Kleber Mendonça Filho: “O que é a cultura no governo Bolsonaro? Não é”
Às vésperas das eleições que podem mudar o rumo da produção cultural brasileira, o Kleber Mendonça Filho explica, em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o que o atual governo significou para o cinema brasileiro e o que pode ser do futuro do setor após a eleição. “O que é a cultura no governo Bolsonaro? Não é. Foi a primeira vez na minha vida adulta, e sei que historicamente isso não aconteceu nem na ditadura, que a cultura foi desconectada da parede, desligada”.
Os últimos quatro anos foram de ataques constantes ao setor audiovisual brasileiro. Além de extinguir o Ministério da Cultura, o governo de Jair Bolsonaro vetou inúmeras leis de incentivo ao cinema nacional, como a Lei Paulo Gustavo e a Lei do Audiovisual, acabou com a política de cotas de telas e defendeu a censura às custas da extinção da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Mais recentemente, o presidente também propôs excluir a Condecine, contribuição que financia a atividade cinematográfica do país, do plano orçamentário de 2023 enviado ao Congresso no início de setembro.
Ainda em 2016, o então deputado federal disse em entrevista à cineasta Petra Costa: “Agora o que a cultura produz de bom para o Brasil? Qual filme tá concorrendo em Cannes ou Oscar?” Apenas naquele ano, filmes nacionais venderam 184,3 milhões de bilhetes, gerando uma receita de R$2,6 bilhões, e Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, ganhou 21 prêmios e concorreu à Palma de Ouro em Cannes.
Às vésperas das eleições que podem mudar o rumo da produção cultural brasileira, o diretor explica, em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o que o atual governo significou para o cinema brasileiro e o que pode ser do futuro do setor após a eleição. “O que é a cultura no governo Bolsonaro? Não é. Foi a primeira vez na minha vida adulta, e sei que historicamente isso não aconteceu nem na ditadura, que a cultura foi desconectada da parede, desligada. E ela não foi desligada nos anos Bolsonaro, foi desligada nos anos Temer. Temer preparou a destruição do Ministério da Cultura e Bolsonaro efetivou isso, então são seis anos da cultura sendo desrespeitada e representada por pessoas que odeieleiam a cultura. Bolsonaro para cultura? não significa nada, zero. A eleição do Lula, não só dele mas de qualquer candidato que fosse defensor da democracia significaria trazer a cultura de volta, porque a cultura está na constituição, ela faz parte natural da sociedade brasileira, não só porque a gente consome mas porque ela é produzida pela própria sociedade e o Estado apoia a produção de cultura, então, claro, com a volta de Lula a cultura vai voltar mas com qualquer candidato que apoie a democracia isso também iria acontecer.”
De fato, entre 2019 e 2022, os mais de 330 mil trabalhadores empregados pela indústria audiovisual viveram a paralisação das principais organizações da indústria audiovisual, a começar pela Ancine. Ainda em março de 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) questionou os critérios de prestação de contas dos projetos audiovisuais aprovados pela agência. Em resposta, ao invés de propor ajustes, o então Diretor-Presidente da Ancine, Christian de Castro, indicado no governo Temer, decidiu paralisar as atividades do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
Com isso, o FSA permaneceu praticamente sem novos investimentos entre 2019 e 2021, agora ameaçado pela proposta de Bolsonaro de acabar com a Condecine, fonte de quase todo o dinheiro destinado a ele. O fim do tributo, que incide apenas sobre empresas que faturam com o audiovisual, pôe em xeque a indústria que adicionava, até 2019, cerca de R$ 27,5 bilhões à economia e recolhia quase R$ 9 bilhões em tributos anualmente, chegando a representar 0,5% do PIB, de acordo com a Ancine.
Incêndio na Cinemateca
Outro marco do descaso do governo Bolsonaro em relação ao cinema nacional foi o incêndio na Cinemateca Brasileira, em julho de 2021. O incêndio que atingiu um dos galpões da Cinemateca já havia sido anunciado por antigos trabalhadores do acervo em um manifesto publicado três meses antes do desastre. Até mesmo a Prefeitura de São Paulo, em inúmeras ocasiões, propôs auxiliar a Cinemateca, pedindo ao governo federal para que a gestão da entidade fosse transferida para a cidade. Jair Bolsonaro e Mário Frias, então secretário executivo de cultura, ignoraram as propostas e questionamentos.
O incêndio resultou na destruição de parte do acervo armazenado no galpão, que guardava cerca de quatro toneladas de documentos sobre a história do cinema brasileiro, incluindo parte do acervo de Glauber Rocha. “Talvez o incidente terrível com a Cinemateca gere agora uma fase de perceber a importância da preservação. Como realizador, penso que isso precisa ser política de Estado, como na França, na Austrália, em Portugal, na Inglaterra etc. Temos um acervo e precisamos investir para que ele seja guardado e siga em frente como parte da cultura ou como produto”, disse Mendonça na ocasião do première da cópia restaurada de “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”, de Hector Babenco, na última quinta (22/9).
Para o futuro após as eleições, o cinema nacional vê dois cenários: o do prolongamento do desmonte das políticas culturais ou o da valorização da atividade como elemento estrutural de uma democracia. Como analisado por Antonio Carlos de Carvalho na coluna “Qual é o plano?”, o projeto de governo de Lula reconhece a cultura como “dimensão estratégica do processo de reconstrução democrática do país e da retomada do desenvolvimento sustentável”, além de parte importante da economia do país.
Bolsonaro, por outro lado, prevê a ruína do setor ao propor a extinção da Condecine, o que significa “o fim da Ancine e de toda política de audiovisual construída ao longo de anos”, como destacado na carta assinada por 18 entidades do audiovisual em defesa da Condecine, dentre elas a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Federação Nacional dos Jornalistas, entre outras.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.