Seria o capitalismo uma doença?
Que o modelo de desenvolvimento capitalista promove um desequilíbrio ambiental e social é inegável, mas até que ponto ele pode ser considerado uma doença?
Em outra oportunidade [1] sugerimos que o neoliberalismo é um processo estranho ou desacoplado dos sistemas da natureza, ao alertamos que o individualismo está esgotando o patrimônio natural com o objetivo competitivo de concentrar renda, provocando uma desmedida destruição ambiental e desigualdade social que pode comprometer a nossa resiliência na Terra. Que o modelo de desenvolvimento capitalista promove um desequilíbrio ambiental e social é inegável, mas até que ponto o capitalismo pode ser considerado uma doença?
Biólogos marxistas já haviam se indagado se o capitalismo seria de fato uma doença [2]. Aqui, nós propomos responder a esta questão de um ponto de vista interdisciplinar, assumindo de forma ampla que doença é uma anormalidade que perturba a homeostase do organismo, do ambiente social e ambiental e que pode ser fatal.
Humanos, tal como outros primatas, são animais que vivem em grupos sociais estruturados sob algum tipo de sistema hierárquico. No entanto, alguns grupos de macacos muriquis, por exemplo, vivem em grupos sociais que se aproximam de sistemas igualitários, assim como os Kibutz são tidos como exemplos possíveis de cooperação e isonomia entre a espécie humana.
A hierarquia social constitui-se, portanto, em um sistema que ordena os indivíduos em ranques que naturalizam o acesso desigual aos bens necessários para viver [3]. Embora presente na maioria dos animais sociais, é nas relações humanas que as diferenças se aprofundam, seja em termos de renda, classe, status social, idade, gênero, religião, etnia ou nacionalidade, clivados por um regime capitalista de acumulação sob dominância financeira que está colocando em risco também a biodiversidade em escala global [4].
É fruto da racionalidade humana a criação de um sistema de status socioeconômico que categoriza os indivíduos pelo acúmulo ilimitado de bens ou de abstrações simbólicas como dinheiro, prestígio, influência, resultando em pouquíssimos indivíduos dominantes com muito poder e uma esmagadora maioria de indivíduos subordinados com pouco ou nenhum acesso aos bens mínimos para sobreviver. Nesse sentido, a pobreza é uma invenção humana imposta pelos grupos dominantes [3; 5], na forma de uma ditatura de mercado [6], em que as mazelas sociais nunca foram reconhecidas como pauta prioritária dos direitos humanos.
Tal sistema de estratificação e zoneamento desuniformes teve provável origem no início da agricultura [7; 8], mas certamente foi revigorado e acelerado no capitalismo neoliberal, quando a produção dos bens e a força de trabalho passou a estar a serviço da ganância dos proprietários, sem levar em conta as necessidades reais da população, a utilidade da produção, bem como o esgotamento dos recursos ambientais [4; 9].
Os poucos indivíduos dominantes no topo da cadeia da renda determinam o modus operandi do capitalismo para concentrar o lucro sem a necessidade de gastá-lo [4; 9], enquanto a imensa maioria dos outros indivíduos pobres vive não apenas com o problema da falta de recursos, mas também com maior exposição a ameaças, violências, riscos ambientais e pressão psicológica causada pelo sentimento de opressão e desigualdade [2; 3]. A grande massa de pessoas vulneráveis é parasitada em proveito dos ricos [4; 5], seja pela exploração da força de trabalho em contratos cada dia mais draconianos ou como parte do exército de reserva de mercado que condiciona aos trabalhos informais, precarizando ainda mais as condições de vida.
Ademais, a pobreza transforma-se em exclusão multifacetada que aumenta as oportunidades para as doenças e impede o acesso ao tratamento delas, sujeitando os indivíduos ao estado permanente de estresse [2; 3]. As privações e ameaças produzem enfermidades crônicas, deixando os organismos ainda mais suscetíveis a outras adversidades, reduzindo por consequência a expectativa de vida [2]. Quanto maior a inequidade vivida por uma comunidade, maior é a relação entre o gradiente de hierarquia socioeconômica e a qualidade de saúde. Tal condição de desigualdade foi algo nunca visto antes na história dos animais [3].
O suposto universalismo da dita conquista civilizatória de valores como igualdade, liberdade e fraternidade são adstritos a um status de cidadania privilegiado que apenas as categorias sociais mais elevadas têm acesso e tutela efetiva do Estado de direito. A mercantilização das relações sociais faz com que os indivíduos deem mais atenção à produção de coisas do que às pessoas [6], o que aumenta a taxa de competição, de agressividade, de fraude e corrupção, minando o balanço de cooperação e reciprocidade que sustenta uma sociedade [3], deixando-a doente.
Do ponto de vista ecológico-ambiental, o capitalismo neoliberal ao perturbar o ambiente a ponto de minar sua resiliência, pode ser entendido como uma enfermidade [1]. Em Ecologia [10], as entidades naturais são diversas e diversificadas em suas funções, são integradas (interconectadas e interdependentes) e reguladas entre si. Os estratos mais valiosos em relação à base de sustentação da energia dos sistemas ecológicos são os estratos primários, os estratos produtores, que são os mais abundantes da cadeia trófica. É o verde fotossintético que produz a energia disponível para os níveis de consumo acima e tende a regulá-los. Pela termodinâmica, quanto mais acima os níveis de consumo estão, menos eficientes são no trato com a energia e, portanto, mais raros.
Ocorre que o capitalismo neoliberal não é um processo regulado e é pautado na individualização competitiva, na reificação da natureza em mercadorias de valor e função homogêneos, valorando como mais lucrativas as etapas no topo de produção, que estão mais distantes do nível fundacional [9].
O processo de mercantilização estaria, dessa forma, sugando a energia dos ecossistemas para si como um buraco negro, sendo que o impacto ou descarte de energia do processo não é eficientemente reabsorvido ou transformado pela natureza, pois é perdido na forma de acúmulo improdutivo ou na forma de dissipação [4; 9]. O capitalismo neoliberal está, nesse sentido, catalisando a entropia, a perda de energia e a desorganização extremamente rápida dos ecossistemas, afetando de forma definitiva a saúde do planeta.
A extração, produção e comércio dos bens têm de fato conexão ecológica com a natureza, estando sob regulações e limites do próprio sistema ecológico [9]. Mas os negacionistas dos impactos permanentes e globais da destruição da natureza consideram-se autônomos e livres do meio ambiente. Assim, quanto mais longe estão da base do processo de exploração, mais alienados ou descomprometidos com os danos que produzem e, não por acaso, são os que se encontram no topo da pirâmide social. E quando reconhecem o problema, tendem a descontar o custo, o dano ou a injustiça como um preço para que as coisas funcionem, oferecendo seus próprios produtos e tecnologias como possíveis soluções para os desastres ambientais. Sem fazer cessar as causas de reprodução do sistema, a estratégia neoliberal vende a aparência de ser bem-sucedida e imprescindível, mas omite que a longo prazo fragilizará todos os ambientes, colapsando as sociedades [5].
Portanto, o capitalismo neoliberal é antiecológico [9] por ser um processamento sempre de cima para baixo, desregulado e altamente desorganizador. E como cria a pobreza e justifica a desigualdade, perturbando cronicamente a homeostase dos indivíduos, da sociedade e dos ecossistemas pode ser considerado um agente potencializador de doenças para o indivíduo e o agente etiológico para a sociedade e para o ambiente.
Lucas M. Aguiar é doutor em Zoologia e professor da Unila.
Gisele Ricobom é doutora em Direitos Humanos e professora da UFRJ.
Referências
1 Aguiar LM, Ricobom G. 2020. Resiliência ou adaptação: dilema pós-coronavírus. In: Teixeira, JPA. Pensar a pandemia: perspectivas críticas para o enfrentamento da crise. No prelo.
2 Lewontin R, Levins R. 2007. Biology under the influence: dialectical essays on ecology, agriculture and health. New York: Monthly Review Press, 400p.
3 Sapolsky RM. 2018. Behave: the biology of humans at our best and worst. New York: Penguin Books, 800p.
4 Dowbor L. 2017. A era do capital improdutivo. Por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo? São Paulo: Editora Autonomia Literária, 316p.
5 Diamond J. 2020. Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. São Paulo: Editora Record, 699p.
6 Dardot. P; Laval, C. 2016. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo Editorial, 416p.
7 Diamond J. 2017. Armas, germes e aço. São Paulo: Editora Record, 476p.
8 Harari YN. 2015. Sapiens, uma breve história da humanidade. São Paulo: Editora L&PM, 464p.
9 Berg M. 2016. An ecological critique of capitalism, Theses. University of San Diego. Doi: https://doi.org/10.22371/02.2016.008.
10 Levin SA et al. 2009. The Princeton guide to Ecology. Princeton: Princeton University Press, 825p.