As muitas faces do controle e da corrupção no Brasil
O controle externo a cargo dos tribunais de contas será capaz de contribuir substancialmente para a superação da estagnação detectada do combate à corrupção? Premidos por essa interrogação, os membros do Ministério Público de Contas observaram que é chegada a hora de reformar os tribunais de contasLuciano Ramos
Combater a corrupção e contê-la em patamares civilizados, infelizmente, não é um dos pontos de destaque internacional do Brasil, sobretudo se colocarmos nessa equação o peso de nossa economia no mundo e os voos pretendidos por nossa sociedade, com anseios de erradicação da pobreza – objetivo constitucional, inclusive –, além de liderança regional e até mesmo assento no Conselho de Segurança da ONU. Definitivamente, essa mazela interna – barreira a muitas aspirações brasileiras – ainda não encontrou em nossas terras um sistema eficaz de combate, ocasionando a relativamente difundida percepção de estarmos perdendo essa guerra crucial.
A esse sentimento coletivo, somem-se os números da Transparência Internacional, cujo ranking (2013) de percepção da corrupção no mundo situa o Brasil na 72a posição – queda de três posições em comparação com o ranking anterior –, além de atribuir-lhe pontuação inferior a 50% do total – demonstrativo de nossa reprovação e estagnação nessa matéria, consoante entrevista à BBC Brasil1 concedida por Alejandro Salas, diretor regional para as Américas da Transparência Internacional.
À evidência, essa ineficiência tem variadas causas, passando por aspectos históricos, culturais e sociológicos, mas sobretudo com profundas raízes na maneira como foi concebido o sistema de controle no país, reflexo de uma cambaleante evolução de determinadas instituições centrais nesse combate, ainda hoje muito longe do modelo ideal.
Como concepção teórica, a luta contra a corrupção no país deveria ser travada destacadamente em dois campos preparados para esse dever: de um lado, o Poder Judiciário, com atuação premente nesse âmbito dos diversos ramos do Ministério Público brasileiro; do outro, o Sistema de Controle Externo, cuja função de análise cotidiana dos gastos públicos deveria ser partilhada entre três instituições − Poder Legislativo, Tribunal de Contas da União (TCU) e Ministério Público de Contas.
Ocorre que, nos últimos dez anos, embora não tenhamos avançado como gostaríamos no combate à corrupção, aperfeiçoamos um dos pilares dessa batalha, notadamente com a reforma do Poder Judiciário realizada em 2004 – Emenda Constitucional n. 45 –, na esteira de uma CPI do Congresso Nacional que devassou as entranhas daquele Poder.
Entre os inúmeros avanços da reforma do Poder Judiciário de 2004, tem-se a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), cujas atuações deram origem ao efetivo enfrentamento de problemas gravíssimos como o nepotismo no Poder Público e a morosidade no julgamento de ações de improbidade administrativa – frutos da atuação do CNJ –, bem como a disciplina e intensificação das investigações dos diversos ramos do Ministério Público nos casos de crimes contra a administração pública e improbidade administrativa, preocupação diuturna do CNMP.
A rigor, uma reforma estrutural como essa produz resultados gradativamente, e estes já começam a ser sentidos, inclusive no que concerne à transparência e à clareza dos critérios de ascensão aos cargos de desembargador e ministros dos tribunais superiores. Portanto, a perspectiva é de avanço nesse plano do combate à corrupção, reforçada pelo julgamento do mensalão.
No entanto, se houve aperfeiçoamento em um dos campos da batalha contra a corrupção, o mesmo não ocorreu na medida necessária quanto ao Sistema de Controle Externo, estagnado no modelo concebido em 1988. E assim se manteve incólume, conquanto tenha constantemente questionada sua eficácia no desempenho dessa função primordial, sobretudo na última década, como demonstra estudo feito pelo próprio TCU, ao verificar em 2007 que apenas 1% das multas decorrentes de desvios de recursos públicos efetivamente retornou aos cofres públicos – apuração pertinente ao período de 2000 a abril de 2007.2
Na mesma linha, outro estudo constatou que entre 2002 e 2011, só na saúde pública, foram desviados R$ 2,3 bilhões, sem que o controle externo tenha conseguido antecipar-se a esses achaques aos cofres públicos, além de recuperar muito pouco do montante conhecido do desvio, que por sua vez é apenas uma fração do efetivamente desviado – conforme Tomadas de Contas Especiais encaminhadas ao TCU no período em referência.3
A aferição desses e outros dados ocasionaram algumas movimentações internas do controle externo, sobretudo no plano federal. No entanto, essas modificações tiveram os efeitos limitados que uma readaptação de um modelo saturado pode alcançar, muito longe de uma reforma estruturante como a do Poder Judiciário.
Ademais, se esse quadro insatisfatório é realidade no TCU, utilizado como parâmetro de qualidade para todos os demais tribunais de contas do país, não é difícil perceber quão longe do ideal está o controle externo nos estados, que além de compartilhar os problemas citados, com o agravante de nem sequer ter dados precisos e acessíveis de sua atuação na análise das contas públicas estaduais e municipais, ainda convive com diversos processos criminais e de improbidade administrativa contra conselheiros dessas cortes de contas, atingindo a espantosa cifra de 15% de seus membros implicados em processos e investigações dessa natureza.4
Em parte, esses números são explicados pelo pretenso equilíbrio que a Constituição estabeleceu em 1988 entre a política e a técnica na composição dos quadros dos tribunais de contas, com nítida preponderância do fator político. De fato, nas cortes estaduais, cinco dos sete julgadores advêm de escolhas estritamente políticas.5
Isso em um sistema que já consagra substancial peso aos parlamentos no julgamento das contas, destacadamente assembleias legislativas e câmaras de vereadores, com sua típica e salutar função de analisar os pareceres prévios emitidos pelos tribunais sobre as contas anuais de governo.
A rigor, é salutar que a política componha esse tipo de julgamento, mas isso converte-se em demasia quando o componente técnico fica diluído em todos os demais julgamentos a cargo dos tribunais de contas estaduais, em face de sua composição dar ampla preferência a quadros com um perfil específico, geralmente ex-deputados, ex-prefeitos ou antigos ocupantes de cargos políticos em geral.
Outrossim, a preponderância da técnica também é sufocada nas diversas cortes de contas em face do entendimento de que o Ministério Público de Contas, com seus membros especificamente selecionados em concurso público para atuar no controle das contas públicas, não possui autonomia financeira e administrativa, mitigando seu caráter institucional e a vocação precípua de controle da legalidade a cargo de todo membro do parquet.
Nesse caso, o artigo 130 da Constituição Federal garantiu expressamente as prerrogativas individuais de todos os membros do Ministério Público brasileiro para os componentes do Ministério Público de Contas, mas interpretações judiciais6 ocorridas na década de 1990 tiraram muito do peso concreto dessa dicção, mais uma vez em detrimento da técnica no controle externo.
Somado a isso, tem-se o fato de que, ao contrário dos demais magistrados que possuem as prerrogativas e sujeições previstas na Lei de Organização da Magistratura Nacional (Loman), os conselheiros dos tribunais de contas não respondem administrativa e disciplinarmente a um conselho imparcial como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o que potencializa as prerrogativas e mitiga as sujeições previstas nos artigos 73 e 75 da Constituição Federal.
Da mesma maneira, não se tem uma mínima uniformidade dos procedimentos de combate à corrupção, por meio dos julgamentos das contas, inclusive com orientações díspares em normas balizadoras do controle externo, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal7 (Lei Complementar n. 101/2000) e Lei de Licitações e Contratos Administrativos8 (Lei n. 8.666/1993).
Nesse ponto, cabe a reflexão: com esses dados negativos e a percepção da saturação do modelo atual, o controle externo a cargo dos tribunais de contas será capaz de contribuir substancialmente para a superação da estagnação detectada do combate à corrupção?
Premidos por essa interrogação e por aquilo que seus olhos veem no dia a dia do controle das contas públicas realizado em nosso país, os membros do Ministério Público de Contas observaram que é chegada a hora de reformar os tribunais de contas.
Assim, diversos debates foram travados no âmbito da Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon) e do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC), os quais serviram de norte para a Proposta de Emenda Constitucional n. 329/2013, de autoria do deputado federal Francisco Praciano (PT-AM).
No cerne da PEC n. 329/2013 está o entendimento sobre os entraves que o modelo atual do controle externo enfrenta, sob a ótica de diversos especialistas, entre eles muitos membros do Ministério Público de Contas, e que por isso mesmo foi abraçada por vários parlamentares, conscientes de que a sociedade brasileira quer ver avanços no combate à corrupção, tal qual demonstrado nas manifestações de rua ocorridas em 2013.
Obviamente, no bojo da PEC n. 329/2013 reequilibra-se o peso entre a técnica e a política no julgamento das cortes de contas, de maneira a tornar mais eficaz o combate à corrupção e mitigar influências indesejadas que favoreçam a impunidade, trazendo para sua composição representações dos órgãos de classe relativos às ciências sobre as quais os conselheiros dos tribunais de contas deverão ter notórios conhecimentos, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), conselhos regionais de contabilidade (CRC), conselhos regionais de administração (CRA) e conselhos regionais de economia (Corecon).
Ao lado disso, na esteira dos avanços da reforma do Poder Judiciário, a PEC n. 329/2013 estabelece que os ministros e conselheiros dos diversos tribunais de contas serão submetidos ao controle disciplinar do CNJ, legítimo cultor das imposições oriundas da Loman.
Com congruência, a referida proposta chancela decisão do CNMP reconhecedora da vinculação do Ministério Público de Contas ao Conselho Nacional do Ministério Público,9 com a incorporação expressa de seu conteúdo no texto do artigo 130-A, implicitamente presente no texto atual.
Avança igualmente quanto à previsão de lei complementar nacional para uniformizar os procedimentos das diversas cortes de contas e torná-los mais eficazes, inclusive atribuindo ao TCU a competência para velar pela aplicação da Constituição Federal no âmbito das diversas cortes de contas.
Enfim, diante da perspectiva de que o controle externo tem muito a contribuir com um aprofundamento mais substancial no combate à corrupção, desde que devidamente calibrado e reformado para tanto, tem-se como imperioso superar o modelo até então vigente em nossas cortes de contas para que não mais se concretizem a estagnação e o declínio detectados no ranking da Transparência Internacional.
E acima de tudo, que essa face do controle contribua para construir uma sociedade com oportunidades iguais para todos, sem favorecimentos de qualquer ordem, como pretende nossa Constituição desde sempre.
Luciano Ramos é Presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas.