Árabes na América Latina
Existe racismo na América Latina. Ele atinge com mais frequência os negros, assim como imigrantes bolivianos, peruanos e colombianos. As comunidades árabes, contudo, raramente sofrem com os estigmas que frequentemente lhes são impostos na Europa. Para explicar o fenômeno é preciso analisar como foi a chegada dessas pessoas à região e a posição social que ocupam
Manifestante contra a guerra na Síria sobre a faixa de pedestre na Avenida Paulista
O libanês de origem Michel Temer torna-se presidente do Brasil.” Em 1º de setembro de 2016, a manchete do An-Nahar, jornal conservador de Beirute, não fez a menor alusão a Dilma Rousseff, obrigada a ceder seu lugar àquele que até então era apenas o vice-presidente. Pouco importa que sua destituição tenha se dado em meio a diversas irregularidades, a ponto de ser considerada, por milhões de brasileiros, um golpe de Estado. No Líbano, preferem exaltar o destino do filho de um casal de camponeses originários de Btaaboura, a 70 quilômetros ao norte da capital, que partiu de sua aldeia natal para tentar a sorte em São Paulo em 1925. A rua principal do vilarejo de trezentas almas já havia sido rebatizada de “Rua Michel Tamer [segundo ortografia local], vice-presidente do Brasil”. Bastou apenas uma pincelada de tinta azul para o prefeito – um de seus primos – apagar o “vice” da placa, tanto em português como em árabe.
Um filho de imigrantes árabes na liderança de um país: na América Latina, não há nenhuma incongruência nisso. Já aconteceu na Argentina (Carlos Menem, 1989-1999), no Equador (Abdalá Bucaram, 1996-1997, e Jamil Mahuad, 1998-2000), em El Salvador (Elías Antonio Saca, 2004-2009), em Honduras (Carlos Flores Facussé, 1998-2002) e na Colômbia (César Turbay, 1978-1982). Muito bem representados na política, tanto à direita como à esquerda, os descendentes de árabes são também protagonistas da cena intelectual e artística – como Raduan Nassar e Milton Hatoum no Brasil, o ator Ricardo Darín na Argentina e a cantora Shakira na Colômbia. E, quando Donald Trump multiplica os ataques contra o México, é o filho de um libanês, Carlos Slim, sexta maior fortuna do mundo em 2017 segundo a revista Forbes, que convoca uma conferência de imprensa para acalmar seus compatriotas.
Herdeiros dos mercadores fenícios
Integração-modelo? É o que conta a história oficial ao sul do Rio Bravo. Aqui, os árabes que chegaram a partir do fim do século XIX não são magrebinos: vêm majoritariamente do Levante. São chamados, de acordo com sua origem e segundo a história local, “sírio-libaneses” na Argentina e no Brasil, “libaneses” no México e Equador, “palestinos” em Honduras e Chile. Ou simplesmente “turcos” em todos esses lugares, em referência ao Império Otomano, que dominou a região na época. “Eles são relativamente pouco numerosos: 160 mil no Brasil, por exemplo, um pouco menos que na Argentina e menos da metade que nos Estados Unidos”, precisa Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto.
Esse pesquisador coordena os estudos sobre o Oriente Médio na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Ele mergulhou nos arquivos de imigração para quebrar a ideia de que o gigante latino-americano contaria hoje com mais de 8 milhões de descendentes do Oriente Médio. “No Brasil, os árabes representam o sétimo grupo de imigrantes em número, atrás dos europeus; mas aqui, como em toda a América Latina, a imigração é fraca, de modo que o impacto de cada uma dessas populações é relevante”, explica. Saindo de Beirute ou Trípoli, no Líbano, alguns esperavam se instalar nos Estados Unidos. Enganados pelas companhias marítimas, desembarcaram no Rio de Janeiro, Santos, Buenos Aires ou Veracruz, no México. Afinal, era tudo América.
Contrariamente a outros fluxos migratórios, organizados por Estados com demanda por mão de obra, os que vieram do Oriente Médio o fizeram espontaneamente, motivados pela crise econômica e pela ocupação francesa e britânica. No Brasil, por exemplo, essa particularidade evitou que os recém-chegados fossem enviados às fazendas de café, onde os trabalhadores eram tratados como escravos. A imensa maioria se lançou no comércio popular dos grandes centros urbanos. “No México, por exemplo, prevaleceu a ideia de que os libaneses, por serem herdeiros dos mercadores fenícios – uma velha história de 6 mil anos –, teriam um talento particular para gerar lucro”, observa Theresa Alfaro-Velcamp, professora de História da Universidade de Sonoma, na Califórnia, e autora de um livro intitulado Tão longe de Alá, tão próximo do México (University of Texas Press, 2007). Entre os imigrantes árabes registrados de 1926 a 1951 no país, 45% se declararam comerciantes.
A concentração de seus negócios modelou as cidades. Em São Paulo, por exemplo, estão na Rua 25 de Março, em pleno centro; no Rio de Janeiro, estão no Saara, acrônimo para Sociedade dos Amigos da Rua Alfândega e Adjacências. No Peru, dois terços deles se instalaram em Arequipa, a capital comercial; em Honduras, estão no centro da cidade de San Pedro Sula; no Equador, em Quito e Guayaquil. O ponto forte? Setor têxtil: a família Fauaz possui uma das mais belas lojas de San José, na Costa Rica; A Flor da Turquia, de José Elis Name, é muito concorrida em Havana, e as lojas Paris de Manágua, na Nicarágua, pertencem igualmente a imigrantes árabes.
“O que permanece na memória comum é que os imigrantes árabes eram miseráveis quando chegaram à América Latina e que, todos cristãos, tiveram de fugir da perseguição religiosa. Todos se tornaram vendedores ambulantes e, graças ao talento e aplicação ao trabalho, montaram lojas antes de se lançarem na indústria e no setor bancário, permitindo que seus filhos estudassem para se tornar advogados, médicos ou personalidades políticas de renome”, resume Pinto. “Mas isso é um mito: na realidade, esses imigrantes eram de setores médios e superiores em seu país de origem, tanto os que vieram de áreas urbanas quanto os de áreas rurais.” Em seu país natal, os camponeses já estavam inseridos em uma economia monetária, e os que vieram de cidades eram médicos, jornalistas, advogados ou acadêmicos.
“O mais curioso é que a história oficial da irresistível ascensão social das comunidades árabes é a mesma no Brasil, na Argentina, no Chile, na Guatemala e em toda a região”, diverte-se o antropólogo. Não é para menos: ela foi forjada por um livro de Philip Hitti (ex-professor da Universidade Americana de Beirute) publicado em 1924, The Syrians in America, antes de ser estudado e refutado por uma rede de intelectuais. Essa história tinha um objetivo: conferir coesão a uma comunidade muito segmentada em termos religiosos, geográficos e políticos. Esse relato, que exclui os muçulmanos (certamente minoritários) e os árabes pobres (os que não venceram), também carrega a vantagem de facilitar a aceitação dos árabes pelas populações locais.
Etnicamente, o árabe não é o europeu branco, destinado a melhorar a raça e elevar a cultura, mas também não é o amarelo ou o negro. Os recém-chegados semearam ainda mais confusão ao desembarcarem com passaporte da França, que ocupava então esses países. “Os turcos não entravam em nenhuma das categorias do sistema de classificação racial utilizado pelas elites; eles não eram nem proscritos nem desejados, encontrando-se em uma situação ambígua”, analisa Pinto. Houve um reconhecimento de que modernizaram o comércio, introduzindo a venda a crédito. Em contrapartida, também foram percebidos como dissimulados e gananciosos, impuros por definição em sociedades majoritariamente rurais onde os notáveis tinham pretensões aristocráticas. As diferenças culturais nutriram os delírios xenófobos: asseguravam que os árabes eram canibais por comerem quibe cru, uma versão libanesa do tartare. A aversão às vezes escalada em violência, como no caso da Guerra do Pente, que eclodiu no dia 8 de dezembro de 1959 em Curitiba, na região Sul do Brasil. Nesse dia, um comerciante se recusou a dar uma nota fiscal a um policial que acabara de comprar um pente. A desavença se aprofundou e provocou o saque e a destruição de 120 lojas de imigrantes, em sua maioria árabes.
Os recém-chegados tiveram de negociar sua integração. De aparência similar aos europeus, começaram a apagar os traços que os diferenciavam, a começar pelo uso do árabe, em particular nos anos 1930 e 1940, quando cresceram os nacionalismos. Da Argentina ao México, pararam de transmitir a seus filhos a língua de origem. Também se converteram, abandonando as variantes orientais do cristianismo, percebidas pelos católicos latino-americanos como próximas ao islã, ou, no caso dos muçulmanos, o islã propriamente dito.
O sucesso material e social, assim como certa aculturação, permitiu que fossem aceitos mantendo sua identidade. “Alguns se consideram árabes por tradição familiar; outros, pela participação em instituições árabes. Alguns, como escritores e atores, fazem de sua origem uma fonte de inspiração. A única faceta intocada é a gastronomia, fortemente reivindicada, ao contrário da língua, da religião e da roupa”, analisa Pinto. Em toda a América Latina, os imigrantes do Oriente Médio se afirmam abraçando parte dos preconceitos vigentes, como a sensualidade das mulheres ou o talento comercial herdado dos nômades do deserto, mais uma vez jogando com suas ambiguidades.
O antropólogo relembra que os intelectuais professavam um orientalismo “que oscilava entre representações dos árabes como um povo indolente e irracional, e outras que tornavam seu mundo uma das matrizes culturais das nações latino-americanas, pela longa presença dos árabes na Península Ibérica”. As elites das comunidades em questão responderam a isso reinventando esse orientalismo e adotando referências aceitáveis aos olhos das populações locais, permitindo-lhes negociar sua diferença – já que tampouco têm muita relação com sua história. Assim, a dança do ventre, tradição inventada por excelência, é um elemento inevitável dos eventos organizados pelos centros sírio-libaneses, esses clubes de elite árabe que floresceram nas principais metrópoles. No México, em Guadalajara, Veracruz, Mérida e Monterrey, esses clubes, instalados em incríveis mansões, “têm a dupla função de demonstrar a mexicanidade desses notáveis e a superioridade cultural libanesa no âmbito empresarial. Como são bem-sucedidos, podem reivindicar suas raízes, que explicam o próprio sucesso”, conta Theresa Alfaro-Velcamp. Em 1966, ninguém condenou o bilionário Carlos Slim por seu casamento com Sumaya Domit Gemayel, a sobrinha dos ex-presidentes libaneses Amine e Bachir Gemayel.
Acontece o mesmo no Carnaval, que, no Brasil, permite manifestar de forma lúdica sua integração (o que há de mais brasileiro que o Carnaval?), mas também uma identidade idealizada. Homens e mulheres vestem fantasias de beduínos ou odaliscas como se tivessem saído diretamente de um harém otomano. Também cantam marchinhas que remetem ao imaginário orientalista. “Alá-la ô”, escrita em 1940 pelos descendentes de imigrantes libaneses David Nasser e Antônio Nássara, evoca o nomadismo da caravana, o deserto e o islã, em ritmo de samba. Um clássico até hoje.
Mohammed ElHajji aproveitou-se desse orientalismo matizado de ignorância para conquistar rapidamente seu lugar no Rio de Janeiro quando chegou, em 1991. “Sempre me apresentei como marroquino, mas, mesmo para os professores da universidade que eu frequentava, aquilo não remetia a nada de preciso: confundia-se o Marrocos e a Índia”, lembra-se, com um sorriso. “Não sabiam onde me classificar. Isso me deu a chance de contornar as hierarquias implícitas – étnica, geográfica e social – integradas à sociedade brasileira, que marginalizava os negros, os latinos de tipo indígena (bolivianos, paraguaios, peruanos…) e os nordestinos.” Ele considera que, “no Brasil, o lugar na sociedade decorre de um cruzamento entre o nível social e a origem geográfica”. O ex-jornalista do jornal de Rabat L’Opinion tornou-se professor de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Quanto à sua filha, “é uma brasileira de pai marroquino. Aqui, não existe esse conceito de ‘segunda geração’ como na Europa”.
Agradavelmente surpreso, em um primeiro momento, pela possibilidade de se integrar no país, ElHajji viu os olhares mudarem após o atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Na época, havia sido convidado a fazer parte da banca de uma tese de doutorado em Salvador, na Bahia, e foi atacado pelo orientador da tese, que, depois de apresentá-lo ao público, perguntou a ele em que momento atiraria sua bomba, antes ou depois da apresentação. Pela primeira vez, seu nome suscitou questionamentos e até inquietudes. “A retórica que associa o ‘árabe’ a ‘terrorismo’ não se instalou rapidamente no Brasil pela existência de uma elite política e econômica de origem árabe, e sim pela insistência em se martelar cada vez mais que o islamismo é uma religião perigosa e fundamentalista”, considera Gustavo Barreto, pesquisador de Comunicação da UFRJ e autor de uma tese sobre a visão da imprensa dos duzentos anos de imigração no Brasil. O islamismo, em crescimento na região, permanece, no entanto, extremamente minoritário. Segundo a Organização Islâmica para a América Latina, a região contaria com 6 milhões de muçulmanos, dos quais 700 mil na Argentina (para uma população de 43 milhões de habitantes), 1,5 milhão no Brasil (para 206 milhões de habitantes), 120 mil na Venezuela (para 31 milhões) e 115 mil no México (para 122 milhões).
Aumento das agressões
É na região da tríplice fronteira que esse discurso pegou com mais facilidade. Nos confins da Argentina, do Brasil e do Paraguai, essa zona sempre foi um paraíso do contrabando, e as autoridades norte-americanas rapidamente a designaram como um “feudo terrorista”, sem jamais apresentar nenhuma prova. Estão na mira os imigrantes árabes da segunda onda, vindos durante a guerra civil libanesa, a partir dos anos 1970. Majoritariamente muçulmanos, e graças à televisão por satélite e à internet, alguns conservaram um vínculo mais forte com a língua árabe.
“Até agora, pelo menos, o governo brasileiro recusou a retórica islamofóbica. Mas não é o caso da Argentina nem do Paraguai, que multiplicaram as detenções arbitrárias de cidadãos de origem árabe”, declara Fernando Rabossi, antropólogo da UFRJ. Ele reconhece, contudo, que a islamofobia está em toda a região. As agressões se multiplicam, em particular contra mulheres que usam véu, pois os homens são menos visíveis nesse sentido. Em julho de 2016, os professores do Instituto de Física da UFRJ ficaram atônitos com a expulsão de um de seus colegas, o pesquisador franco-argelino Adlène Hicheur. Este último foi condenado na França em 2012 por terrorismo, depois da checagem de seu correio eletrônico, que revelou troca de mensagens com um suposto integrante da Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI). Após dois anos e meio de prisão, foi libertado. O zelo de Brasília em expulsá-lo, sem razão, é inédito.
Além da pressão midiática (com a grande imprensa voluntariamente assumindo em seu discurso preconceitos europeus e americanos), ElHajji enxerga como causa dessa mudança de atitude o crescimento do poder dos evangélicos, principalmente na figura de seus representantes políticos na América Latina. Cerca de noventa deputados brasileiros reivindicam seu pertencimento ao grupo evangélico e exigem mudanças na política externa – em particular que Brasília adote uma atitude mais branda em relação a Israel. “Há, no espírito de muitos evangélicos, uma confusão entre a Terra Santa do passado e o Estado de Israel moderno, confusão que acentua ainda mais o discurso contra árabes e muçulmanos”, analisa o universitário. Vale lembrar que no dia da inauguração do Templo de Salomão pela Igreja Universal do Reino de Deus, em julho de 2016, em São Paulo, o hino nacional de Israel sucedeu ao do Brasil. Uma parte dos militantes evangélicos, mas também católicos, defendem atualmente uma “identidade cristã” contra todos e, notadamente, contra o islamismo.
*Lamia Oualalou é jornalista.