Aprovar a Constituição da esperança
A Constituição de 2022 é um marco político-jurídico que inclui e protege os setores mais negligenciados, redistribui o poder, desconcentra decisões que hoje em dia são altamente centralizadas e incorpora as regiões, nações e povos originários no exercício da participação
Milhares de pessoas estão saindo às ruas de todo o Chile para buscar os votos que permitirão aprovar a nova Constituição proposta pela Convenção Constitucional, que será plebiscitada em 4 de setembro. É uma força mobilizada, composta majoritariamente por jovens e mulheres, que luta diariamente contra uma campanha “brutal” de mentiras, como classificou a BBC de Londres. A desinformação estimulada pelos grupos reacionários colocou em segundo plano os enormes avanços em direitos e fortalecimento da democracia contidos no novo texto constitucional.
A Constituição de 2022, redigida em uma democracia por uma Convenção paritária e com representantes dos povos originários, só por esses motivos já é observada com interesse do exterior. Não se trata apenas de seu robusto catálogo de direitos fundamentais e sociais, também se valoriza e reconhece a qualidade e a densidade da proposta democrática que contém. É uma Constituição de vanguarda, moderna, que aponta para um futuro desejável, e que se define tacitamente como feminista e ecológica.
É um marco político-jurídico que inclui e protege os setores mais negligenciados, que redistribui o poder e, portanto, o democratiza. Desconcentra as decisões que hoje em dia são altamente centralizadas e incorpora as regiões, nações e povos originários no exercício da participação. “É uma Constituição indigenista”, exclamam os conservadores; mas não, a proposta é reconhecer a existência de um país diverso, no qual todos têm direitos garantidos. É uma Constituição para este século e que enterra aquela que ficou ancorada na Guerra Fria, na doutrina de segurança nacional, na “democracia protegida” e que acabou se tornando uma carapaça para um modelo econômico concentrador e excludente, gerador de profundas desigualdades.
A grande campanha para rejeitar a proposta constitucional, contudo, começou a perder ritmo e sustentação em meados de julho, logo após a entrega do texto final. Com a versão definitiva da Constituição de 2022 em mãos, as forças do Aprovo foram mobilizadas, desfazendo a mentira, primeiro, e depois buscando votos de casa em casa. A campanha do Rejeito procurou tensionar e polarizar ao máximo o cenário político e colocar em prática uma máquina que inclui um sistema que se retroalimenta entre os partidos de direita – todos eles unidos sob a liderança dos setores mais reacionários: os grupos conservadores, os meios de comunicação e as empresas de pesquisa. O resultado previsível – que terá consequências além inclusive do plebiscito – é que métodos e formas de luta política semelhantes aos utilizados por Jair Bolsonaro e Donald Trump em seus países se instalem no Chile, com o consequente enfraquecimento da democracia e de suas instituições.

Esse risco foi percebido pela população e por isso sua resposta é maciça desde que a campanha começou. A mobilização e a força acumuladas em um longo processo que se iniciou nas manifestações estudantis de 2005 em diante – fortalecidas pelas lutas feministas e pelas que saíram às ruas por aposentadorias dignas e pela crise aberta com a rebelião de outubro de 2019, que mais tarde produziu a vitória de um projeto transformador e do próprio processo constitucional – não foram dispersas, como a direita avaliou equivocadamente. As velocidades e os ritmos mudam, como já demonstrou a mobilização popular de jovens e mulheres entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial. Um episódio que, aliás, não foi suficientemente avaliado pela esquerda justamente pela velocidade das mudanças, apesar de conter uma riqueza de experiências e lições que deveriam ser incorporadas à herança política das forças de transformação.
O Chile está perto de ter uma Constituição que coloca um horizonte de esperança na possibilidade de sua população ter uma vida melhor, principalmente para aqueles que trabalham diariamente para gerar riqueza, reproduzir e cuidar da vida, para que sejam finalmente vistos estes “ninguém” que sempre foram remediados.
Libio Pérez é editor-geral da edição chilena do Le Monde Diplomatique.