As rodovias e os mercadores de areia
Em 12 de março, o Parlamento Europeu adotou uma diretiva favorável aos “megacaminhões”. A circulação desses mastodontes, que podem pesar até 60 toneladas, enfraquece o frete ferroviário e degrada o estado da malha rodoviária. Na França, como em outros países, o livre-comércio governa o planejamento dos territórios
Desde seu primeiro asfalto até sua última faixa branca, a autoestrada é um produto ideológico. Na Itália e depois na Alemanha, a autostrada e a autobahn estavam explicitamente ligadas aos regimes fascista e nazista. Na França, ela “rompe o isolamento”, leva às férias (“Autoestrada do Sol”), traz “o progresso, a atividade e a vida”,1 disse entusiasmado o então ministro das Finanças, Valéry Giscard d’Estaing, em 1962. Depois que o Congresso Internacional de Estradas formulou sua definição, o legislador francês a retomou em 1955 e avalizou várias escolhas de natureza política. A primeira novidade é que se tratava de uma via “reservada à circulação mecanizada”. Essa exigência constituiu uma vitória do automóvel na longa luta para excluir outros usuários – pedestres, bicicletas, bondes, carroças – das redes viárias, particularmente violentas nas cidades entre as duas guerras mundiais. A autoestrada deve também estar “livre de qualquer acesso direto por parte dos residentes locais, como também de qualquer intersecção de nível com outras circulações” e, esclarecia uma circular ministerial de 1962, deve responder a uma “velocidade diretriz elevada”. Esse imperativo de fluidez hierarquiza a mobilidade: a eliminação dos semáforos e das passagens de nível, necessárias aos trajetos de longa distância, resulta em uma profunda divisão territorial (“efeito túnel”) e no prolongamento dos trajetos de curta distância para os moradores locais, que acabam recorrendo a seus carros para atravessar a autoestrada. O espaço contínuo de uns, marcado por raros pontos de entrada e de saída, exige a descontinuidade do espaço dos outros.
Mas a autoestrada também é um produto material. Suas propriedades se refletem em sua geometria e em seus relevos. A velocidade exige inclinações muito leves, grandes raios de curvatura e uma largura suficiente para as ultrapassagens. A proibição de qualquer intersecção com outras vias implica a construção de pontes, viadutos, túneis, cruzamentos e faixas adicionais para cruzar a autoestrada. Em média, uma ponte de concreto de grande ou médio porte precisa ser construída a cada quilômetro. Tanto do ponto de vista de sua largura, inclinação, raio e espessura, uma autoestrada não se compara a uma grande estrada no século XIX. O salto geométrico pode ser observado quantitativamente. Vista de baixo, uma autoestrada não é liberdade, democracia e sol, mas um pouco de cimento e betume e, sobretudo, imensas quantidades de materiais bastante comuns: terra, areia e cascalho. Para cada metro linear de estrada, é necessário extrair, em média, 30 toneladas de areia e cascalho e deslocar 100 metros cúbicos de terraplenagem. Às vezes muito mais. Um quilômetro equivale a tanta massa quanto um hospital… e uma área total de 10 hectares, muitas vezes subtraídas de terras agrícolas. Como a conexão das áreas agrícolas muitas vezes acompanha esse consumo de espaço, as construções de grandes infraestruturas de transportes apoiam a política de “modernização agrícola” e de culturas intensivas. Os danos ambientais, em particular a destruição de bosques e de mais de 800 mil quilômetros de cercas vivas entre 1945 e 1983, foram consideráveis.2
Em março de 1960, quando o Estado decidiu construir 3.558 quilômetros de autoestradas, a França contava com apenas 200 quilômetros, muitas vezes trechos para contornar as cidades. Naquela época, a administração das estradas legitimou sua política com base em um velho raciocínio: o tráfego crescente que sobrecarrega as estradas exige a construção de novas vias. É um ciclo de compensação sem fim, visto que a nova estrada permite novos tráfegos, que, por sua vez, saturam e danificam as estradas. Desde então, o tráfego nunca mais parou de aumentar. Contando todas as categorias, havia mais de 48 milhões de veículos motorizados em 2019, cerca de cinco vezes mais do que no início da década de 1960. Em 2023, a malha viária francesa tinha 12.379 quilômetros; e o custo de construção de 1 quilômetro chega a 46 milhões de euros.
Além das novas construções, as infraestruturas existentes estão em constante transformação. No início dos anos 1960, os 80 mil quilômetros de estradas nacionais, que constituem de longe a rede mais importante, já não conseguiam dar conta do tráfego crescente… de veículos pesados. No inverno de 1962-1963, os estragos provocados pelos ciclos de gelo-degelo enfraqueceram as camadas inferiores, o que levou à proibição da passagem de caminhões em algumas estradas nacionais no momento do degelo. Iniciou-se assim uma campanha do patronato rodoviário. As revistas rodoviárias e a imprensa nacional falaram de uma “catástrofe sem precedentes” e de zonas “isoladas” do resto do país e lembraram o “estado de miséria” da pavimentação da rede. Esse lobby deu frutos: para que os caminhões pudessem circular tanto no inverno como no verão, o governo decidiu não apenas reparar os trechos danificados, mas também alargar, ampliar e aumentar a rigidez de todas as estradas nacionais. Nos anos 1970, essas reformas eram tão caras quanto a política de construção de autoestradas, que estava em pleno andamento e à qual servia de complemento. Mais uma vez, foram necessárias enormes quantidades de cimento e asfalto e 5 toneladas de areia e cascalho por metro linear.
Se o próprio termo associa autoestrada a automóvel, essa via de alta velocidade, tal como as novas estradas nacionais, foi concebida e construída, em sua rigidez e espessura, para caminhões: o termo “caminhão-estrada” pareceria, em ambos os casos, mais apropriado. O envelhecimento das rodovias, no entanto, não segue uma lei natural, mas socioeconômica. Deformações significativas já foram constatadas em 1981 nas vias lentas de um trecho da A1 (Paris-Lille), inaugurado em 1968. Na época, ela já havia suportado 56 milhões de veículos, sendo 21% de caminhões pesos-pesados: hoje ela recebe 100 mil veículos por dia, sendo 35% de semirreboques bem mais pesados do que na época (até 44 toneladas). Os caminhões representam 2% da frota de veículos rodoviários e 23,7% dos gases de efeito estufa emitidos pelo setor de transportes, mas as pressões que eles impõem condicionam toda a rede rodoviária. A lógica se aplica a outras formas de deslocamento: ao longo das décadas, as pistas para aeronaves maiores nos aeródromos foram alongadas e tiveram sua espessura aumentada; novas áreas de atracagem mais profundas e longas foram criadas para acolher os maiores petroleiros e transportadores de minérios nos portos. A cada vez, milhões de toneladas de terra, areia, cascalho e sedimentos são deslocados.
A dinâmica é sinérgica – a expansão de uma infraestrutura exige a expansão de outras –, porque há uma força motriz comum: o livre-comércio, inscrito na construção europeia em uma série de tratados. Ele se ancora em um espaço físico muito particular, organizado no fim dos anos 1960: os corredores infraestruturais do Ródano, do Sena e do Nord-Pas-de-Calais, até Fos, Le Havre e Dunquerque. Em complemento às grandes infraestruturas de transporte, a construção de plataformas logísticas, que são ao mesmo tempo um nó no fluxo de mercadorias e um lugar de condições de trabalho degradadas, encarna a transformação das relações sociais e da produção do espaço. Símbolo dessa mudança foi a venda da planta histórica da Peugeot-Citroën em Aulnay-sur-Bois para uma empresa de logística em 2015.3
Essas políticas rodoviárias não isentas de complicações. Centenas de conflitos testemunham a oposição às autoestradas. Nos canteiros de obras, por causa da necessidade de atravessar zonas sensíveis, antes evitadas, e das dimensões do relevo a ser construído, taludes vêm abaixo, deslizamentos de terra se multiplicam, aterros se acomodam ou se rompem, o solo afunda e túneis desabam. Além disso, a epopeia do automóvel e de sua rede causou uma carnificina: 6.400 mortes, incluindo mil crianças, em 1953; cerca de 15 mil mortes e 200 mil feridos por ano, ou 40 mortes por dia, no início da década de 1970 – antes de uma diminuição significativa (3.170 mortes e 232 mil feridos em 2023). As vítimas são em sua maioria das classes populares e consideradas culpadas pela indústria rodoviária.4 Ela também responsabiliza as árvores, que têm o mau gosto de margear as estradas: milhares delas são arrancadas.
A partir da década de 1950, a extração maciça de areia e cascalho, em parte local, passou a ser realizada por pequenas e médias empresas: um extrativismo “primário” praticado de maneira prolongada nos rios. Enquanto no início da década de 2010 várias reportagens sobre a areia insistiam nas atividades ilegais, máfias ou roubos, e nos canteiros de obras extraordinários em Cingapura e Dubai,5 agora a atividade assume um caráter absolutamente banal na França. Enquanto o baixo Mekong constata atualmente uma extração de areia sete vezes superior aos sedimentos naturalmente transportados pelo rio, nos anos 1970 essa proporção atingiu dez a treze no Vale do Loire. Em Tours, o leito do rio baixou a olhos vistos – foi aprofundado em 60 centímetros entre 1963 e 1977 –, a ponto de enfraquecer as fundações da Ponte Wilson, que desabou em abril de 1978.6 A quase onipresença da areia, seu baixo preço e o alto custo do transporte fizeram a alegria e a fortuna de centenas de pequenas empresas francesas que atuavam em milhares de pedreiras. Dragas e escavadeiras estão retirando da maioria dos rios seus sedimentos, e a escassez está aparecendo em todo lugar. Entre 1955 e 1972, os volumes retirados do Drac (Isère) ao longo de 12 quilômetros, na metrópole de Grenoble, chegaram a 22 metros cúbicos por metro linear por ano. Nenhuma regulamentação impedia a exploração: até 1970, bastava uma simples declaração à prefeitura para abrir uma pedreira. Embora a extração aluvial cause efeitos específicos em cada rio, ela traz algumas consequências comuns e duradouras: erosão das margens, perturbação das condições de vazão, agravamento dos riscos hidrológicos pela retenção sedimentária e vegetalização dos corredores fluviais, perda da biodiversidade pela redução das áreas úmidas etc. A escavação do fundo do leito resulta também no rebaixamento da linha-d’água e, consequentemente, do lençol freático. Essas degradações alimentaram uma forte oposição formada principalmente por moradores locais, políticos eleitos, cientistas, pescadores e associações, que se intensificou nos anos 1960 e 1970.

Sísifo tapa-buracos
O extrativismo aumentou a partir de 1970, enquanto o conflito crescia, os depósitos se esgotavam, os danos eram documentados, a Assembleia Nacional aprovava as primeiras leis regulamentando a exploração das pedreiras e a conscientização se espalhava. Simultaneamente, por meio de pressões legislativas, que incorporaram algumas demandas sociais, ele sofreu uma metamorfose. A exploração se deslocou para rochas duras (a exploração de minérios nos leitos dos rios foi proibida a partir de 1993), que atenua os incômodos imediatos (ruído, poeira), e agora se apresenta sobretudo como uma política de ordenamento e requalificação do território, cujos contornos são objeto de uma consulta a habitantes, associações ambientais e instituições científicas. Trata-se de pensar um futuro invejável – um horizonte de quinze ou trinta anos – para aceitar um presente infeliz. Além de indicar os estragos mais marcantes a serem escondidos, os inventários documentam os usos do espaço no futuro: agricultura, silvicultura, centro de lazer, área ornitológica etc.
As atividades náuticas, cujas fotografias preenchiam as revistas especializadas, especialmente na região parisiense (Viry-Châtillon, Cergy-Neuville, Jablines, Mantes-la-Jolie), carregavam o imaginário das pedreiras com afetos alegres. Trivial, até grotesco, mas eficaz: os windsurfs tomavam o lugar das feridas abertas. Definitivamente, a pedreira valorizaria o espaço e traria riqueza: é apenas “uma etapa na vida de um solo”, afirmava um documento da fabricante de cimento Lafarge, que se orgulhava de um inventário de requalificações. As pedreiras não consomem mais espaço, elas o produzem. A criação de paisagens tranquilizadoras por meio de obras de terraplenagem desempenha papel determinante na “aceitabilidade” futura da infraestrutura. O paisagista, cujo papel cresce com a possibilidade de conflitos, afirma poder reparar os danos com as mesmas máquinas que os causam e até mesmo melhorar a paisagem e os ecossistemas com o auxílio de atores especializados no florescente campo da restauração. Os dispositivos de apoio, físico e simbólico, à pedreira tornam-se necessários para o desenvolvimento das infraestruturas de transportes. Progressivamente, a pedreira foi polarizando os debates, e seu espaço absorveu demandas ecológicas com a condição de… atender às necessidades de areia e cascalho, que não podiam ser questionadas.
Desde 1945, as grandes infraestruturas são responsáveis pelos maiores fluxos de materiais do capitalismo francês: mais do que para moradia, alimentação ou aquecimento, o material extraído e movimentado na França serve para transportar pessoas e, especialmente, mercadorias. Embora o concreto constituísse o principal objetivo nos anos 1960, hoje representa somente 28% dessa extração. O setor da construção absorve apenas 19% dos produtos das pedreiras:7 a extração alimenta o setor da “engenharia civil” e, sobretudo, a conservação e manutenção das estradas existentes – nunca em bom estado por causa do tráfego de veículos pesados. Em 2019, só as camadas de pavimento absorveram 35,8 milhões de toneladas de concreto asfáltico (um pouco de betume, mas sobretudo areia e pedra). O mais preocupante é que um terço das 12 mil pontes rodoviárias precisa de reparação e 7% correm o risco de colapsar.8 Sísifo não empurra uma pedra à sua frente: ele conserta estradas com areia e pedra.
Automóveis movidos a ar puro
Essa herança custa caro. Entre 2010 e 2015, as administrações locais gastaram em média 15 bilhões de euros por ano em suas estradas. Todo ano, alguns departamentos da região metropolitana parisiense desembolsam 230 mil euros por quilômetro, e alguns municípios destinam tanto à sua rede de estradas quanto ao ensino fundamental. As operações de manutenção são praticamente afastadas da deliberação política e se beneficiam de um argumento formidável: reparar um objeto, prolongando sua expectativa de vida, é questão de bom senso – ou até contribui para salvar o planeta. Não seria absurdo deixar um patrimônio decair, no qual tanto se investiu?
Por sua materialidade e pelos imaginários que carregam, as infraestruturas parecem exigir o cuidado da sociedade – o poder público terceiriza essa tarefa ao setor privado. Com o apoio do Estado, o domínio da construtora francesa Vinci nas estradas aumentou.9 Ela não só realiza as terraplenagens (GTM), as fundações (Solétanche), as camadas dos pavimentos das rodovias (Eurovia) e a extração em centenas de pedreiras (Vinci Construction), mas também é proprietária das construções: uma rede de 4.443 quilômetros de autoestradas, doze aeroportos e centenas de estacionamentos. Para além do automóvel e do caminhão – que, mesmo que sejam movidos a ar puro, exigirão a mesma infraestrutura pesada –, a ordem econômica nos leva a perceber a produção do espaço como uma restrição necessária e natural, e não como uma questão política. E por uma boa razão: a manutenção de grandes infraestruturas permite assegurar, em primeiro lugar, o funcionamento das estruturas macroeconômicas – a começar pelo livre-comércio.
*Nelo Magalhães é pós-doutorando no Institut de la Transition Environnementale (ITE-Alliance Sorbonne Université). Autor de Accumuler du béton, tracer des routes. Une histoire environnementale des grandes infrastructures [Acumular concreto, traçar estradas. Uma história ambiental das grandes infraestruturas], La Fabrique, Paris, 2024, do qual este texto foi adaptado.
1 Declaração de Valéry Giscard d’Estaing, ministro das Finanças, Radiodiffusion-télévision française (RTF), 23 fev. 1962.
2 Marc-André Philippe e Nadine Polombo, “Soixante années de remembrement: essai de bilan critique de l’aménagement foncier en France” [Sessenta anos de remembramento: ensaio de balanço crítico da reforma agrícola na França], Études Foncières, Sceaux, 2009; Patrick Falcone et al., La haie, levier de la planification écologique [Cercas vivas, alavanca do planejamento ecológico], Conseil Général de l’Alimentation, de l’Agriculture et des Espaces Ruraux, relatório n.22.114, abr. 2023.
3 Cécile Marin e Pierre Rimbert, “L’ère des plates-formes logistiques” [A era das plataformas logísticas], Manière de Voir, n.187, fev.-mar. 2023.
4 Matthieu Grossetête, “Des accidents de la route pas si accidentels” [Acidentes nas estradas, nem tão acidentais], Le Monde Diplomatique, ago. 2016.
5 Por exemplo, Denis Delestrac, “Le sable: enquête sur une disparition” [A areia: investigação sobre um desaparecimento], Arte, 2011.
6 C. R. Hackney et al., “River bank instability from unsustainable sand mining in the lower Mekong River” [Instabilidade das margens do rio por causa da mineração insustentável de areia no baixo Rio Mekong], Nature Sustainability, n.3, Londres, 2020.
7 Union Nationale des Industries de Carrières et des Matériaux de Construction (Unicem), “L’industrie française des granulats” [A indústria francesa dos agregados], Union Nationale des Producteurs de Granulats (UNPG), Clichy, 2022.
8 Patrick Chaize e Michel Dagbert, “Sécurité des ponts: éviter un drame” [Segurança das pontes: evitar um drama], relatório de informação n.609 (2018-2019), apresentado em 26 jun. 2019, www.senat.fr.
9 Nicolas de la Casinière, “Le soleil ne se couche jamais sur l’empire Vinci” [O sol nunca se põe no império Vinci] Le Monde Diplomatique, mar. 2016.