Algoritmização como ferramenta de poder e controle
O fenômeno vai além do trabalho e marca uma nova fase do capitalismo, em que a vigilância é constante e o indivíduo é explorado ao máximo por meio dos seus dados
A algoritmização trouxe uma nova formatação para a economia digital, em que o uso dos algoritmos são frequentes para controle e vigilância social. Tal fenômeno permitiu que trabalho, consumo, comunicação e relacionamentos fossem feitos por meio de aplicativos e que empresas pudessem ter amplo domínio econômico, político e social. Mais pessoas recorrem aos aplicativos para garantir alguma renda e fugir do desemprego e acabam reféns de um robô como chefe, que controla longas jornadas de trabalho. Enquanto tudo isso acontece, governos não criam condições de proteção para essas pessoas, permitindo que a algoritmização construa monopólios de clausura social.
Ao abrir uma rede social, a entrega de conteúdo é feita a partir dos interesses do usuário. Isso se repete nas plataformas de streaming, que oferecem os filmes, as séries e as músicas mais adequadas ao gosto do dono da conta. Assim, a algoritmização permite conectar demandas e ofertas em um ambiente virtual, em que os algoritmos são responsáveis por intermediar relações de consumo.
Ao compreender a força e o poder dos algoritmos, é possível afirmar que vivemos uma nova formatação da Economia Digital. Se, antes, o processo de digitalização estava concentrado em automações e equipamentos, avançamos para uma estrutura mais robusta de inteligência artificial em que algoritmos são os protagonistas.
Para além das relações de consumo, os algoritmos hoje são capazes de mediar e gerenciar o trabalho, como um chefe imaterial que pode bonificar ou punir trabalhadores, bem como substituir profissionais em determinadas funções e postos. Há, portanto, uma mudança na forma do trabalho na Economia Digital.
O trabalho algoritmizado (de forma geral e universal) apresenta um deserto de direitos, a começar pela falta de regulação e regulamentação, o que resulta em profissionais precarizados e sem garantias mínimas como salário, férias e previdência. Ainda, esses trabalhadores devem arcar com custos operacionais, como combustível, celular, seguros e impostos, como IPVA.
Em outubro de 2023, o IBGE publicou uma pesquisa sobre “trabalhadores de aplicativo”, indivíduos que majoritariamente se concentram nas atividades de transporte de passageiros e entrega de comida. Um importante estudo que mostra o cenário desse tipo de trabalho em todo o Brasil, apontando salários, raça, gênero e horas de trabalho em cada região do país.
Porém, é preciso dar destaque para alguns pontos da pesquisa, a começar pelo conceito de “trabalhador plataformizado” que é uma ideia limitante sobre a atividade. É como se um aplicativo fosse algo etéreo e que os indivíduos ali são agraciados com uma renda a partir de um ofício realizado. A plataformização constrói uma ideia de um ambiente estruturado e rígido, orientado em rede, em algo colaborativo e sinérgico. Na verdade, as plataformas de trabalho são “caixas pretas” que exploram os trabalhadores e retiram boa parte dos ganhos produzidos por eles, reduzindo-os a meras engrenagens para lucro de empresas estrangeiras.
Ao compreender esse tipo de trabalho como algoritmizado, há uma referência clara sobre quem faz a gestão desses trabalhadores e é responsavel pela contabilidade dos serviços prestados: os próprios algoritmos. A narrativa de que o trabalhador e aplicativo é um empreendedor esconde o fato de que os algoritmos são os chefes dessas pessoas e que suas rendas dependem diretamente deles.
Há algum tempo, as atividades oferecidas nos aplicativos vão além de serviços de transporte e entrega (delivery). Hoje, psicólogos, nutricionistas, professores e outros profissionais já encontram espaço para exercer atividades seguindo o modelo. Na pesquisa do IBGE, essas atividades estão inseridas em “aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais”. Essa leitura, no entanto, é vaga, pois coloca diversas atividades, de diferentes qualificações, inseridas em um bojo homogêneo, o que dificulta uma análise mais profunda sobre tais operações.
A pesquisa pode mesmo induzir a uma leitura errada, ao analisar os ganhos médios dos trabalhadores em duas formas. O primeiro erro está no fato de que, no caso dos motoristas, são analisadas rendas brutas, desconsiderando gastos obrigatórios às atividades – tais como combustível, franquia de internet, seguro, IPVA e outros, que reduzem de forma significativa os ganhos desses profissionais. O segundo é que a média salarial do trabalhador algoritmizado é maior, porém, eles trabalham mais horas em relação aos outros trabalhadores. Enquanto um trabalhador CLT tem jornada média de 40,9 horas semanais, os trabalhadores algoritmizados atuam 47,9 horas, ou seja, um dia a mais de labor, e ganham R$50 reais a mais em média. A hora trabalhada de quem depende dos algoritmos é de R$ 11,80 enquanto a de quem não depende é de R$ 13,60. Uma jornada 17% maior para ganhos 1,7% superiores. Já os entregadores têm um cenário ainda mais catastrófico, trabalham mais e ganham menos que seus pares que não dependem dos algoritmos.
As jornadas exaustivas, por sinal, são rotineiras nesse tipo de trabalho, pois é preciso de um longo tempo “logado” para que se possa receber alguma demanda. Ou, ainda, por conta dos ganhos mais modestos, essas pessoas precisam de mais horas para garantir uma renda digna para suas famílias. Os aplicativos incentivam essa rotina com ferramentas de gamificação, em que um profissional pode ganhar status ou benefícios se cumprir metas e missões lançadas pelos algoritmos. De acordo com Byung-Chul Han, o processo de gamificação tem como função capitalizar a emoção, pois é assim que se gera motivação.
Ao tornar o trabalhador um jogador, a sua vida se torna dependente dos algoritmos em um ecossistema de dominação e gerenciamento. Ávidos por vencer no ambiente gamificado, algumas dessas pessoas passam horas nas plataformas em busca de maiores ganhos, e muitos possuem dupla jornada de trabalho, usando os aplicativos como complemento de renda. Esse é o lado nefasto da algoritmização: transformar o indivíduo em servo fiel ao neoliberalismo, a ponto de abrir mão de parte de sua vida para conseguir ganhos melhores para atender diferentes necessidades.
A gamificação, para ser mais exitosa, precisa do artifício da colheta de dados, em que tudo o que um indivíduo faz é catalogado e armazenado. É assim que um ambiente pan-óptico é estruturado e o trabalhador se torna um instrumento gerenciável pelos algoritmos.
Byung-Chul Han aponta o dataísmo como uma nova ordem social. Nela, a reunião de uma enorme quantidade de dados conduz a um totalitarismo digital que permite um registro total da vida a partir do monitoramento constante. Nesse caminho, é possível observar que o trabalho algoritmizado não é, meramente, plataformizado, pois o indivíduo é registrado e monitorado mesmo que esteja fora do aplicativo.
O trabalho algoritmizado, então, não compreende a privacidade do indivíduo, pois tudo aquilo que ele vetorizar de dados será armazenado em um banco para que ele seja, cada vez mais, explorado. Não há limites claros para aquilo que os aplicativos podem recolher de informações e como poderão usá-las. Tudo será feito para angariar ainda mais lucro a partir do trabalho ininterrupto de todos aqueles envolvidos.
A regulação do trabalho algoritmizado é uma promessa do governo Lula. Porém, em seu primeiro ano, pouco ou nada foi feito para que isso pudesse ser colocado em prática. Mais que isso, o atual governo não criou políticas públicas que possam arrefecer os efeitos da precarização desse tipo de trabalho, nem mecanismos de proteção para os trabalhadores algoritmizados.
A algoritmização é um fenômeno que vai além do trabalho e marca uma nova fase do capitalismo, em que a vigilância é constante e o indivíduo é explorado ao máximo por meio dos seus dados pessoais. Assim, não é apenas a regulação desse tipo de trabalho que deve ser buscada, é preciso criar mecanismos de proteção social para frear a sanha do neoliberalismo algoritmizado.
Ao enxergar a algoritmização como uma ferramenta de controle e vigilância é possível compreender que os indivíduos inseridos estão enclausurados em um ambiente pan-óptico digital. Porém, há menos punição e mais ganhos aos envolvidos pois são os algoritmos que permitem ganhar dinheiro, realizar compras, criar um sentimento de pertencimento e até proporcionar vínculos afetivos. Assim, há um controle por “ganhos” e não por punição.
Portanto, é necessário compreender a algoritmização como uma ferramenta de psicopolítica e sua regulação envolve interesses públicos. Pois, enquanto nas mãos de um sistema neoliberal, não teremos liberdade, privacidade e nem democracia.
Herbert Salles é Doutorando em Economia pela UFF.