As duas faces da crise venezuelana
Profunda, sangrenta, a crise Venezuela apaixona. Na mídia grande, ela serve a uma obsessão: criticar Jean-Luc Mélenchon na França, Jeremy Corbyn no Reino Unido e Pablo Iglesias na Espanha. Mas a crise interpela também os progressistas, mergulhados na desordem. Como interpretar os acontecimentos? O que fazer? Qual será o resultado?
Dois brutamontes avançam, intimidadores. O homem que está diante deles, com a cabeça coberta por um boné vermelho, tenta dialogar. De nada adianta: ele é empurrado, ameaçado… De repente, uma terceira pessoa aparece. Ela tira um revólver da calça e abre fogo. A multidão grita; o homem de boné cai.
Em agosto de 2017, esse vídeo feito com um celular foi visualizado por uma grande parte daqueles que se preocupam com a crise venezuelana. Três meses antes, o presidente Nicolás Maduro tinha decretado a eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC) destinada a substituir a Assembleia Nacional, única instituição nas mãos da oposição desde as eleições legislativas de 2015. Em seguida, a tensão se agravou: os enfrentamentos entre forças da ordem e manifestantes fizeram mais de uma centena de mortos, aí incluídos – o que parece ter passado despercebido para os meios de comunicação – os apoiadores do presidente.
“Eis como esses filhos da puta da oposição assassinam jovens chavistas!” Em 4 de agosto, um militante internacionalista presente na Venezuela divulgou o vídeo num fórum de discussão. “Eles foram até um líder da Juventude Socialista que estava escondido: ele tinha sido ameaçado pelas milícias de direita. Como seu colega se recusou a entregá-lo, eles o mataram.” Post após post, as reações de indignação se sucederam.
“Cuidado, a oposição também transmite o vídeo”, adverte então outro participante da discussão, sugerindo que os inimigos de Maduro utilizam as mesmas imagens para ilustrar a violência das autoridades. Trata-se de uma manipulação de direita? Ou o boné vermelho (cor dos chavistas) induzira a um erro de interpretação? De repente, a raiva cedeu lugar à dúvida, e a ânsia de retransmitir a informação, ao cuidado de confirmar sua origem. Feita a verificação, soube-se que a sequência provinha de uma representação teatral a céu aberto organizada por um evangelista em Porto Rico. Sem a menor relação com a Venezuela…
O caos político e econômico1 do país caribenho levou às manipulações mais caricaturais por parte dos dois lados, assim como nas colunas dos meios de comunicação internacionais, com frequência simpáticos à oposição (ler boxe). Um exemplo? Em 16 de julho, esta última organizou uma consulta popular sem o aval das autoridades. Uma das três perguntas feitas – “Você pede que as Forças Armadas Nacionais Bolivarianas defendam a Constituição […] e apoiem as decisões da Assembleia Nacional?” – formulava um apelo mal disfarçado a uma sublevação militar. Segundo os organizadores, cerca de 7 milhões de venezuelanos teriam se posicionado, rejeitando em sua imensa maioria o governo e seu projeto de ANC.2 Conclusão do New York Times: “Mais de 98% dos votantes apoiam a oposição”.3 A observação era acertada, mas ela o seria mais se o diário tivesse deixado claro que os “votantes” em questão representavam pouco mais de 35% do eleitorado e o resto da população em idade de votar não comparecera…
Luta fria pelo poder
Nesse contexto, a crise venezuelana deixou muitas mentes sem norte. Como todas as situações de luta intensa que têm como cerne o poder, esta pode ser interpretada em dois níveis distintos. Um, frio, situa-se no campo das ideias: ele convida a explorar os insucessos, os possíveis, o desejável. O outro, ardente, remete à política concreta e a suas frustrações: a luta política pede um vencedor, um vencido e, com frequência, a escolha de um lado, por mais desconfortável que ele seja. A posição – inclusive geográfica – dos observadores os conduz com frequência a privilegiar um ou outro desses modos de análise.
Longe da Venezuela, um debate emergiu pouco a pouco entre todos aqueles que tinham se interessado pelo “laboratório bolivariano” quando ele era portador de esperança: qual é a parte de responsabilidade do poder na crise que o país atravessa? Qual é a de uma oposição cujos procedimentos democráticos nunca causaram uma preocupação excessiva?4
Se a ideia de que o atual presidente faz pálida figura se comparado a seu mentor divide pouco, uma primeira corrente sugere que a ruptura no seio do chavismo seria mais profunda. Primeiro, por motivos de contingência: além da personalidade do ex-presidente, o período chavista foi marcado pela explosão dos preços do barril de petróleo. Após a eleição de Maduro, em 2013, eles desmoronaram. Para um, portanto, a habilidade política e a abundância; para outro, a estupidez e a escassez. Ou seja, o coquetel ideal para que uma força de esquerda acabe por se parecer com certas caricaturas imaginadas por seus adversários: a segunda ruptura entre “chavismo” e “madurismo”. Para a maior parte dos venezuelanos, o nome do ex-presidente evoca a redução das desigualdades num contexto de aprofundamento da democracia. O de seu sucessor é hoje associado ao retorno da pobreza, agravado por um endurecimento político e policial.
“Em geral, as análises [dos fracassos da esquerda] se concentram sobre a incapacidade que o Novo Mundo tem de nascer. Elas subestimam mecanicamente a violência ideológica e institucional que permite ao Velho se recusar a morrer”, escreveu o pesquisador norte-americano Greg Grandin.5 É, em essência, a resposta de uma segunda corrente que zomba das críticas “de esquerda”, consideradas ingênuas. Porque as coisas seriam, na realidade, de uma simplicidade cegante: 1) a Venezuela detém as mais importantes reservas petrolíferas do mundo; 2) os Estados Unidos pretendem controlar as reservas de energia do planeta; portanto, 3) Washington manobra para substituir Maduro por um fantoche mais sensível a seus interesses.
Difícil exagerar o peso do intervencionismo norte-americano em seu “quintal”. No entanto, a Venezuela de 2017 vive realmente uma reedição da operação que levou à derrubada de Salvador Allende no Chile em 1973, como tenta demonstrar a ex-vice-ministra Pasqualina Curcio?6 Podemos razoavelmente comparar a situação de Allende dois anos após sua eleição à de Maduro após quase vinte anos de chavismo? Caracas é tão frágil quanto Santiago diante das manobras do setor privado, tendo em mente que controla a quase totalidade da circulação de divisas? Durante o verão de 2017, o debate causou furor, uns destacando a filiação que liga Maduro a Chávez, outros insistindo na necessidade de salvar a herança do segundo ameaçada pela deriva do primeiro…
E depois, em 12 de agosto, Trump tomou a palavra. “Temos diferentes opções no que se refere à Venezuela. E devo dizer que não excluo uma intervenção militar”, afirmou o presidente norte-americano numa coletiva de imprensa. Essas propostas deixam embaraçados até os governos mais direitistas da região (entre eles a Argentina, o Brasil, a Colômbia e o México), que antes haviam denunciado a “ruptura da ordem democrática” na Venezuela.7 Eis que de repente eles condenam as ameaças intervencionistas de outra época.
No campo progressista, os floretes ideológicos são recolocados na bainha imediatamente. Especialista em querelas intestinas, a esquerda sabe identificar seus adversários principais. Salvar Chávez de Maduro? Seria mais urgente salvar Maduro de Trump e a Venezuela do Exército norte-americano…
Poderíamos, é claro, meditar sobre o golpe de Estado do presidente norte-americano, apoio providencial para Maduro, capaz de a um só tempo amordaçar a contestação interna e lhe dar o status de assassino internacional da arrogância dos Estados Unidos. Mas a posição dos observadores internacionais acaba de se aproximar daquela dos militantes de esquerda venezuelanos. Eles sabem que não basta desejar a existência de uma força progressista capaz de defender outra concepção da herança chavista para que ela apareça: impossível se refugiar no desejável, é preciso compor o real. E adotar outra grade de leitura.
Nessas condições, uma (pequena) parte dos progressistas se aproximou da oposição – quase sempre violenta, racista (porque as peles são mais escuras entre os partidários de Maduro), revanchista e neoliberal8 –, como o “chavista crítico” Nicmer Evans. Os outros perguntam: quem, hoje em dia, está em condições de mobilizar a esquerda fora do Partido Socialista Unificado da Venezuela (Psuv) de Maduro? Eles sabem a resposta – ninguém – e derramam, portanto, suas forças na luta contra a oposição, sempre lamentando ter de se unir a uma bandeira tão pouco envolvente.
No plano da política concreta, porém, a Venezuela encontra-se há vários anos num contexto mais próximo da guerra civil que dos canhões da democracia liberal: tentar definir se o campo chavista realiza uma virada ditatorial ou julgar o crédito democrático da oposição exige sutileza.
Após a eleição legislativa de 2015, a oposição assumiu o controle da Assembleia Nacional. Sua primeira decisão? Comprometer-se a derrubar Maduro “em seis meses”, ameaça que poucos Executivos no mundo tolerariam. Resposta do governo: apoiando-se em suspeitas de compra de votos que pesam sobre três deputados do estado do Amazonas, ele declarou inexistentes as decisões da Assembleia. Uma reação em cadeia se seguiu. Mais do que deixar a justiça fazer seu trabalho e começar seus trabalhos com base numa maioria já considerável (109 cadeiras em 167), a coalizão dos partidos adversários de Maduro denunciou uma ruptura da ordem constitucional.
Combate pela democracia? Batalha pelo socialismo? Não, luta fria pelo poder, mesmo que cada um dos golpes de força que os lances do adversário tornem previsíveis se disfarce em defesa do direito e da justiça. Os adeptos do “viver junto” vão lamentar sem dúvida, mas é assim: em suas fases agudas, a luta política só termina com a derrota de um dos lados. Ou até pior, num país como a Venezuela, cujos líderes podem legitimamente temer represálias que vão gerar uma vitória definitiva do adversário. O exemplo do Brasil, onde a chegada – contestável – da direita ao poder se traduz por uma caça às bruxas judiciária, deve incitar a desconfiança um pouco mais ao norte.
Houve um tempo em que o chavismo mobilizava porque despertava esperanças, não unicamente porque seus inimigos inspiravam medo. O horizonte teria se fechado para seus herdeiros, tomados como reféns de uma luta de morte em que um dos lados tem por principal qualidade… não ser o outro?
Numa obra consagrada às revoluções Francesa e Russa, o historiador Arno Mayer analisa uma disposição comum dos revolucionários de confundir dois tipos de adversário distintos: “A contrarrevolução composta do topo [da pirâmide social] e a antirrevolução espontânea e irregular da base. […] A contrarrevolução do alto, ao responder a uma mentalidade e a um motivo elitistas, não pôde realizar a junção com a antirrevolução popular de baixo, o que a tornava mais dependente da ajuda e da intervenção militar interna”.9 Na Venezuela de 2017, existem igualmente dois tipos de oposição: aquela – ideológica e sociológica – da elite; e aquela de uma base popular sobrecarregada pela escassez à qual o nome do presidente Maduro está hoje associado.
Nem a contrarrevolução nem a antirrevolução trabalham no plano das ideias – a primeira deseja conquistar o poder; a outra, matar a fome. Os chavistas perderiam tempo ao esperar a adesão da primeira, pois eles produzem a existência desta como a luz produz a sombra. É completamente diferente com a antirrevolução, em parte cimentada pelos fracassos econômicos do chavismo. Estes se explicam em grande extensão por uma constatação formulada pelo jornalista brasileiro Breno Altman: num regime democrático, “os governos dependem da boa vontade dos patrões” de colocar em prática seu programa. E o setor privado mostrou até agora pouca acomodação. Daí, para alguns, a ideia da ANC. Alegando permanecer no quadro político de ontem (ainda que os tipos de eleição tenham reforçado o lado dos apoiadores de Maduro), seus promotores defendem que ela permitirá uma radicalização do projeto chavista, levando à eliminação das instituições que o entravam e ao advento do socialismo.
No entanto, o partido de Maduro, gangrenado pelo arrivismo e pelo oportunismo, oferece realmente as garantias necessárias para uma renúncia serena aos ritos, mesmo superficiais, da democracia liberal? Sem falar dos entraves do Psuv ao desenvolvimento de um poder “comunal” – base do socialismo venezuelano –, cuja expansão enfraqueceria mecanicamente os potentados chavistas locais.
Por falta de sucesso nesse campo, porém, o espantalho da oposição pode acabar por seduzir.
Jornalismo de autópsia
Gostaria de entrar em contato com o senhor em relação a um programa que será gravado em breve. O tema será: ‘O que resta do chavismo na Venezuela?’. […] Se o assunto for de seu interesse, ficaríamos felizes de tê-lo entre os participantes desse debate.” Há alguns meses, Caracas desperta interesse. Obviamente, também o Le Monde Diplomatique.
Enviado por uma grande rede do serviço público de rádio, o convite ao Le Monde Diplomatique tinha sido precedido de outro, também proveniente da Maison de la Radio. Ele seria logo seguido de um terceiro, vindo de uma rede de televisão internacional. De um quarto, depois de um quinto…
O interesse da mídia pela Venezuela se manifesta mais quando o horizonte se torna sombrio para os progressistas. Entre 1999 e 2010, a proporção de pobres passou de 49,4% para 27,8% no país caribenho, que se tornou o menos desigual da região. As despesas de saúde saltaram cerca de 60% e o número de pessoas que recebem aposentadoria quadriplicou. Mas quando é a esquerda que está no poder, as análises que a mídia prefere são as autópsias. (R.L.)
*Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique.