As pílulas e a prisão: produção e gestão do sofrimento
Cerca de um terço dos 450 presos de um dos raios do CDP I de Pinheiros faz uso regular de remédios psicotrópicos distribuídos pela administração pública para combater os efeitos gerados pelo próprio encarceramento, como a dificuldade de dormir em razão da superlotação e a ansiedade provocada pela indefinição processualFábio Mallart
São Paulo, julho de 2015, Centro de Detenção Provisória de Pinheiros I. Em um quarto apertado, cerca de quarenta homens se aglomeram para narrar as dores e angústias da prisão. Um senhor, de aproximadamente 40 anos, resume de maneira categórica a situação atual do CDP I, mas, ao mesmo tempo, e em uma só frase, de todos os centros de detenção provisória do estado: “depósitos de pessoas sem situação definida”. As redes amarradas longe do chão, como camas improvisadas, denunciam a superlotação. Num espaço com oito camas, amontoam-se cerca de quarenta homens. Infiltrações e umidade, que produzem imagens esverdeadas – em alto-relevo – pelas paredes do pequeno cômodo de teto baixo, somam-se à dificuldade de respirar e ao calor que, ao emanar do concreto e do amontoado de corpos, produz gotas de suor que escorrem pelo rosto dos presentes. As reclamações são diversas: falta de assistência médica e jurídica, castigos coletivos, ausência de atividades de trabalho e de estudo, alimentação precária, agressões físicas e verbais. Dormir, nesse espaço exíguo, é praticamente impossível; utilizar o banheiro, muitas vezes sem água e entupido, inviável. Em tal cenário, caracterizado pela extrema precariedade, chama atenção o número de presos que ingerem psicofármacos. Segundo um interlocutor, dos 450 presos, “quase um terço toma remédio psiquiátrico”. Para além da precisão numérica, vale notar que, ao longo da visita, várias narrativas enunciavam: “Ih, senhor, é muita gente tomando remédio controlado, é muito sofrimento”. Joel,1 cerca de 30 anos, está medicado. Atualmente, consome diazepam e carbamazepina. Ao longo de sua trajetória, acumula mais de sete passagens pelo sistema penitenciário. O consumo de tais substâncias psiquiátricas teve início no CDP de Belém I, durante sua primeira prisão: “Comecei a estressar demais, a cadeia abala o psicológico”. Entre as entradas e saídas do sistema prisional, meu interlocutor circula – de maneira incessante e frenética – por comunidades terapêuticas, Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) e regiões como a chamada Cracolândia paulistana.
O caso de Joel e a dinâmica de funcionamento do CDP de Pinheiros I não constituem exceções; ao contrário, simbolizam a existência de linhas de força mais amplas. Por um lado, unidades prisionais que, em sua mecânica de funcionamento, operam como verdadeiras máquinas de produção de dor e sofrimento. Por outro – ou melhor, no cruzamento com o primeiro ponto –, homens e mulheres que começam a ingerir substâncias psiquiátricas em decorrência dos efeitos desencadeados pela própria experiência do encarceramento em massa. Personagens urbanos que em algum momento da vida passam pela prisão – em geral, vão e voltam –, mas também circulam por diversos equipamentos de saúde, assistência e cuidado.
De partida, o primeiro ponto: os textos que compõem esta série especial evidenciam que, antes, durante e depois do encarceramento, um sofrimento ininterrupto, físico e mental, marca a experiência daqueles que deslizam pelas múltiplas instâncias da lei e da ordem, a começar pelo ato da prisão, no qual as arbitrariedades, as torturas e as extorsões são constitutivas do modo de operação da força policial. Basta transitar por unidades prisionais do estado, sobretudo pelos CDPs – em tese, espaços institucionais destinados aos presos e às presas que nem sequer foram julgados – para constatar a presença de marcas que remetem ao ato da prisão. Múltiplas violências, físicas e psicológicas, que, como bem salienta Rafael Godoi,2 operam como uma espécie de ritual de passagem para o universo dos condenáveis, mas, ao mesmo tempo, como forma de punição – a céu aberto – antes da condenação propriamente dita.
Se antes mesmo da prisão a força policial crava suas marcas em corpos e mentes, lembrando que antecedentes criminais podem gerar execuções sumárias, haja vista que o critério do tinha passagem é adotado na gestão da vida e da morte por matadores encapuzados que atuam nas periferias da cidade,3 dentro dos muros institucionais essa mesma gestão – dia após dia, mês após mês, ano após ano – produz marcas indeléveis. Superlotação, racionamento de água, ausência de atividades de estudo e trabalho, falta de assistência médica e jurídica: traços que há tempos caracterizam a dinâmica das prisões e compõem, juntamente com os espancamentos, a alimentação precária e o desconhecimento dos presos em relação às situações processuais, múltiplas engrenagens que, em seu funcionamento cotidiano, são uma verdadeira máquina de produção de sofrimento que, ademais, opera em conexão com outras instâncias de controle.
São essas condições degradantes, as quais caracterizam a experiência carcerária, mas, no limite, o deslizamento dos sujeitos pelas múltiplas instâncias do sistema de justiça criminal, que muitos presos e presas mobilizam para explicar o consumo de substâncias psiquiátricas, referindo-se ao fato de que, entre outros sintomas, não conseguem dormir, não conseguem comer, ficam ansiosos. Dificuldades para dormir por causa da superlotação, falta de apetite em razão da alimentação precária, ansiedade em função da inexistência de qualquer informação precisa sobre a situação processual, esperando, não raro por anos, uma única audiência. Traços que, do ponto de vista de meus interlocutores, explicam os motivos pelos quais o consumo de tais substâncias teve início dentro do cárcere. “Nunca tomei nada antes, comecei porque não consigo dormir, foi a detenção que me viciou nessa porra de diazepam” (Caio, que entre idas e vindas acumula 26 anos de detenção).
Joana, com os dedos das mãos completamente feridos, nas pontas e cutículas, jamais consumiu pílulas psiquiátricas. A jovem, de aproximadamente 20 anos, chegou ao CDP Feminino de Franco da Rocha nos últimos dias de 2014. Os longos dias de espera que, lentamente, se transformaram em meses, sem obter quaisquer informações sobre sua situação perante a justiça, a fizeram conseguir – após diversas tentativas – um atendimento na enfermaria da unidade. Atualmente, consome diazepam, fluoxetina e pamergan: “Eu não aguento, tô chapando aqui dentro, a minha cabeça tá a milhão, tô comendo tudo os dedo, não consigo dormir”. A jovem é apenas um exemplo entre muitos presos e presas que consomem psicofármacos para amenizar o sofrimento: “Tem dia que eu tomo logo um monte pra ficar dormindo. A gente toma pra se dopar, pra conseguir dormir. Tem um monte de gente que toma pra tirar a cadeia dormindo” (presa do CDP Feminino). Ressalte-se que, se em diversas unidades nota-se a ausência de medicamentos para outras enfermidades, nesses mesmos espaços institucionais não se constata, na mesma proporção, a falta de pílulas psiquiátricas, entregues a homens e mulheres que não necessariamente têm diagnóstico de transtorno mental.4
Nas prisões, sintomas decorrentes da própria experiência do encarceramento em massa são objeto de medicalização. As condições mortíferas do cárcere, produto de sua mecânica de funcionamento, desencadeiam efeitos físicos e mentais que são geridos via substâncias psiquiátricas. Nesse ponto, tais medicamentos operam como mecanismo químico de administração de corpos e mentes, possibilitando controles ilimitados. Além disso, a prescrição dessas substâncias em presídios comuns – sempre superlotados, nos quais dormir é tarefa árdua, haja vista o número de corpos por metro quadrado – também se configura como técnica de gestão da população carcerária, bem como do espaço prisional superlotado: “É isso [os psicofármacos] que ajuda a segurar a cadeia, se não fosse isso…” (funcionária de um presídio em Franco da Rocha).
Vale notar que, para aqueles que atuam como lideranças no sistema carcerário, as pílulas psiquiátricas também auxiliam na gestão da cadeia: “Se a enfermaria não fizer isso aí, fica incontrolável; medicar é a melhor opção. Até nós do setor agradece, porque tem uns aí que mete a mão na sua cara e já era, os caras são incontroláveis” (liderança do CDP de Pinheiros III). Para além desses usos distintos, que têm como ponto de conexão a precariedade do sistema carcerário, no coração dessa máquina de produção de dor e sofrimento, pílulas e injetáveis também compõem o amplo repertório de punições que atravessam o corpo de presos e presas. Ora, não pode ser outra a constatação diante da narrativa de alguns de meus interlocutores que, ao se negarem a tomar os medicamentos prescritos, são castigados por meio de outras substâncias, em geral de injetáveis como o haldol: “Se você se recusa a tomar a medicação, os caras te entortam na injeção”.
De fato, há muitos homens e mulheres que começaram a ingerir psicofármacos dentro do cárcere, em decorrência de efeitos desencadeados pela própria experiência do encarceramento. Porém, há outros que já chegam às prisões munidos de suas prescrições médicas, obtidas em inúmeros equipamentos de saúde, assistência e cuidado. Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Unidades Básicas de Saúde (UBS), Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Ambulatórios Médicos de Especialidades (Ames), comunidades terapêuticas, hospitais psiquiátricos, orfanatos, albergues e outros tantos serviços que são uma espécie de roteiro lógico, percorrido passo a passo, por muitos de meus interlocutores que, em algum momento da vida, também passam pelas prisões.
Esse é o caso de Lúcia, presa pela primeira vez em 2004 por tráfico de drogas. Na ocasião, a jovem portava 0,09 grama de crack.5 Desde então, acumula uma série de passagens pelo sistema carcerário. Na infância e adolescência, transitou por orfanatos e albergues, além de comunidades terapêuticas. Sobre esse período, afirma: “Não lembro de nada”. Da última vez que foi presa, em meados de 2015, foi novamente acusada de tráfico, agora por portar 1,9 grama de crack e R$ 48,60. Foi em um orfanato que Lúcia, ainda na adolescência, começou a tomar psicofármacos. Atualmente no CDP Feminino, consome amytril e clonazepan. Quando não está presa, não é apenas a força policial que a persegue no centro da cidade: “O Caps sempre está atrás de mim”.
Se o processo de encarceramento em massa opera como estratégia política para gerir aqueles que são considerados indesejáveis e perigosos – daí a centralidade que o cárcere ocupa no cenário atual –, é importante lembrar que a prisão não opera sozinha. Pelo contrário, do início ao fim ela encontra-se conectada a outras tantas instituições e mecanismos que existem num relacionamento recíproco. A circulação incessante de vários de meus interlocutores, como é o caso de Lúcia (do orfanato para o albergue, para a comunidade terapêutica, para a prisão, para o Caps, para a prisão) e de Joel (da prisão para a comunidade terapêutica, para o Caps, para a prisão), evidencia que o cárcere é apenas uma passagem num circuito mais amplo, o que ajuda a compreender o motivo pelo qual as trajetórias de vários presos e presas são construídas no entra e sai desses “estabelecimentos que fingimos crer que se destinavam a evitar a prisão”.6 Ademais, é justamente a circulação por esses espaços conexos que organiza, ou melhor, delineia, o que Michel Foucault denomina de “carreiras disciplinares”, nas quais se observa todo um processo de produção. Ora, aqueles que são considerados delinquentes não são o resultado de uma suposta ausência de políticas governamentais, como se fossem excluídos relegados ao esquecimento; ao contrário, são o produto de constantes inserções institucionais, de vigilâncias rigorosas e de olhares minuciosos, que conjugam, em suas múltiplas faces: repressão, punição e controle; saúde, assistência e cuidado. O cárcere, nesse sentido, apenas dá continuidade a um processo que pode ter início fora das muralhas institucionais; afinal, o poder de punir – em sua função – “não é essencialmente diferente do de curar ou educar”.7 É por esse motivo que um preso do CDP III de Pinheiros, ao narrar sua experiência de internação em um hospital psiquiátrico, afirma: “Lá era que nem uma cadeia”. É por isso também que um adolescente, ao ser encaminhado para o tratamento da dependência química em uma comunidade terapêutica, em detrimento do confinamento num espaço de internação da Fundação Casa, enfatiza: “Não quero ficar aqui, é igual à Fundação Casa”.
Dessas vidas minúsculas, condenadas a esse jogo ininterrupto de confinar e fazer circular, de punir e tratar, de encarcerar e medicar, e que, além disso, são o produto, mas, vale dizer, também produtoras de vários dispositivos de controle contemporâneos, emergem prisões, espancamentos, torturas, unidades de internação da Fundação Casa, processos judiciais, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas, albergues, psicofármacos, Caps AD, entre outros tantos mecanismos destinados a gerir uma mesma população de indesejáveis e perigosos que, quando não está confinada nesses espaços de contenção, que muitas vezes operam como máquinas de produção de dor e sofrimento, está no mundão, mais especificamente em periferias, favelas, ruas da cidade e regiões como a Cracolândia. Trata-se de sujeitos cuja existência deixa apenas rastros, em virtude de acionar as tramas do poder, de se chocar, a todo instante, com discursos, saberes, práticas, políticas e equipamentos. Vidas minúsculas, mas de potência inimaginável, que resistem existindo juntas em suas circulações frenéticas, apesar do aparato grandioso mobilizado para controlar, marcar e abater, mas também para cuidar, tratar e higienizar.
Fábio Mallart é doutorando em Sociologia pela USP (bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Fapesp, processo n. 2015/02165-2) e autor do livro Cadeias dominadas: a Fundação Casa, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos (Terceiro Nome/Fapesp, São Paulo, 2014). É agente da Pastoral Carcerária e integrante do Projeto Temático Fapesp (2014/2018) – A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista, coordenado pela professora doutora Vera Telles.