As tarifas de Trump como sintoma do esgotamento do multilateralismo
Diante de mais quatro anos de governo Trump, do protecionismo crescente e da ascensão de governos autoritários ao redor do mundo, é fundamental buscar os caminhos para que o futuro não seja pior do que o passado
As recentes medidas do recém-empossado presidente dos EUA, Donald Trump, têm dominado as manchetes globais. No comércio internacional, a imposição de tarifas agressivas sobre produtos como o aço gerou repercussão, especialmente no Brasil, segundo maior fornecedor do produto para os Estados Unidos.[1]
Diante de medidas tão drásticas, surgem questionamentos sobre quais seriam os possíveis benefícios das tarifas aduaneiras para uma economia, se é que eles existem. Entretanto, de uma perspectiva mais ampla, essa postura do governo americano sinaliza o agravamento de uma tendência na ordem internacional: o fortalecimento do unilateralismo em detrimento do multilateralismo.
O protecionismo comercial de Trump não é novidade. Em seu primeiro mandato, ele impôs tarifas elevadas a mercadorias como o aço e o alumínio, as quais a diplomacia brasileira conseguiu substituir por cotas de importação.[2] Além disso, o aumento de tarifas pelo atual presidente marcou o início da guerra comercial travada com a China, cuja retaliação recaiu fortemente sobre diversos produtos estadunidenses. Durante a administração Biden, essas tarifas foram mantidas e novas foram impostas, sobretudo em setores estratégicos como o de semicondutores. Agora, esse início de mandato de Trump promete escalar essa guerra comercial a outros patamares, atingindo até mesmo os aliados tradicionais dos EUA.
As tarifas aduaneiras são um dos instrumentos clássicos da política de comércio exterior, assim como os subsídios e as cotas. No passado, antes da introdução do imposto de renda, elas representavam a principal fonte de receita para muitos países. Hoje, no entanto, qualquer manual de Economia aponta que tarifas geram distorções de mercado e que seus custos superam os possíveis benefícios.
A conclusão de que tarifas aduaneiras levam a mais perdas do que ganhos passa por demonstrações matemáticas e gráficas. Em resumo, distorções no comércio, como são as tarifas, geram perda de eficiência econômica e atingem, sobretudo, os consumidores. Em algumas situações, essa perda de eficiência pode ser justificada; por exemplo, um imposto que visa à melhor distribuição de renda pode ter benefícios que justificam a geração dessa ineficiência, pois miram na melhora do bem-estar social.
Saindo dos manuais e indo para o mundo real, vemos que as tarifas impostas por Trump em seu primeiro mandato não tiveram os efeitos benéficos prometidos. Ao contrário, prejudicaram o crescimento econômico dos EUA em geral e, particularmente, nos setores atingidos.

Estudos sobre as tarifas impostas por Trump, entre 2018 e 2020, mostram que a maior parte do ônus recaiu sobre os consumidores, e a grande maioria dos economistas afirma que o novo capítulo da “Trumponomics” deve elevar a inflação no país.[3] A promessa de que as tarifas deveriam manter e criar empregos nos Estados Unidos tampouco se concretizou, nem mesmo no setor de aço. Na verdade, o aumento no custo de produtos que utilizam o aço pode ter diminuído as taxas de emprego em alguns setores.[4]
No cenário global, os efeitos de tarifas aduaneiras também são negativos. Além de afetar preços e produção, o unilateralismo de Trump é sintoma de um diagnóstico preocupante de esgotamento do sistema multilateral de comércio.
Até recentemente, a eliminação de barreiras ao comércio era um consenso na comunidade internacional, simbolizado pela criação da Organização Mundial do Comércio, em 1994. Para entender melhor o impacto dessa onda protecionista, é fundamental revisitar o contexto de fundação da OMC, o qual nos diz muito sobre os princípios que guiam essa instituição, assim como sobre os motivos de seu enfraquecimento nos últimos anos.
A década de 1990 assistiu ao fim da Guerra Fria, à independência de novas nações na Europa e ao descongelamento do Conselho de Segurança da ONU (travado durante a Guerra Fria diante do uso político do poder de veto pelos EUA ou pela URSS). O clima otimista e de florescimento do liberalismo e do capitalismo chegou a convencer cientistas políticos, como Francis Fukuyama, de que a história havia acabado.
Nesse contexto, o multilateralismo se fortaleceu. A década de 1990 foi chamada de a “Década das Conferências”. Para citar algumas, tivemos a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, em 1993; a Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim, em 1995; e a Rio-92, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. O comércio internacional também estava a todo o vapor: em 1991, o Tratado de Assunção estabeleceu as bases para o Mercosul; em 1992, o Tratado de Maastricht, fundou a União Europeia; entre 1986 e 1994, a Rodada Uruguai reuniu mais de 120 países para a criação do sistema multilateral de comércio, culminando na OMC.
Era a concretização do que dizia Norman Angell, em sua obra A Grande Ilusão, de 1909: a interdependência econômica entre as nações seria o grande antídoto para os conflitos armados, que tornaram-se custosos demais para as nações capitalistas.
A OMC foi estruturada sobre o princípio de que o livre comércio beneficia tanto as nações individualmente quanto a economia global. Seus membros concordaram, também, que práticas protecionistas, muitas vezes movidas por interesses políticos de curto prazo, levam a uma produção ineficiente e a perda de empregos. Seu Sistema de Solução de Disputas (SSD) servia para que os conflitos comerciais fossem resolvidos sem medidas unilaterais, salvaguardando os valores caros à organização.
Muitos podem dizer que a OMC é uma ideia muito bonita no papel, mas que não conseguiria se sobrepor aos interesses nacionais. Até 2018, entretanto, o SSD conseguiu fazer valer as regras da OMC em diversos casos.
O Brasil, por exemplo, venceu uma disputa contra os subsídios ao algodão dos EUA, resultando no pagamento de US$ 805 milhões ao Brasil e na alteração da legislação estadunidense sobre o tema. Para muitas nações, o SSD era uma garantia de que seus interesses comerciais seriam respeitados, mesmo que não tivessem a força militar ou econômica para impor-se sobre os demais. Desde 2018, entretanto, os EUA travaram o funcionamento do Órgão de Apelação do SSD, alegando que ele extrapolava suas funções pré-estabelecidas. Hoje, um Estado não consegue ter seu caso julgado em sua instância superior; o caso fica em um limbo e o país, desamparado. Apesar de alternativas plurilaterais, como o Arranjo Provisório de Arbitragem-Apelação (MPIA), do qual o Brasil faz parte, o sistema multilateral de comércio não conseguiu se recuperar.
Vê-se, assim, que o desmonte do multilateralismo comercial não é de hoje. Vê-se, também, que a crise do multilateralismo não se limita ao comércio.
O Conselho de Segurança da ONU se mostra incapaz de construir soluções para os conflitos armados, em diversos cantos do mundo; a ONU não consegue articular ações globais efetivas contra a mudança climática; as organizações internacionais perdem financiamento e legitimidade. Enquanto isso, a mudança climática mostra que não irá esperar que o mundo esteja em paz e disposto a negociar.
Esse diagnóstico pessimista remete a um texto de Rubens Ricupero, em que o Embaixador questiona se estaríamos diante de “um futuro pior que o passado”[5]. Como menciona Ricupero, “desde o Iluminismo, acreditava-se que a História se encaminhava a um futuro que, retrospectivamente, daria sentido ao passado.” Entretanto, temos assistido a uma série de eventos que nos fazem perder a esperança, ou seja “a confiança de que o futuro nos trará remédio às agruras do presente, da mesma forma que antes o presente costumava superar problemas do passado.”
Em seu texto, o Embaixador passa por diversos eventos da história do Brasil e do mundo que fizeram as gerações que os vivenciaram perderem a esperança. No entanto, longe de nos querer impor um futuro catastrófico, Ricupero nos coloca uma tarefa: “não está escrito nas estrelas que o nosso futuro será melhor ou pior que o presente e o passado. Sem o consolo das certezas ilusórias, depende apenas de nós, de nossa ação consciente, que os próximos cem anos revertam o declínio, garantindo-nos um futuro melhor que o presente e superior ao passado.”
Diante de mais quatro anos de governo Trump, do protecionismo crescente e da ascensão de governos autoritários ao redor do mundo, é fundamental buscar os caminhos para que o futuro não seja pior do que o passado.
A agressividade comercial dos EUA atinge o núcleo do sistema multilateral de comércio: além de comprometer a eficiência dos mercados e penalizar os consumidores, Trump usa tarifas como moeda de barganha. Ao driblar acordos multilaterais, o republicano utiliza a assimetria de poder (econômico e, por que não militar?) em relação às demais nações para favorecer os interesses estadunidenses. Ou seja, a fragilização do sistema multilateral não é apenas consequência, mas também meio para a política comercial do país.
Assim, além de fortalecer suas relações com outros parceiros comerciais, as nações ameaçadas devem buscar construir articulações multilaterais. O Brasil pode desempenhar um papel protagonista nesses próximos capítulos, particularmente como porta-voz dos países em desenvolvimento. A diplomacia brasileira tem a vocação de aproximar atores, mesmo os mais distantes geográfica ou culturalmente, e construir consensos (talvez pela combinação da cordialidade brasileira e da excelência da nossa diplomacia). Tem, também, as credenciais para isso: o Brasil é um dos membros mais ativos na OMC e é o país em desenvolvimento que mais teve mandatos como membro não permanente do CSNU.
Sem apoiar-se em ilusões sobre as limitações do sistema internacional, o remédio para o unilateralismo certamente passará pelo fortalecimento do multilateralismo, seja por meio das ferramentas já existentes ou de novas.
Victoria Moura Vormittag – é bacharela em Direito pela USP, advogada e pesquisadora especializada em direito internacional público, comércio internacional e direitos humanos.
[1]Hanna Duggal and Marium Ali. “Who sells the most steel and aluminium to the US and who is facing tariffs?”. Al Jazeera. 2025. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2025/2/11/who-sells-the-most-steel-and-aluminium-to-the-us-and-who-is-facing-tariffs#:~:text=Canada%2C%20Brazil%20and%20Mexico%20are,to%20the%20International%20Trade%20Administration.
[2] Paulo Barros. “Trump já tentou taxar aço e alumínio do Brasil no passado; veja histórico”. InfoMoney. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/trump-ja-tentou-taxar-aco-e-aluminio-do-brasil-no-passado-veja-historico/
[3] Ben Chu. “Will Donald Trump’s tariffs hurt US consumers?”. BBC. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/news/articles/c20myx1erl6o
[4] Ben Chu. “Will Donald Trump’s tariffs hurt US consumers?”. BBC. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/news/articles/c20myx1erl6o
[5] Aproximando-se do bicentenário da Independência do Brasil, Ricupero recupera eventos da história brasileira e mundial, identificando tendências e sugerindo o que devemos fazer para evitar que o futuro do país seja pior do que seu passado.
Rubens Ricupero. “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da independência”. Academia Brasileira de Letras. 2019. Disponível em: https://iepecdg.com.br/wp-content/uploads/2024/07/Ricupero-Futuro-Pior-do-quee-o-passado.pdf