A fúria e o recomeço
Ambientado no Recife, “As viúvas passam bem”, de Marta Barbosa Stephens, narra a história de duas mulheres em meio a vinganças e redescobertas
No Recife dos anos 90, uma discussão descabida leva dois vizinhos a assassinarem um ao outro. A partir da tragédia, as esposas passam a nutrir uma relação de ódio e rivalidade com proporções gigantescas e rumos imprevisíveis. Esse é o ponto de partida de As viúvas passam bem, romance da pernambucana Marta Barbosa Stephens, publicado pela Folhas de Relva.
A obra é narrada por uma menina de 13 anos, que acompanhou com interesse – como o restante da cidade – as situações absurdas que se desenrolaram a partir da morte dos dois homens.
Margarete, a primeira personagem a ser apresentada, é uma mulher elegante, viúva de Richard, um inglês que se encantou por Recife e encontrou nos moradores e nas belezas naturais e arquitetônicas da cidade motivos mais que suficientes para fazer do local seu novo lar.
Já Guiomar, apresentada em seguida, é sonhadora e dramática. Viveu com Alexandre, seu falecido marido, um relacionamento que começou ainda na juventude. Na época, ela era sua vizinha e ofereceu a ele uma espécie de suporte emocional depois que ele matou uma jovem atropelada acidentalmente.
Após a briga que resultou em morte para os dois vizinhos, as mulheres decidem não se mudar de suas casas. Para lidar com a dor, decidem se vingar. Os métodos para isso vão dos mais infantis aos mais elaborados. Passam por correspondências escondidas e jornais embaralhados, mas também chegam a afrontas maiores, capazes de reviver traumas profundos e trazer à tona segredos obscuros.
Em pouco tempo, as provocações se tornam mais agressivas, movidas pela raiva e pelo desejo de uma reparação impossível de ser alcançada. Mais à frente, no entanto, as duas mulheres se deparam com novas possibilidades de vida para além de um cotidiano que se resume ao planejamento e à execução de atos raivosos. Nesse ponto, Margarete encontra no teatro e na amizade com o jovem Elias a sensação de pertencimento, enquanto Guiomar se aproxima da paz de espírito ao pedalar e dar longas entrevistas imaginárias como se fosse a badalada intelectual da vez.
Com capítulos curtos e uma escrita precisa, original e sedutora, Marta Barbosa Stephens constrói uma narrativa capaz de circular entre o traumático e o bem-humorado com delicadeza e naturalidade. Sua história reúne aspectos singulares e continua a ganhar força a cada novo parágrafo, num mergulho intenso e irreversível na mente de personagens interessantes, complexas e necessárias à literatura.
Ao abordar uma história sobre vingança, a autora imerge nos anseios mais profundos da humanidade e traduz como poucos ficcionistas alguns dos elementos mais caros à psicanálise, como desejo e sublimação, sem deixar de lado as nuances que a boa literatura pede.
Finalista do Prêmio LeYa, As viúvas passam bem diverte, intriga e conduz leitores e leitoras a angústias e obsessões que sintetizam muito bem as complexidades e as contradições da busca pela vingança e os riscos da autodestruição oferecidos pelo direcionamento inadequado da raiva.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.