Aquilo que Chávez lembrou à esquerda
Morto no dia 5 de março, o presidente venezuelano foi quem deu início ao movimento que transformou, a partir da virada do século, a América Latina. Posicionando as classes populares no centro do jogo político, ele colocou as “esquerdas de mercado” diante de suas contradiçõesRenaud Lambert
Pergunte a uma pessoa qualquer: ela sabe o nome do presidente uzbeque, do rei saudita ou do responsável do Executivo dinamarquês, três dirigentes de países comparáveis à Venezuela em termos de superfície, população e riqueza? Talvez não. E Hugo Chávez? É bem mais provável. E certamente o conhecia desde antes do anúncio de sua morte nos principais jornais do planeta e do desfile de chefes de Estado que se deslocaram até a Venezuela para homenageá-lo.
Nada indicava que o percurso de Chávez o conduziria a tal notoriedade. Durante sua primeira campanha presidencial, em 1998, um analista venezuelano afirmava: “Antes da próxima eleição, ele será esquecido”.1 Na época, a candidata conservadora Irene Sáez ilustrava, a seu modo, a atenção que as elites do país davam às reivindicações populares. Em menos de vinte anos, Caracas registrou a contração econômica mais acentuada da região e a taxa de pobreza disparou de 17% para cerca de quase 50%. Em um contexto como esse, Sáez teve dificuldade em emplacar seu programa – a continuidade. Era preciso reagir: a ex-miss universo decidiu fazer um coque no cabelo. A operação não teve o sucesso esperado, e Chávez ganhou o pleito. Para muitos, uma surpresa.
No fim da década de 1990, a coloração política da América Latina evocava um monocromático de Yves Klein. No México, Carlos Salinas (1988-1994) acabava de liquidar mais de 110 empresas públicas. No Brasil, Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) estendia o tapete vermelho para o capital internacional. E, com a Argentina de Carlos Menem (1989-1999), o FMI encontrou um “bom aluno” preocupado em atender a qualquer pedido. A campanha presidencial venezuelana apenas começava enquanto crepitavam os flashes da segunda Cúpula das Américas, organizada em Santiago do Chile nos dias 18 e 19 de abril. Ao lado do ex-presidente norte-americano Bill Clinton, as fotos revelavam os rostos contentes dos dirigentes latino-americanos ao decidir pela criação, até 2005, de uma zona de livre-comércio que se estendia do Alasca à Terra do Fogo, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Na Europa, treze dos quinze países possuíam governos “de esquerda”, mas a “grande surpresa” ainda estava por vir. O socialista Lionel Jospin se revelou o campeão francês das privatizações; o social-democrata alemão Gerhard Schröder colocou em prática “reformas” que o transformaram no ídolo da direita europeia; o trabalhista britânico Tony Blair promoveu uma “terceira via” que ganhou o estatuto de – segundo a fundação do ex-chefe do governo espanhol, José Maria Aznar – “verdadeira herdeira” de Margaret Thatcher.2
Mas a revolta rondava a América Latina, onde as boas almas da escola de Chicago havia tempos desenvolviam seus trabalhos. A começar por Caracas, em 1989, quando um plano de ajuste estrutural preparado com o FMI desencadeou uma série de protestos. A repressão deixaria mais de 3 mil mortos depois do célebre Caracazo. Três anos depois, também na Venezuela, duas tentativas sucessivas de golpe de Estado tentaram derrubar o poder, uma delas conduzida por Chávez.
Levantes populares e indígenas no Equador, Bolívia e Chiapas, no México, desencadeariam uma fase de mobilizações pontuais que afirmava a impossibilidade de extrair a democracia da gangue liberal. A única solução seria – retomando o título da obra do intelectual John Holloway lançada em 20023 – “mudar o mundo sem tomar o poder”, o que deixaria o terreno livre para a direita.
Em um primeiro momento, Chávez compartilhou alguns questionamentos desse movimento: “Sabíamos que a estratégia da via eleitoral poderia se revelar catastrófica, que poderíamos cair na armadilha do sistema”.4 A primeira ruptura veio quando sua equipe constatou que a exasperação das classes médias em relação ao “sistema” poderia não somente conduzi-lo ao poder, mas também impulsionar uma reforma da Constituição – a possibilidade de desmontar as “armadilhas do sistema”.
Vinte anos antes, o chileno Salvador Allende também havia rompido com a estratégia da luta armada. Mas a “democracia cristã tinha um peso considerável”, lembra a intelectual chilena Martha Harnecker. “Não apenas nos setores da classe média e alta, mas também entre os trabalhadores e camponeses. Isso explica em parte por que a Unidade Popular – coalizão que apoiava Allende – jamais propôs uma assembleia constituinte” e se contentou em “utilizar a legislação em vigor procurando as brechas da lei.”5
Na Venezuela, o ex-coronel Chávez também contava com o apoio de grande parte das Forças Armadas, cujos oficiais não eram todos oriundos das classes sociais mais abastadas – uma exceção na região. A “revolução” proclamada em sua eleição decorre desse contexto singular e de um projeto político relativamente tímido naquele momento: uma crítica ao “capitalismo selvagem” inspirado, segundo o próprio Chávez, na terceira via de Blair.
Do café com banqueiros à luta de classes
Além disso, o primeiro governo chavista manteve – brevemente – Maritza Izaguirre como ministra das Finanças, cargo que ela já ocupava na equipe do neoliberal Rafael Caldera. Quanto ao seu programa de governo inicial, se contentou em retomar certos dispositivos das décadas de 1960 e 1970: educação e saúde gratuitas.
Contudo, explica o universitário Steve Ellner, os dirigentes progressistas anteriores tinham empreendido reformas econômicas e sociais “com o cuidado de não gerar na população o sentimento de ter se tornado um ator político – o que poderia conduzir a uma radicalização inquietante das classes dominantes”.6 Chávez adotou a estratégia oposta.
Votada em 1999, a nova Constituição previa que os programas sociais não fossem impostos de cima para baixo pela burocracia ministerial, e sim aplicados com a participação da população. Mais que a ideologia do presidente venezuelano, foi essa medida que incomodou tanto a elite – porque representava uma reforma política que poderia enfraquecer seu controle do Estado e a primazia sobre o lucro do petróleo.
Os acontecimentos seguintes são conhecidos − golpe de Estado, paralisação da indústria do petróleo pelos quadros superiores e técnicos, boicote das eleições etc. – e ilustram a intransigência de uma burguesia decidida a negar qualquer concessão. Mas essa atitude da oposição teria o efeito paradoxal de alavancar o processo chavista. Como explica Gregory Wilpert, “cada nova tentativa – fracassada – da oposição de derrotar Chávez acabou por ampliar sua margem de manobra e permitir políticas ainda mais audaciosas”.7
Para os meios de comunicação, essa evolução conduziu Chávez a encarnar o radicalismo político no centro da onda progressista que submergiu na América Latina durante a década de 2000.8 Do ponto de vista do ex-presidente conservador do Uruguai, Julio Maria Sanguinetti, mais “rosa” que “vermelha”, essa virada política regional representaria menos uma ruptura revolucionária que um “deslocamento trabalhoso, contraditório e resignado em direção ao centro”.9 A carga subversiva de termos como “nacionalização”, “soberania” e “anti-imperialismo”, que Chávez colocou novamente na moda, refletiria, assim, sua própria ambição e a lenta deriva ideológica da esquerda.
A mutação do dirigente bolivariano surpreenderia ainda mais. Durante a campanha de 1998, o candidato multiplicou encontros com Citibank, J.P. Morgan e Morgan Stanley para apaziguar os temores dos banqueiros. Dez anos depois, afirmaria: “Nossa batalha é uma expressão da luta de classes” (discurso de 30 de novembro de 2008).
No dia seguinte à sua primeira eleição, o presidente eleito passou a manhã nos estúdios da maior rede televisiva do país – pertencente à primeira fortuna da Venezuela, Gustavo Cisneros – estimulando os investidores: a Bolsa de Caracas subiu 40% em dois dias. Em junho de 2011, o Wall Street Journal revelou que eram os problemas de saúde de Chávez que inibiam os mercados.
Em 2001, as “linhas gerais do plano de desenvolvimento econômico e social da nação 2001-2007” previam “a criação de uma classe patronal emergente” e a garantia de um “clima de confiança para os investidores estrangeiros no país”. O documento tornou-se obsoleto quatro anos depois, quando Chávez proclamou que seu país buscaria um “socialismo do século XXI”.
A maior parte dos dirigentes políticos faz o caminho inverso, o que, sem dúvida, chamou a atenção do mundo para a Venezuela. No momento em que, na França, Jospin explicava que “o Estado não pode tudo”, a Venezuela procedia com sua reabilitação: exigia o controle majoritário dos projetos de exploração de recursos naturais (medida que se replicaria por outros países da América Latina), a retomada das rédeas do Banco Central e da política monetária. E enquanto Havana usava terrenos para construir campos de golfe para os turistas, Caracas o fazia para abrigar os sem-teto.
Desde 2003, a pobreza na Venezuela caiu pela metade e a indigência diminuiu 70%; as desigualdades também diminuíram e, hoje, é o país mais igualitário da região; a diplomacia tornou-se poderosa e contribuiu para a derrota do projeto da Alca, assim como para a criação e o fortalecimento de estruturas regionais baseadas no princípio da solidariedade (como a Aliança Bolivariana para as Américas – Alba) e na independência em relação aos Estados Unidos (como a União das Nações Sul-Americanas – Unasul − e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe – Celac). Além disso, a Venezuela apoiou a Argentina no reembolso parcial da dívida e auxiliou o sistema de saúde da Bolívia. Dessa forma, Caracas “substitui o FMI como principal fonte de financiamento da região”, dizia o El Nuevo Herald no dia 1º de março de 2007. Seria prudente concluir, como o Les Échos (7 mar. 2013), que Chávez “desperdiçou” a renda petroleira – um filão que a Venezuela não só se contentou em aproveitar, como também valorizou com sua entrada na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep)?
“Eu sou o presidente”
Contudo, os olhares se voltaram para Caracas para observar apenas as dificuldades. E elas são, de fato, numerosas.
Em primeiro lugar estava a impossibilidade de contar com o aparelho estatal herdado do “antigo regime” ou substituir funcionários por quadros afins ao projeto em número suficiente. Como observou o sociólogo britânico Ralph Miliband na década de 1970, “os governos que perseguem uma transformação revolucionária não podem, racionalmente, esperar a célebre ‘neutralidade’ das elites administrativas e menos ainda contar com o apoio devotado e entusiasta exigido na aplicação de uma política com características revolucionárias”.10
A estratégia encontrada diante desse primeiro obstáculo foi a construção de um novo Estado, paralelo ao primeiro, que substituiria o outro “mais tarde”. Segundo Michael Lebowitz, um conselheiro de Chávez, “existem dois Estados: primeiro, aquele cujo controle é tomado pelos trabalhadores (ou seja, o antigo Estado) e a partir do qual começam a editar medidas contra o capital; em seguida, nasce o novo Estado, cujas células de base são os comitês de trabalhadores e os conselhos comunais.11 O ponto de partida, sem dúvida, é o antigo Estado, e a passagem ao socialismo deve ser entendida como um sistema orgânico e um processo de transição para o novo. Mas isso quer dizer que os dois devem coexistir e interagir ao longo de todo o processo”.12 Por outro lado, se esse dispositivo permitiu a organização das famosas “missões” – cujo sucesso é conhecido –, também duplicou a burocracia estatal, o que serviu para alimentar a corrupção e criar uma nova elite, a “boliburguesia”, às vezes próxima a Chávez e provavelmente tão corrupta quanto a precedente.
Da mesma forma, o autoritarismo de um presidente conhecido por reprimir aqueles que lhe formulam críticas com a frase “vocês não estão falando com qualquer um, eu sou o presidente” favorece a personalização do poder e contraria o ideal da “participação”, tão proclamado. Se a morte do chefe de Estado venezuelano implica a superação dessa dificuldade (ou sua mutação?), o que será da insegurança13 ou das alianças duvidosas (Bielorrússia, Irã, Líbia, Síria etc.), sugerindo que não há nenhum paradoxo na luta contra as injustiças entre países ao lado de capitais que as perenizam sobre seus territórios nacionais?
Mas as dificuldades principais ainda são as de natureza econômica – em particular o desafio de diversificar a economia baseada na renda do petróleo. Isso seria uma façanha similar à tentativa de “trocar a roda de um carro com ele em movimento”, segundo um observador venezuelano (Chicago Tribune, 15 jul. 2005).
Em 1973, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, justificava o golpe contra Allende nos seguintes termos: “Quando é preciso escolher entre a economia e a democracia, nosso dever é salvar a economia”. Os projetos de Chávez às vezes conduziram ao caminho inverso. Será mesmo que ele deve ser condenado por isso?
Renaud Lambert é jornalista.