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Os recursos do audiovisual são distribuídos de forma desigual, e muitas vezes não justos aos custos trabalhistas e ignoram o debate sobre a prática de direitos laborais
Nos últimos meses, cartas abertas e declarações de diversas instituições e sindicatos da classe cinematográfica têm sido enviadas ao Ministério da Cultura (MinC) e diretamente ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Elas reivindicam, além de melhorias e transformações no campo laboral, a democratização de acesso e transparência na gestão dos recursos culturais anunciados com muito entusiasmo pelos representantes do MinC.
A Associação Brasileira de Cinematografia (ABC) com sua recente carta de repúdio, reflete a insatisfação com as desigualdades estruturais de gênero que ainda permeiam o setor audiovisual, enquanto a BRAVI (Brasil Audiovisual Independente) e a APACI (Associação Paulista de Cineastas) exigem ações mais concretas e inclusivas. Já a carta aberta do setor audiovisual brasileiro ao Governo Federal destaca preocupações sobre as recentes políticas públicas, especialmente relacionadas ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que, segundo os signatários, têm sido conduzidas sem critérios técnicos claros e com decisões que desconsideram o impacto econômico e cultural do setor. Também aponta a necessidade de fortalecer os polos de produção existentes no eixo Rio-São Paulo, que concentram a maior parte da infraestrutura e empregos, enquanto defende uma política de regionalização que seja estruturada, planejada e acompanhada de investimentos consistentes em outras regiões fora do eixo central do país.
Vários grupos do setor reivindicam a regulação do mercado de VOD (streaming) e a taxação CONDECINE (pauta importantíssima para nossa autonomia criativa diante das imposições estrangeiras), a renovação e ampliação dos mecanismos da Lei do Audiovisual (Lei nº8.685/1993), além de maior previsibilidade e planejamento nas políticas públicas, com cronogramas claros e metas objetivas. Com isso pedem a valorização do conteúdo nacional como estratégia de preservação da identidade cultural e soberania do país, bem como o fortalecimento das empresas produtoras para que possam competir em mercados internacionais.
As leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, criadas respectivamente em 2020 e 2023, representam avanços importantes na tentativa de democratizar o acesso a recursos culturais em um contexto de crise acentuada pela pandemia de Covid-19. Em 2024, os investimentos das Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo continuam a ser implementados com cifras consideráveis, mas que ainda levantam questionamentos quanto à sua eficácia estrutural. A Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) prevê um total de R$15 bilhões em ações culturais até 2027. Em seu primeiro ano de execução, a PNAB já distribuiu R$2,98 bilhões a estados e municípios, com destaque para a aplicação significativa na região Nordeste e projetos diversificados, como o financiamento de espaços culturais e a realização de produções audiovisuais e artísticas em todo o país.
No entanto, mesmo com esses dados, valores expressivos e as mobilizações do setor, a crítica se mantém sobre o caráter de fachada e populista com a distribuição desigual desses recursos, que muitas vezes não cobram de forma justa os custos trabalhistas e ignoram o debate sobre a prática de direitos laborais.
Essas iniciativas ainda são frágeis porque em um país condicionado ao meritocratismo e ao elitismo oportunista, orçamentos discrepantes acabam por privilegiar alguns determinados grupos sociais e essas cartas, em seu conjunto, acabam por revelar de maneira inequívoca que o setor está subjugado a ganância oriunda do sistema liberalista, absolutamente competitivo em suas reivindicações particulares e negligenciam qualquer espírito de luta coletiva em direção ao horizonte de interesses comuns: o de mudanças estruturais concretas e amplamente sociais.
Talvez seja interessante, neste caso, não ignorarmos o caráter coronelista que persiste no Cinema Brasileiro, desde os tempos de Humberto Mauro (1897-1983), cineasta mineiro considerado o pai do cinema no Brasil. Em uma entrevista em meados dos anos setenta, Mauro comentou que, com ele, as pessoas geralmente pagavam para trabalhar. Na ocasião, ele até se declarou “generoso” por não ter cobrado de alguns atores e atrizes para que pudessem atuar em suas produções.
Essa mentalidade ressoa hoje em como o poder — seja ele financeiro, artístico ou institucional — regula de maneira feudal o que acontece na indústria, nas plataformas e nas vitrines nacionais ou internacionais, com hierarquias que se impõem de forma direta ou invisível, mas sempre poderosas e validadas por bajuladores.
É nesse sistema autocrático e quase imperial que fermenta um paternalismo histórico, sentido a cada contrato, concessão, ou novo gesto macro na política pública cinematográfica e também na micro política trabalhista. Essa mentalidade liberal pode ser perigosa. A realidade da produção independente não necessariamente equivale a do realizador ou realizadora independente. Estes últimos, lidam no Brasil com o mal estar de acessar recursos mínimos via fomentos paliativos e acabam sendo obrigados a replicarem, na prática da realização, o gesto patronal da exploração.
Os orçamentos restritos nunca permitem que profissionais sejam remunerados de maneira justa, conforme as tabelas industriais propostas por sindicatos e associações de classe. E no caso das produtoras independentes, provocam o surgimento de novos monopólios em regiões dentro ou fora do eixo sudestino – quase sempre liderados por pessoas herdeiras oriundas desses centros ou por aquelas que são de outras regiões não centrais, mas que com mentalidade autocrática e carreirista, encarnam o viés chauvinista na produção, associados a grandes empresas e grandes produtoras. Acontece é que se a maior parte do “bolo” anunciado pelo Governo for direcionada para o Norte e Nordeste, e vai haver uma grande migração de produtoras independentes no eixo Rio-São Paulo e seus representantes oportunistas, com suas parcerias, para tais regiões – esmagando qualquer resquício de política democrática superficial. Os acumuladores serão os mesmos de sempre. Os nichos regionais como territórios para novos e velhos coronéis.
Isso ocorre porque, diante da concentração histórica de renda e poder nas mãos dos barões do cinema, sejam eles os bilionários da retomada – onde o Oscar é o horizonte implacável e salvacionista, para não dizer entreguista – ou os cipaios do Cinema Novo, os recursos são distribuídos de forma desigual, perpetuando ressentimentos no setor e dando consistência às gestações de hierarquias, além de respingar através da política populista do extravio, o gesto coronelista tão comum e perpetuado no Brasil.
O realizador e a realizadora independentes, sem alternativas viáveis, se vê em dois caminhos extremos: o de acúmulo de capital para garantir a sobrevivência no seu desespero liberal e, em sua maioria absoluta, o de trabalhar com equipes sub pagas e de recorrerem a práticas de auto sacrifício, contribuindo para um ciclo de precarização que afeta tanto a qualidade de vida dos trabalhadores quanto a sustentabilidade da própria indústria cultural.
Na micropolítica do trabalho no setor, ao que se refere ao indivíduo no meio desse céu de interesses obscuros, a obediência dos contratados, dos prestadores de serviço, é “recompensada” conforme o nível de sua performance e submissão ou alienação, como se tudo estivesse sob o mais perfeito controle. Para os poderosos, de fato, tudo está sob controle, incluindo as relações de poder que perpassam gerações, diante de um nepotismo já mapeado.
A subjetividade coronelista reflete nas ações governamentais e na organização do trabalho. Os que não se curvarem aos abusos ou à exploração moral, logo percebem que a resistência tem um preço alto, e que o tema do humanismo só serve na retórica pequeno-burguesa. Até porque um dos aspectos mais sérios e desumanos é a saúde mental desses trabalhadores e trabalhadoras, aos quais sem nenhum suporte jurídico-trabalhista, ficam à mercê da própria sorte e são explorados mesmo com suas vidas por um fio. “Tá doente? Mas você não vem trabalhar amanhã?”
A inteligência do prestador ou prestadora de serviço, já subjugados pela lógica reformista equivocada de ser “patrão de si mesmo” sem amparo público, é constantemente manipulada e persuadida, como se o sistema quisesse convencer que ele ou ela ganha mais do que os contratantes, ou que estivessem em um mesmo patamar meritocrático, ignorando os acúmulos simbólicos e capitais das classes mais bem amparadas e enxertando a ideia de que trabalhar não cansa. Afinal, cinema é puro amor, poesia e invenção.
O paternalismo e a má-fé sustentam essa lógica opressora aos trabalhadores, escondidos sob discursos de “irmandade” e “acolhimento” de mercado, mas que só servem para reforçar e restabelecer a ordem burguesa. É como se a indústria da arte e do entretenimento estivesse fazendo um favor a essas pessoas, por permitirem estarem ali – mesmo quando elas oferecem tudo de si para sustentar suas produções e funcionamento.
Submetidos aos piores comportamentos humanos disfarçados de boa consciência, em jornadas que às vezes ultrapassam a escala seis por um, chegando a sete por sete, com dez, doze, quatorze horas de trabalho diário. No set de filmagem ou numa ilha de edição, na maquinaria ou no transporte. O caráter mais perverso do capitalismo se revela nessa cachoeira de explorações e desigualdades sociais no cinema brasileiro enquanto o setor do Agronegócio e seus coronéis, se organizam e se consolidam de acordo com o interesse primordial do Governo, para facilitar e angariar todos os bilhões de reais possíveis.
A lucidez e a consciência podem ser desoladoras e matar. Assim como o excesso de trabalho injusto e sem direitos trabalhistas, que perdura desde que o cinema é cinema. E o peso desse aparelho não é igualmente distribuído.
É a fome original, não sonhada ou sentida, mas usada como produto para o estrangeiro, sem taxações e sem a valorização do trabalhador e trabalhadora brasileiros.
A política pública, em diálogo com a sociedade brasileira, poderia agir para corrigir esses desvios históricos. O cinema, e toda expressão artística de um país, poderia ser reconhecido não apenas como força cultural e econômica, mas como prática anticolonial.
Queremos a distribuição de subsídios, mas também queremos desconcentrar renda. Criar uma estrutura pensante que permita a todas e todos a contribuírem dentro de um ambiente cultural justo, independente e com privilégios destruídos.
As regulações e os fomentos precisam ter impacto real e não fake, de fachada. Sem populismo ou superficialidades. Fazer do Cinema Brasileiro uma expressão cultural vibrante e uma indústria sólida, fortalecendo a economia, mas também capaz de resistir às pressões internacionais e principalmente: respeitar o maior dos seus patrimónios, os seus trabalhadores e trabalhadoras.
Cinema é cachoeira? Cinema é trabalho.
Renato Vallone nasceu e cresceu no subúrbio do Rio de Janeiro, é um montador premiado com 21 anos de carreira, focado nos últimos 15 em cinema autoral, trabalhou com Geraldo Sarno, Ruy Guerra, deu aula na Escola de Cinema Darcy Ribeiro e EICTV (Cuba), dirigiu o curta “CENTELHA” (Vencedor no FiDOC AMAZÔNIA 2022) e montou “A QUEDA DO CÉU” (Quinzena dos Cineastas, Cannes 2024).