As resistências e lutas no Brasil pandêmico
Ao lado das notícias das mortes pela pandemia se vê o aumento da violência contra as mulheres, do desmatamento das florestas, o avanço da mineração em terras indígenas, a intensificação da grilagem de terra no Brasil, o crescimento de assassinatos de lideranças comunitárias e de populações indígenas, afrodescendentes e afro-indígenas.
Na história da formação territorial do Brasil, as doenças epidêmicas não são novidade. Entre os séculos XV e XIX, a dizimação de grandes grupos étnicos devido ao contágio de doenças como varíola, tuberculose e sarampo, pertencentes ao campo patogênico europeu, foi utilizada pelos colonizadores como estratégia geopolítica na interiorização territorial, na dominação dos povos originários e na apropriação privada dos bens comuns.
Na “unificação microbiana do mundo”,[1] disparada com a “Era dos Descobrimentos” e aprofundada nos séculos XX e XXI, é possível perceber certa continuidade do uso das doenças epidêmicas como forma de dominação das vidas e manipulação das mortes. No caso do Brasil, esse cenário prevalece ininterruptamente desde a colonização até os dias atuais, tendo seus altos e baixos de acordo com o projeto político de dominação de seus governantes em cada época.
A expansão do capitalismo revestiu-se com uma aura de missão civilizatória baseada no humanismo europeu a troco do genocídio dos povos e da destruição dos bens naturais dos territórios de África, Ásia e América Latina. As geografias e histórias foram racializadas e consideradas como “primitivas”, “atrasadas”, “assimiladas” à natureza, o que serviu de justificativa para a colonização e modernização do território a partir da lógica exploratória capitalista.
O Brasil completou quatro meses de isolamento social – de parte da população – devido à pandemia da Covid-19. Até o momento, milhares de pessoas perderam seus empregos e tantas outras não puderam exercer seus trabalhos que já ocupavam o setor informal.
A crise gerada pelo coronavírus para milhares de famílias é resultado da estrutura econômica, social e política do desenvolvimento do capitalismo, que gera desigualdades agudas, com concentração de renda e poder nas mãos de poucos. A burguesia brasileira, subordinada ao capital internacional e que ainda mantém suas raízes escravocratas, é responsável por disparidades sociais, exploração da mão de obra e retirada de direitos de trabalhadores e trabalhadoras do Brasil.
A consequência inevitável dessa exploração é o agravamento das desigualdades sociais em todas as regiões do país, levando milhares de famílias a ficarem sem ter o que comer e onde morar. Nesse contexto, foi através da solidariedade dos movimentos sociais organizados e de muitas pessoas que essas famílias puderam receber ajuda no momento tão difícil que estamos vivendo.
A constatação do aumento exponencial do número de contágios e óbitos no Brasil é assustadora. Os números frios da pandemia anunciados pelas mídias são escandalosamente reveladores da necropolítica[2] imposta pelo governo do Brasil. Se fizermos uma comparação com a região da América do Sul – que contabiliza 3.453.715 casos de pessoas infectadas pelo novo coronavírus e 127.015 óbitos desde o início da pandemia –, o Brasil registrou 2.227.514 casos confirmados e a triste marca de 82.771 óbitos. Esses números representam cerca de 65% do total da região, tanto no contágio quanto nos óbitos. Os dados são de 23 de julho de 2020, conforme informações disponibilizadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e pela Opas (Organização Pan-Americana da Saúde).[3]
O modus operandi da necropolítica em curso no Brasil reproduz perversamente a estratégia dos velhos colonizadores: o genocídio como projeto político de dominação. A banalização das vidas, o caos instaurado no Ministério da Saúde pelo Governo Federal, a manipulação dos dados estatísticos, a subnotificação de casos de infectados e óbitos, a propagação de notícias falsas e a omissão da realidade pandêmica são os métodos utilizados pela política genocida do governo Bolsonaro.
Nesse sentido, o que já é terrível e desumano se torna ainda mais perverso, pois ao lado das notícias das mortes pela pandemia se vê o aumento da violência contra as mulheres, do desmatamento das florestas, o avanço da mineração em terras indígenas, a intensificação da grilagem de terra no Brasil, o crescimento de assassinatos de lideranças comunitárias e de populações indígenas, afrodescendentes e afro-indígenas.

O contexto pandêmico revela que a luta histórica dos movimentos sociais no Brasil é o que está segurando a balança para o país não entrar num grande colapso social. A unidade entre as várias frentes de lutas populares é, para muitas pessoas, a forma pela qual pode-se garantir o acesso a mantimentos básicos para a sobrevivência. A resistência e a solidariedade dos movimentos sociais articulados na luta diária pela vida das pessoas e comunidades são faróis que iluminam o túnel escuro e sufocante instalado pelo capitalismo gore.[4]
Por isso, na contramão da necropolítica do governo Bolsonaro e na luta contra a pandemia da Covid-19, vemos as notícias que nos dão sinais de esperanças: “Em Jornada Nacional de Lutas, MST distribui 500 toneladas de alimentos saudáveis em todo o país”, o bloco afro feminino “Ilú Obá de Min compartilha cantos, dança e poesia em Sarau”, “Casa da Mulher do Nordeste distribui cestas básicas para mulheres do campo e da cidade em vulnerabilidade social”, “Mulheres Imigrantes e Refugiadas se juntam ao Cemir para enfrentar a falta de trabalho neste momento de pandemia” e “Movimentos lançam campanha de solidariedade aos catadores de materiais recicláveis”,[5] entre outras. Com notícias como essas, o sorriso e a lágrima se misturam nos rostos de quem ainda acredita numa transformação substancial e igualitária, na construção de um projeto político que abarque as urgências das lutas sociais da sociedade brasileira.
As lutas populares no campo e na cidade são potencialidades históricas de emancipação da classe oprimida, por isso a resistência não pode acontecer isoladamente nem fazer abstração das demais injustiças sociais e discriminações existentes no mundo. A luta somente é possível e verdadeiramente eficaz quando articulada com todas as lutas solidárias que vão contra qualquer forma de opressão, marginalização, perseguição e discriminação.
A solidariedade dos movimentos sociais e a força da resistência nos ensinam que a empatia do oprimido com seus semelhantes é a centelha da esperança que a “seta do progresso infinito” não pode deter.[6] Nessa direção, como escreveu Walter Benjamin, a tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado exceção” em que vivemos é a regra. Portanto, cabe-nos originar um “verdadeiro estado de exceção”, no qual a luta do oprimido pela sua emancipação traga no seu bojo a crítica vigorosa contra a concepção insustentável do “progresso capitalista” como uma norma histórica.
As campanhas de solidariedade e apoio mútuo são sementes de resistência que nos alimentam de vida e esperança, permitindo tecer redes de união, afetos e lutas que estão nas mais variadas escalas, como no campo, nos bairros periféricos, nos centros urbanos e nos territórios dos povos originários.
A união de oprimidos e oprimidas contra a imposição do individualismo de mercado e a barbárie neoliberal nos ensina que nossa luta frente à pandemia é herdeira de séculos de resistência. Os movimentos sociais estão na contramão do projeto de morte, baseado em exploração e opressão do povo pelo sistema capitalista, o qual promove desde sempre a destruição das diferentes formas de vida, desde a biosfera até as culturas dos povos marginalizados. Só a luta muda a vida. Resistir é viver!
COLETIVO RESISTÊNCIA E LUTA
Daniel Bruno Vasconcelos
Ginneth Pulido Gómez
Jéssica Aparecida Corrêa
Priscila Viana Alves
O texto foi construído a partir do trabalho coletivo e da participação no Grupo de Trabalho (GT) Geografia e Covid-19 da Universidade de São Paulo (USP).
Os autores são discentes do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da USP.
Arte produzida por Dayse Gomis, mulher, preta, ilustradora, ativista pelos Direitos Humanos.
Licenciatura em Educação Artística com diploma em Arte Plástica pela Universidade Metodista Bennett no Rio de Janeiro. Pedidos de ilustrações: @daysegomis (Instagram)
Contato: [email protected]
[1] A unificação microbiana do mundo refere-se ao “choque epidemiológico” resultante da Era dos Descobrimentos, quando as doenças pertencentes ao campo patogênico europeu propagaram-se para os demais continentes. Temos como exemplo a varíola, uma doença europeia que matou milhares de pessoas originárias dos continentes americano e africano. A respeito do assunto, consultar Luiz F. Alencastro (O trato dos viventes, 2000).
[2] Consultar a obra de Achille Mbembe, Necropolítica. Biopoder, soberania e estado de exceção (2018) para compreender a política da morte no mundo contemporâneo.
[3] Informações atualizadas sobre a pandemia podem ser encontradas em: https://bit.ly/39F0XHG. Acesso em: 29 jul. 2020.
[4] Em Capitalismo gore (2010), a autora Valencia T. Sayak explica que o termo se refere à violência extrema e explícita. No capitalismo gore, o uso predatório dos corpos, fundado no derramamento de sangue injustificado, tem seu auge destrutivo com a expansão do necroempoderamento do crime organizado baseada no genocídio como negócio e mercadoria.
[5] As notícias podem ser encontradas, respectivamente, nos endereços https://bit.ly/2BFNFOt, https://bit.ly/2Dk4xul, https://bit.ly/30Xouj4, https://bit.ly/39Drsx4 e https://bit.ly/3gek6Cs. Acesso em: 29 jul. 2020.
[6] Consultar em especial o capítulo de Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história (2012) em que Benjamin apresenta as teses sobre o conceito de história.