As armas de fogo no centro da campanha argentina
Pela primeira vez na história da Argentina, o tema do porte de armas irrompeu na campanha eleitoral como resultado da crise de segurança em Rosário e da proposta de Javier Milei de liberar a posse. A experiência internacional demonstra que esse tipo de ideia apenas contribui para agravar o problema
A mídia argentina mostra diariamente casos de violência em Rosário que, invariavelmente, envolvem armas de fogo. O tema central da campanha eleitoral em Santa Fé é o combate à violência e ao tráfico de drogas. Nesse contexto, diferentes pré-candidatos ao governo provincial manifestaram suas posições em relação às armas de fogo. O pré-candidato do Partido Radical e ex-ministro de Segurança de Santa Fé, Maximiliano Pullaro, afirmou, depois de rejeitar a oferta de escolta policial, que levará uma arma de fogo durante a campanha como consequência de ameaças sofridas, enquanto seu concorrente na disputa interna da legenda, Dionisio Scarpin, lançou sua campanha com o slogan “Menos balas, mais sapatos”. Seus cartazes mostram uma pistola da qual um sapato é disparado. A deputada provincial Amalia Granata, por sua vez, apareceu com um colete à prova de balas falso em uma entrevista televisiva.
“Para explicar a violência em Rosário, é preciso olhar para o mercado de armas antes do mercado de drogas ilegais”, explica a pesquisadora Eugenia Cozzi, autora do livro De ladrones a narcos [De ladrões a narcos]. No entanto, a situação em Santa Fé faz parte de uma cena mais ampla. A partir das declarações de Javier Milei – que se pronunciou a favor do livre porte de armas alguns dias depois do massacre em uma escola no Texas, no qual dezenove crianças e dois professores morreram –, pela primeira vez na história argentina, a questão da posse de armas se tornou um dos temas da campanha presidencial. O candidato de Milei para governador de Tucumán, Ricardo Bussi, lançou um anúncio no qual ele é visto disparando uma arma: “Que a próxima vida perdida não seja a sua. Vamos defender nossas famílias dos criminosos. Sim para o porte legal e livre de armas”.
Aqueles que pregam e colocam em prática a liberalização do acesso a armas fazem parte da nova direita radical populista, que se apropriou da palavra “liberdade” e a transformou, em parte, em um conceito econômico. Não é surpreendente que o fundamento de Milei seja sua adesão às teorias do economista estadunidense Gary Becker.
O caso da pré-candidata presidencial do Proposta Republicana (PRO), Patricia Bullrich, é mais ambíguo. Em novembro de 2018, quando ocupava o cargo de ministra de Segurança da Nação, ela se posicionou a favor da liberação da posse: “Quem quiser andar armado, que ande armado”. No entanto, em declarações recentes, ela moderou seu discurso: “Não recomendo que as pessoas andem armadas”.
América Latina
É evidente que, em contextos de cansaço social, aumento da violência e avanço da insegurança, os discursos de “linha dura” adquiram uma profunda penetração. Basta analisar a aceitação que as políticas colocadas em prática pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, alcançaram. Apesar das denúncias de violações dos direitos humanos e dos apelos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para restabelecer as garantias suspensas sob o regime de exceção, a popularidade de Bukele continua a crescer. Outros países da região, como Honduras, adotam medidas similares: território militarizado, regime de exceção e construção de megaprisões.
O ministro da Segurança da Província de Buenos Aires, Sergio Berni, afirmou em uma entrevista, referindo-se à situação em Rosário, que Bukele “copiou” o que ele tinha em mente, que essas medidas eram “música” para seus ouvidos e que “o caminho que Bukele seguiu é a solução para a Argentina”. O candidato à presidência pelo Partido Trabalhista, Santiago Cúneo, aparece em um cartaz de campanha com uma foto do líder salvadorenho.
Junto com as políticas de “linha dura” também aumentam os países latino-americanos que permitem o porte de armas. Já nos anos 1980, o Peru facilitou legalmente o acesso a armas pelos Comitês de Autodefesa (CAD), grupos surgidos nas comunidades mais isoladas para se defender dos ataques do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Tupac Amaru, que em alguns casos se transformaram em grupos paramilitares. Mais recentemente, o presidente do Equador, Guillermo Lasso, anunciou a autorização da posse e do porte de armas de fogo (proibidos desde 2009) para defesa pessoal como uma das medidas destinadas a combater a criminalidade.
No Brasil, o tema sempre esteve presente na sociedade, embora nunca tinha adquirido importância até a campanha presidencial de 2018. Durante seu governo, Jair Bolsonaro facilitou, por meio de trinta decretos e resoluções, o acesso da população às armas, flexibilizando as restrições, aumentando o número de armas que os civis podem adquirir, permitindo o acesso a armas de maior calibre e favorecendo importações. “Um povo armado jamais será escravizado”, costuma argumentar Bolsonaro.
A disputa eleitoral de 2022 teve a posse de armas pela população como um de seus eixos principais. Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do ex-presidente, convocou nas redes sociais as pessoas que haviam adquirido armas a se tornarem voluntárias de campanha. Também circulou um vídeo de uma deputada próxima a Bolsonaro perseguindo e apontando uma arma para um homem. Em contraste, Lula prometeu que, caso retornasse ao governo, colocaria em prática políticas para facilitar o desarmamento da população. De fato, assim que assumiu, ele assinou um decreto para suspender a política de flexibilização da compra de armas.
O modelo dos Estados Unidos
O que os defensores do livre acesso a armas têm em comum é que eles pretendem imitar o modelo dos Estados Unidos, onde possuir uma arma é interpretado como um direito pessoal – respaldado pela Segunda Emenda da Constituição e concebido no momento da formação como nação – associado a valores como patriotismo e liberdade. Em um país onde estima-se que existam 393 milhões de armas para 331 milhões de pessoas, foram registrados, nos primeiros três meses de 2023, 161 massacres.
Cada vez que ocorre um massacre nos Estados Unidos, o debate sobre o controle de armas volta ao centro do palco. Embora as tentativas do Partido Democrata de impulsionar iniciativas nesse sentido tenham falhado, o mencionado massacre na escola primária de Uvalde, no Texas, o mais mortal ocorrido em um ambiente educacional, possibilitou um acordo com uma parte do Partido Republicano para aprovar no Congresso uma lei que impõe algumas restrições ao uso de armas, um fato histórico.
Entretanto, a liberdade com a qual as armas circulam nos Estados Unidos não afeta apenas aquele país. O governo do México processou perante o Tribunal Federal de Massachusetts onze fabricantes de armas dos Estados Unidos por “práticas comerciais negligentes e ilícitas que facilitam o tráfico ilegal de armas para o México”. Porém, a ação foi inicialmente rejeitada e está em processo de apelação. De acordo com os dados da Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF), entre 70% e 90% das armas confiscadas no México vêm dos Estados Unidos por meio de contrabando, ou seja, cerca de 500 mil por ano. Há uma ação semelhante perante a CIDH e outra movida contra cinco comerciantes de armas do estado do Arizona.
As ações são baseadas na evidência de que as armas entram de forma ilegal e depois são usadas em atividades criminosas no México, e que os fabricantes sabem disso. Na verdade, certos modelos são projetados para atrair os membros dos cartéis mexicanos, como no caso da pistola calibre 38 “Colt Emiliano Zapata”, que leva o nome e a imagem do herói da Revolução Mexicana, bem como outras pistolas com a inscrição “El Jefe” gravada em dourado no ferrolho, ou “El Grito”, em referência ao início da luta pela independência.
Armas e mortes
Vamos dar uma visão geral da situação de diferentes países da América do Sul em relação ao número de mortes violentas intencionais registradas, taxas de homicídio e a porcentagem ou número de casos em que o tipo de arma utilizada foi uma arma de fogo.
Entre os países com maior taxa de homicídios, o primeiro é a Colômbia: 27,7 homicídios por 100 mil habitantes em 2021, o que representou a taxa mais alta desde os 29,4 em 2014. As mortes violentas intencionais foram 13.873, das quais 10.473 foram com armas de fogo. No país, há um total de 4.971.000 armas, das quais 706.210 estão registradas e 4.264.790 não estão, resultando em uma estimativa de 10,13 armas para cada 100 pessoas.[1]
A segunda maior taxa de homicídios da região está no Brasil, com 22,7 por 100 mil habitantes em 2021. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,[2] em 2021 foram registradas 47.503 vítimas, 76% com armas de fogo. No Brasil, circulam 17.510.000 armas, das quais 8.080.295 estão registradas e 9.429.705 não estão. Isso resulta em uma média de aproximadamente 8,29 armas para cada 100 pessoas.
Em contraste, a Argentina apresenta, juntamente com o Chile, a menor taxa de homicídios da região: 4,6 por 100 mil habitantes em 2021.[3] No Relatório de Homicídios Dolosos do mesmo ano, observa-se que houve 2.093 assassinatos, 52% deles cometidos com armas de fogo.[4] De acordo com o Registro Nacional de Feminicídios elaborado pelo Escritório da Mulher da Suprema Corte de Justiça da Nação, na Argentina, em 2021 foram registrados 251 feminicídios. Isso resulta em uma média de uma morte a cada 35 horas. Vinte e cinco por cento desses crimes foram cometidos com armas de fogo, ou seja, um em cada quatro. Na Argentina, existem 3.256.000 armas, das quais 1.562.332 estão registradas e 1.693.668 não estão em posse legal. Isso resulta em uma estimativa de 7,36 armas para cada 100 pessoas.
Além das particularidades de cada país – como um conflito que durou mais de quarenta anos e ainda não foi resolvido, na Colômbia, e altos índices de violência urbana, no Brasil –, a evidência demonstra que, quanto maior a disponibilidade de armas nas mãos da sociedade, maior é o número de mortes por armas de fogo, seja por homicídios, feminicídios ou suicídios.
As armas não são a solução
Não há nenhuma evidência de que a criminalidade diminua se a população se armar. Pelo contrário, de acordo com um estudo publicado em 2019 pelo Journal of Empirical Legal Studies, que analisa a evolução em 33 estados norte-americanos, os crimes violentos aumentam entre 13% e 15% após dez anos da adoção de leis que permitem o porte de armas.
Na Argentina, a posse e o porte de armas são regulados por leis e outras regulamentações. Não é uma atividade proibida, mas sim regulada pelo Estado. Pode-se inclusive discutir a capacidade do Estado de exercer o controle. Segundo dados oficiais, por exemplo, três em cada quatro credenciais de “usuários legítimos” estão vencidas.
Para obter uma arma na Argentina, é necessário primeiro tirar a credencial de usuário legítimo, independentemente da finalidade. Há distinção entre usuário individual e coletivo, é necessário ter mais de 21 anos, passar por uma avaliação psicofísica, apresentar um certificado de antecedentes criminais e comprovar competência no manuseio de armas. Para “possuir” uma arma, é necessário obter a credencial de posse junto à Agência Nacional de Materiais Controlados (ANMAC). E, se a arma for transportada, ela deve estar descarregada e separada da munição.
Se uma pessoa deseja obter permissão para portar a arma, ou seja, ter a arma carregada em condições de uso imediato em um local público, é necessário justificar as razões de segurança e defesa pelas quais está solicitando.
Qualquer modificação dessas regras deve passar pelo Congresso. E, nesse sentido, chama a atenção o fato de Milei, que atua como deputado, não ter apresentado nenhuma iniciativa a esse respeito. Além disso, atualmente existem treze iniciativas sobre controle de armas no Poder Legislativo, das quais oito se referem a programas de desarmamento e cinco visam aumentar as restrições de acesso para prevenir a violência de gênero.
Com o objetivo de reduzir e prevenir a violência armada, em oposição às propostas de Milei, deve-se impulsionar políticas de controle e desarmamento. É necessário, por um lado, manter um rigoroso controle do mercado legal e fiscalizá-lo. Parece óbvio, mas as armas nascem legais e em algum momento “entram” para o mercado ilegal. Por outro lado, é preciso combater o mercado ilegal por meio de uma política criminal ativa e, finalmente, promover políticas de prevenção da violência armada.
Uma das políticas públicas colocadas em prática desde 2007, por iniciativa e impulso da sociedade civil, é o Plano de Entrega Voluntária de Armas, chamado de Plano de Desarmamento, que teve um impacto significativo nos primeiros anos de funcionamento e depois apresentou uma queda progressiva. Até 2020, o Estado recebeu 206.178 armas e mais de 2 milhões de munições. No entanto, enquanto entre 2007 e 2008 foram entregues 63.226 armas, nos onze anos seguintes foram quase 143 mil, com as menores entregas coincidindo com os anos do governo de Mauricio Macri.[5]
María Pía Devoto é diretora da Asociación para Políticas Públicas (APP), coordenadora da Red de Seguridad Humana para América Latina y el Caribe (SEHLAC). A elaboração deste artigo contou com a colaboração de Ana Levintan.
[1] Todos os dados sobre a quantidade de armas são provenientes do mapa elaborado pelo projeto de pesquisa independente Small Arms do Global Firearms Holding.
[2] Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022, p.14.
[3] Secretaría de Seguridad y Política Criminal, Ministerio de Seguridad de la Nación Argentina, Sistema de Alerta Temprana – Homicidios Dolosos 2021, nov. 2022.
[4] Idem.
[5] Relatório sobre a evolução histórica do Plano de Entrega Voluntária de Armas fornecido à Asociación para Políticas Públicas (APP) no âmbito da Lei de Informação Pública.