As revoltas árabes e o caos líbio
Em 17 de março de 2011, o Conselho de Segurança da ONU deu o aval para uma ação militar contra o regime de Muamar Kadafi. Esse cheque em branco jurídico, que não tinha sido obtido nem na guerra do Kosovo nem na do Iraque, não levantou todas as questões relativas à incoerência moral do jogo das potências
Até um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes por dia. O fato de os Estados Unidos, a França e o Reino Unido terem tomado a iniciativa de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU autorizando o recurso à força contra o regime líbio não deveria ser suficiente para recusá-lo de cara. Um movimento de rebelião desarmado e confrontado a um regime de terror às vezes se encontra forçado a se dirigir a uma polícia internacional pouco recomendável. Concentrado em sua desgraça, ele não recusará os socorros somente porque tal política desdenha dos apelos de outras vítimas. Ele esquecerá até que ela é mais conhecida por ser uma força de repressão do que por ser uma associação de ajuda mútua.
Mas, logicamente, o que serviu de bússola aos rebeldes líbios em perigo extremo não foi suficiente para legitimar essa nova guerra das potências ocidentais em terra árabe. A intervenção dos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) constituiu um meio inadmissível para tentar chegar a um fim desejável (a queda de Muamar Kadafi). Se esse meio adquiriu a aparência de evidência, condenando cada um a “escolher” entre os bombardeios ocidentais ou a destruição dos líbios revoltados, foi unicamente porque outras vias de recursos – a intervenção ao lado deles de uma força da ONU, do Egito ou pan-arábica – tinham sido excluídas.
No entanto, o histórico dos exércitos ocidentais nos impede de dar qualquer crédito aos motivos generosos dos quais eles se aproveitaram em 2011. Quem acredita, aliás, que Estados, quaisquer que sejam, consagram seus recursos e seu exército à realização de objetivos democráticos? Além disso, a história recente nos lembra de que, se as guerras que têm esse motivo como pretexto encontram sucessos iniciais fulgurantes e amplamente midiatizados, as etapas seguintes podem ser mais caóticas e discretas. Na Somália, no Afeganistão e no Iraque, os combates não acabaram, mesmo se Mogadíscio, Cabul e Bagdá tenham “caído” há anos.
O fator Kadafi
Como seus vizinhos tunisianos e egípcios, os rebeldes líbios teriam gostado de depor por conta própria um poder despótico. A intervenção militar franco-anglo-norte-americana ameaça fazer deles devedores das potências que nunca se preocuparam com sua liberdade. Mas a responsabilidade dessa exceção regional deve-se em primeiro lugar a Kadafi. Sem a fúria repressiva de seu regime, que, ao longo de quarenta anos, passou de ditadura anti-imperialista a despotismo pró-ocidental, sem seus discursos violentos designando todos os seus opositores como “agentes da Al-Qaeda”, como “ratos que recebem dinheiro e trabalham para os serviços de informação estrangeiros”, o destino do levante líbio teria dependido apenas de seu povo.
A Resolução n. 1.973 do Conselho de Segurança, que autoriza o bombardeio da Líbia, talvez tenha impedido o esmagamento de uma revolta condenada pela pobreza de seus recursos militares. Ela se relacionava, no entanto, a um baile de hipócritas. Pois não é porque Kadafi exercia a pior das ditaduras, ou a mais assassina, que suas tropas foram bombardeadas, e ele linchado, mas porque ele era ao mesmo tempo mais fraco que os outros, sem armas nucleares e sem amigos poderosos capazes de protegê-lo de um ataque militar ou de defender sua causa no Conselho de Segurança. A intervenção decidida contra ele confirmou que o direito internacional não possuía princípios claros, cuja violação provocaria consequências em toda parte.
A lavagem diplomática é como a lavagem de dinheiro financeira: um momento de virtude permite apagar décadas de torpeza. Assim, o presidente francês fez bombardearem seu antigo parceiro de negócios, a quem recebeu em 2007, mesmo conhecendo a natureza de seu regime – agradecemos, no entanto, Nicolas Sarkozy por não ter proposto a Kadafi o “savoir-faire de nossas forças de segurança” oferecido em janeiro de 2011 ao presidente tunisiano Zine al-Abidine ben Ali… Já o então primeiro-ministro Silvio Berlusconi, “amigo íntimo” do guia líbio, que esteve onze vezes em Roma, aliou-se de má vontade à coalizão virtuosa.
Uma maioria de anciãos contestados pela onda democrática está instalada no seio da Liga Árabe; ela se uniu ao movimento da ONU antes de fingir consternação assim que os primeiros mísseis norte-americanos foram lançados. A Rússia e a China tinham o poder de se opor à resolução do Conselho de Segurança, de modificá-la para reduzir o porte ou os riscos da escalada. Se tivessem feito isso, não teriam depois “lamentado” os abusos de poder da Otan. Enfim, para termos plena noção da justiça da “comunidade internacional” nesse caso, devemos ressaltar que a Resolução n. 1.973 censurava a Líbia por “detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, torturas e execuções sumárias”, coisas que não existem, naturalmente, nem em Guantánamo, nem na Chechênia, nem na China…
Mas a “proteção dos civis” não é simplesmente uma exigência moral. Em períodos de conflito armado, ela pode demandar o bombardeio de objetivos militares, quer dizer, de soldados (na maior parte das vezes civis obrigados a usar o uniforme…), misturados com a população desarmada. Quanto ao controle de uma “zona de exclusão aérea”, isso significa que os aviões que patrulham essa área correm o risco de ser abatidos e seus pilotos capturados, o que em seguida justificará que as tropas no solo sejam utilizadas para libertá-los.1 Pode-se dourar o quanto quiser o vocabulário, mas não é possível falar indefinidamente sobre a guerra com eufemismos.
Porém, em última análise, a guerra pertence aos que a decidem e conduzem, não aos que a aconselham pensando que será curta e alegre. Imaginar em casa os planos impecáveis de uma guerra sem ódio e sem “máculas” é bem charmoso, mas a força militar a quem se confia a missão de executá-los o fará em função de suas inclinações e suas exigências. O que equivale dizer que os cadáveres dos soldados líbios “leais” metralhados durante sua retirada e o linchamento de Kadafi foram, assim como a multidão ululante de Bengasi, consequências da Resolução n. 1.973 das Nações Unidas.
Confusão entre os progressistas
As forças progressistas do mundo inteiro se dividiram sobre o caso líbio, entre a solidariedade a um povo oprimido ou a oposição a uma guerra ocidental. Os dois critérios de julgamento são pertinentes e necessários, mas não podemos sempre reclamar sua satisfação simultânea. É preciso, quando devemos escolher, determinar o que um selo de “anti-imperialista” obtido na arena internacional autoriza a impor cotidianamente ao povo.
No caso de Kadafi, o silêncio de diversos governos de esquerda latino-americanos (Venezuela, Cuba, Nicarágua, Bolívia) sobre a repressão que ele ordenou desconcerta ainda mais, porque a oposição do guia líbio ao “Ocidente” era pura fachada. Kadafi denunciou o “complô colonialista” do qual seria vítima, mas o fez depois de ter garantido às antigas potências coloniais que “estamos todos no mesmo combate contra o terrorismo. Nossos serviços de informação cooperam. Nós ajudamos muito vocês nesses últimos anos”.2
Acompanhado por Hugo Chávez, Daniel Ortega e Fidel Castro, Kadafi pretendia que o ataque contra ele se explicasse pelo desejo de “controlar o petróleo”. No entanto, este já era explorado pela norte-americana Occidental Petroleum (Oxy), pela britânica BP e pela italiana Ente Nazionale Idrocarburi (ENI). Alguns meses antes da resolução da ONU, o FMI saudava inclusive o “forte desempenho macroeconômico da Líbia e seus progressos no fortalecimento do papel do setor privado”.3 Amigo de Kadafi, Ben Ali tinha recebido elogios comparáveis em novembro de 2008, mas feitos pessoalmente pelo então diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, que acabava de chegar de… Trípoli.4
O antigo verniz revolucionário e anti-imperialista de Kadafi, restaurado em Caracas e Havana, tinha igualmente escapado ao britânico Anthony Giddens, teórico da “terceira via” blairista. Ele anunciava em 2007 que a Líbia se tornaria em breve uma “Noruega da África do Norte: próspera, igualitária e voltada para o futuro”.5 Ao olhar para a lista tão eclética dos que foram enganados por ele, como acreditar que o guia líbio era tão louco quanto se pretendia?
Diversas razões explicam por que os governantes de esquerda latino-americanos se enganaram a seu respeito. Eles queriam ver nele um inimigo de seu inimigo (os Estados Unidos), mas isso não deveria ser suficiente para fazer dele um amigo. Um conhecimento medíocre da África do Norte – Chávez disse ter ficado sabendo da situação na Tunísia ao ligar para Kadafi… – levou-os em seguida a se opor à “colossal campanha de mentiras orquestrada pelas mídias”, como disse Castro.
Ainda mais porque as mídias provocavam lembranças pessoais cuja pertinência era discutível nesse caso. “Eu não sei por que o que está acontecendo e aconteceu lá”, declarou o presidente venezuelano com relação à Líbia, “me faz pensar no Hugo Chávez de 11 de abril.” Em 11 de abril de 2002, um golpe de Estado apoiado pelas mídias por meio de informações manipuladas tinha efetivamente tentado derrubá-lo.
Outros fatores apontavam para um erro de análise da situação líbia: um modo de olhar forjado por décadas de intervenção armada e de dominação violenta dos Estados Unidos na América Latina, o fato de que a Líbia ajudou a Venezuela a entrar na África e o papel dos dois Estados no seio da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e na cúpula América do Sul-África (ASA), a iniciativa geopolítica de Caracas visando reequilibrar sua diplomacia para estreitar a cooperação Sul-Sul.
A isso devemos ainda acrescentar a tendência do presidente Chávez de supor que as ligações diplomáticas de seu país implicam uma relação de proximidade pessoal entre ele e os chefes de Estado: “Fui amigo do rei Fahd da Arábia Saudita, sou amigo do rei Abdallah, que esteve aqui em Caracas […]. Amigo do emir do Catar, do presidente da Síria, um amigo, que esteve aqui também. Amigo do Bouteflika”.6 Quando o regime de Kadafi (“meu amigo há muito tempo”) se voltou para a repressão de seu povo, uma via também tomada por Bashar al-Assad na Síria, essa amizade pesou para o lado errado. Definitivamente, Chávez perdeu a oportunidade de definir as revoltas do continente africano como irmãs mais novas dos movimentos de esquerda latino-americanos que ele conhece tão bem.
Para além desses desvios, a diplomacia representa sem dúvida o território no qual, em todos os países, revelam-se melhor as implicações de um exercício solitário do poder feito de decisões opacas, livres do controle parlamentar e da deliberação popular. Quando ela se vangloria, como no Conselho de Segurança, de defender a democracia pela guerra, o contraste necessariamente surpreende.
A ausência de coerência, quer dizer, a utilização em alguns casos de argumentos que seriam refutados em outras circunstâncias, não é unicamente imputável aos Estados que defendem seus interesses (ou seus amigos) em primeiro lugar e encarregam sem hesitação juristas disciplinados de aplicar sobre suas decisões o verniz de respeitabilidade necessário. Os cidadãos também se contorcem entre a defesa escrupulosa do direito internacional, que torna muito difícil a intervenção nas relações internas de um Estado, e a preocupação de não deixar indefesa uma população que seu próprio governo teria escolhido oprimir ou esmagar. Assim, a maioria dos intelectuais e militantes de esquerda que, em 1999, defenderam o bombardeio da Iugoslávia pela Otan no Kosovo, realizado sem o aval das Nações Unidas e contra a opinião de dois dos cinco membros do Conselho de Segurança, opôs-se três anos depois à Guerra do Iraque, pleiteando respeito ao direito internacional. Como sustentar, no entanto, que o regime de Slobodan Milosevic era mais tirânico do que o de Saddam Hussein?
Para cada ocasião, um discurso
Às vezes, esse tipo de inconsequência explode a alguns minutos (ou algumas páginas) de intervalo nos discursos que elaboram os principais protagonistas desses conflitos. Assim, em suas Memórias, publicadas em 2011, o ex-presidente Jacques Chirac justifica da seguinte maneira a participação da França na Guerra do Kosovo: “Tudo deve ser feito para que uma eventual intervenção militar possa se apoiar numa base jurídica. Um desacordo nos separa neste ponto das teses norte-americanas. Enquanto a maior parte de nossos parceiros europeus considera, como nós, que uma autorização das Nações Unidas é necessária, os Estados Unidos estimam, por outro lado, que tal acordo, mesmo que desejável, não é indispensável. Esse é todo o debate que nos oporá cinco anos depois com relação ao caso iraquiano”.7 Menos de dez páginas depois, contudo, o que não deveria acontecer acontece: “Diante desse fracasso [das negociações com o regime de Milosevic], a Otan deve resolver intervir para acabar com os atos de violência e a limpeza étnica no Kosovo e ordenar ataques aéreos na Sérvia. […] A Rússia ameaçou usar seu direito de veto contra o emprego da força no Kosovo […]. Desde então, a questão que se levanta é a legitimidade de tal operação. Naturalmente, eu me questionei muito a esse respeito, levando em conta minha própria preocupação de que as regras do Conselho de Segurança fossem respeitadas em todas as circunstâncias. Mas depois de refletir bem, pareceu-me inconcebível, no caso preciso de uma intervenção visando somente impor a paz, que nosso país se abstivesse de tomar o partido da defesa de seus próprios valores, violados por um regime criminoso no seio do continente europeu”.8
Durante a Guerra do Iraque, o caráter indiscutivelmente “criminoso” do regime de Saddam Hussein não levou Paris às mesmas decisões. “O que está em causa hoje”, explica então Chirac com relação à situação de 2003, “não é a mudança de regime iraquiano. Podemos desejá-lo, desejamos naturalmente, mas é preciso um pouco de ordem para administrar os negócios do mundo, é preciso alguns princípios e um pouco de ordem. […] Nunca o Conselho de Segurança teve vontade de mudar o regime no Iraque. Porque há inúmeros países onde desejamos ver outros regimes. Mas se começarmos assim, onde vamos parar?”9
A questão permanece.