Amazônia e soberania nacional
A proteção de bens públicos requer uma soberania responsável. Até agora a abordagem mais utilizada são as negociações internacionais, como o Acordo de Paris ou o Protocolo de Quioto. Há também muitos exemplos de mecanismos pró-mercado que recompensam as reduções em emissões de efeito estufa e esforços em reflorestamento.
O mundo está acordando para a emergência climática. A crise das queimadas na Amazônia está trazendo à volta um debate antigo sobre o que significa a soberania nacional. E essa discussão deixa transparecer novas tensões que vão bem além da esfera doméstica.
As queimadas são um lembrete do que já se sabia sobre as mudanças climáticas. Uma série de relatórios mostra que estamos nos aproximando de “pontos críticos” que podem causar um colapso irreversível e catastrófico. O Brasil, que já foi líder em conservação ambiental, tem um papel chave no destino do planeta. Ironicamente, quando a fumaça das queimadas em Rondônia alcançou a cidade de São Paulo, transformando dia em noite, ficou ainda mais claro o que está em jogo.
O que irá acontecer na Amazônia terá impacto global. Com mais de 40% das florestas tropicais do mundo e 20% do suprimento de água doce, o país está expandindo dramaticamente a exploração comercial da Amazônia para a pecuária, a soja e o ouro, entre outros produtos. Presidente Bolsonaro, e o lobby pró-agricultura, pecuária e mineração que o apoiam, parecem convencidos de que a agenda climática é movida por interesses ocultos do exterior. A extrema-direita promove um discurso de soberania nacional como valor absoluto.
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Soberania responsável
A proteção de bens públicos requer uma soberania responsável. Muitas estratégias já existem para proteger tais bens públicos, como florestas nas Américas, África e Ásia. Até agora a abordagem mais utilizada são as negociações internacionais, como o Acordo de Paris ou o Protocolo de Quioto. Há também muitos exemplos de mecanismos pró-mercado que recompensam as reduções em emissões de efeito estufa e esforços em reflorestamento.
Muitos ativistas ambientais e indígenas – e um número crescente de empresas que se preocupam também com o bem-estar social – acreditam que ações diretas como campanhas, boicotes e desinvestimentos são os caminhos a seguir. Enquanto todos esses métodos são implantados simultaneamente na Amazônia, Bolsonaro rejeitou todos eles, dizendo que “a Amazônia é nossa, não de vocês.”
Artigos recentes de fora do Brasil vem alimentando uma reação negativa, até mesmo paranóica. Na revista Foreign Policy, o artigo “Who will intervene in Brazil to save the Amazon” (Quem vai intervir no Brasil para salvar a Amazônia?), de Stephen Walt, levantou controvérsias ao prever um cenário em que o futuro presidente dos EUA lança um ultimato ao Brasil antes de intervir militarmente para “proteger” a Amazônia.
Afinal, os 5,1 milhões de quilômetros quadrados de floresta que abrangem o Brasil são um bem público global. Salvá-los de políticos que negligenciam ou negam as mudanças climáticas é fundamental para a sobrevivência. O artigo foi alvo de críticas contundentes, e não apenas da direita do Brasil.
Discurso nacionalista
Mesmo que tenha sido escrito como um exercício mental, o artigo de Walt tem o potencial de encorajar e ampliar um discurso nacionalista perigoso em uma conjuntura delicada. Ainda que afirme que as Nações Unidas precisariam aprovar qualquer intervenção militar hipotética, ele alimenta uma narrativa anti-globalista que é popular entre os apoiadores de Bolsonaro (e alguns de Trump).
Nessa ótica, as Nações Unidas são parte de uma conspiração de esquerda determinada a enfraquecer a soberania nacional do Brasil. E essa linha de argumentação só serve para fortalecer um presidente visto por parte da população brasileira como “defensor do Brasil.”
O governo já cancelou eventos importantes sobre mudanças climáticas. O ministro das Relações Exteriores descreveu as mudança climáticas como parte de uma “invenção marxista“. E, embora Walt afirme que o cenário mencionado não é realista, sua hipótese sobre o uso da força militar externa para lidar com a Amazônia pode ajudar o presidente Bolsonaro e seus aliados.
A controvérsia também ocorreu porque esses argumentos inspiram memórias do passado. Os Estados Unidos têm um longo histórico de recorrer à força militar para atingir suas metas de política externa. O país já tem uma enorme presença militar global que se estende por 177 países, incluindo alguns vizinhos do Brasil.
É difícil imaginar as Nações Unidas sancionando uma intervenção para proteger o clima, já que isso provavelmente seria prejudicial à organização. Mas o que Walt imagina é diferente – uma coalizão ad hoc que contornaria o Conselho de Segurança das Nações Unidas (já que China e Rússia muito provavelmente vetariam tal ação). Como aconteceu no Iraque e na Líbia, essas coalizões não costumam ser positivas para aqueles que as recebem. Para complicar mais ainda, elas também têm massivas consequências ambientais.
Opção militar
Colocar a opção militar na mesa pode desestimular o investimento em soluções mais eficazes. É como o famoso revólver de Chekhov, distraindo de outras opções. O fato é que existem outras alternativas e disponíveis para melhorar a custódia do Brasil (e de outros países) na Amazônia, e nenhuma envolve força militar externa.
É preciso aplicar uma considerável pressão ao Brasil para permanecer comprometido com o Acordo de Paris e outros compromissos climáticos – inclusive por meio de condições em acordos comerciais, embora seja pouco provável que o acordo entre o Mercosul e a União Europeia saia do papel durante o governo Bolsonaro.
Além disso, a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) poderia ser significativamente reforçado. A OTCA foi criada em 1995 por todos os oito países que dividem a Amazônia e equipado com uma secretaria em 1995 para fortalecer suas principais necessidades. Bolívia, Chile, Colômbia e Equador também devem aumentar a pressão, dado que podem ter perdas mais drásticas em decorrência do comportamento do governo brasileiro.
Parceria com empresas
Proteger a Amazônia exigirá o uso de recompensas e não apenas de punições. Um dos meios mais eficazes para fazer isso é trabalhar com as empresas. Em Brasília, grupos agrícolas estão se articulando para promover parcerias públicas e privadas mais sustentáveis para conter o desmatamento, estimular a restauração de terras e aumentar a eficiência do uso do solo.
A coalizão inclui instituições financeiras, empresas comerciais, produtores de carne e agricultura e proprietários de terra interessados em limpar suas cadeias de produção. O ministro da economia, Paulo Guedes, pretende eliminar diversos subsídios aos produtores locais, e eles precisarão recorrer a credores internacionais muito mais exigentes – inclusive do ponto de vista ambiental – para conseguir acesso a capital. Se não adaptarem suas práticas para atender a demanda crescente do consumidor, seus negócios sofrerão.
Também há oportunidades para empoderar a sociedade civil e os estados e municípios brasileiros, muitos deles na linha de frente dos esforços para mitigar o desmatamento ilegal (que responde por até 80% do total de toda a terra desmatada). Vários governadores já se uniram para criar ações que preservem a Amazônia, apesar das críticas do governo federal, com alguns propondo recentemente que o Fundo Amazônia, de mais de um bilhão de dólares e apoiado pela Noruega e pela Alemanha, seja “descentralizado” para os estados.
Há também uma vasta rede de organizações civis com um histórico bem-sucedido de promover ações ambientais e responsabilizar criminosos. Os mais de 300 grupos indígenas do país também são altamente organizados, o que também explica porque estão enfrentando ondas de ocupações violentas em suas terras. Essas e outras alternativas foram debatidas durante a Semana do Clima da América Latina e Caribe, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), por representantes de 26 países.
Esforços internacionais para proteger a Amazônia precisam ter uma visão geopolítica mais compreensiva e priorizar os métodos pacíficos. Há muitas formas de se construir uma soberania responsável em torno de bens públicos como a Amazônia. Walt e seus colegas deveriam tentar imaginar cenários nessa direção.
Adriana Erthal Abdenur é coordenadora da área de Paz e Segurança Internacional e Robert Muggah é diretor de pesquisa.