberdade do carnaval. E de autoria de um símbolo da festa popular, nos anos 1970.
Policial afastado das atividades desde que um tiro lhe deixou paraplégico, Candeia esquadrinhou uma genealogia das escolas de samba a partir da Portela para assinalar os desvios da cultura popular nos rumos do consumo. Nesse percurso, descreveu a vida associativa no processo de urbanização do século XX: tarefa a que grandiloquentes intérpretes do Brasil haviam se dedicado anteriormente. Se pelos versos o sambista cantou um povo violentado que reagia bravamente, no mercado editorial o autor cristalizou o projeto alternativo à mercantilização dos desfiles.
Candeia força as fronteiras da cidadania, formal e afastada da vida comum, quando se aventura com o livro-manifesto a vasculhar o que desses ideais de democracia ainda se sustenta. Documenta os detalhes da proposta comunitária nas escolas de samba, das batidas de porta em porta para arrecadação à organização disciplinada da ala das baianas. Torna a impermanência da cultura popular, em trânsito, um legado a ser revisitado. Grita as orientações políticas do texto: Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz chegou às livrarias na ditadura e foi relançado recentemente, pela editora Carnavalize.
Isso desintegra a imagem de páginas quietas, cobertas por capas concisas guardadas em austeras bibliotecas. O choque entre o presumido silêncio do livro e a ruidosa cultura popular no Brasil alcança outro nível com Candeia. A tentativa de trazer para o texto o barulho de ruas, disputas contra as frentes de controle, negociações com as autoridades e principalmente a sonoridade, como efeito colateral desse processo que acompanha a história do país no século XX, é uma direção até para os escritos em geral. Congregar projeto político e intensidade, prazer e densidade – algum sentido, portanto, para escrever e ler.
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O sentido remete às escrituras sagradas, é anterior à difusão bíblica em linguagem vernacular. Antes, quando apenas em latim era possível recorrer aos livros dos apóstolos, o texto era a materialização da verdade – relíquia restrita a poucos, mantida em mosteiros aos cuidados de escolhidos. Os registros que circulavam pelas mãos de gente comum eram banais, no máximo imitavam a liturgia e o significado dos sacros registros em poder da Igreja Católica em Roma. A versão oficial, revestida de seriedade, lidava assim com a palavra. Juntos, Lutero e a tipografia rasgaram essa visão.
Passou a ser possível reproduzir em escala maior textos e, ainda em paisagem divina, a reforma protestante distribuiu a bíblia abertamente, para interpretação de fiéis e novos sacerdotes. Em língua portuguesa, alemã, francesa ou inglesa, a palavra se rachava diante de diferentes visões – o bloco sólido que ergueu a visão de mundo cristã se fragmentava ainda em busca da verdade e, no limite, da salvação. Entre acusações mútuas de profanação e desvirtuamento, a Europa exportou para o mundo o peso do pecado durante as violentas passagens da Reforma e da Contrarreforma.
De certa forma, as universidades herdam esses valores sagrados da verdade: espaço restrito em que poucos escolhidos, encastelados, trabalham com registros cercados por ritos e cerimônias. Daí o caráter excludente que, apesar de esforços das últimas décadas no Brasil, ainda se mantém para o Ensino Superior. São tendências históricas milenares, contrapostas por iniciativas tímidas – abaladas por rompimentos autoritários, crises econômicas e perseguições políticas desde 2013. Mas o trato com o texto enfrenta mesmo é uma profunda dessacralização com a modernidade.
A grande desconfiança – para Nietzsche, na vontade, no poder e na crise da linguagem; para Freud, na busca incessante pelas expressões do inconsciente; para Marx, na associação com o problema da produção. E, desde o século XIX, o texto, as práticas de leitura e a escrita se deparam com o impasse da significação. Os vídeos de segundos, as legendas em duas palavras e as figurinhas nas plataformas são aceleradas manifestações desse estilhaçamento. Mas tudo isso, no máximo, ressoa baixo no pagode da esquina pelo autofalante de um dos celulares em torno da roda.
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.