Assédios a mulheres: persistências e desafios
Como podemos interpretar os comportamentos de assédio nas universidades? Essas condutas estão legitimadas por uma cultura sexista ainda bastante presente em nossa sociedade ao presumir que a sexualidade das mulheres está à disposição dos homens
Recentemente, em Bordeaux, França, foi realizada a 11ª Conferência internacional sobre Assédio Moral e Assédio no Local de Trabalho,[1] mobilizando especialistas de diferentes continentes. Foram apresentadas e debatidas diversas expressividades, práticas e situações de assédios que ocorrem, sobretudo, nos espaços laborais, embora possam ocorrer na rua e em outros lugares. O fenômeno tem sido associado ao bullying para designar o uso de procedimentos e condutas intimidatórias e humilhantes nos espaços de trabalho. Não é sem propósito que esta conferência com aproximadamente cinquenta apresentações de papers, relatos e experiências tenha ocorrido neste momento, em que centenas de denúncias vêm à tona todos os dias, em praticamente todos os recantos do mundo. Os assédios ocorrem em ambientes laborais, tanto nas mais valorizadas atividades – como é o caso das denúncias recentes na cinematografia –, quanto nos empreendimentos que mais exploram o trabalho das mulheres – como os ambientes domésticos e os trabalhos análogos à escravidão. Infelizmente, o assédio constitui um fenômeno democrático e universal.
No Brasil, o assédio sexual é previsto em lei desde 2001.[2] O Ministério do Trabalho[3] e a Procuradoria Geral do Trabalho define o crime do seguinte modo: “Assédio sexual no ambiente de trabalho é a conduta de natureza sexual, manifestadamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual. O assédio sexual viola a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais da vítima, tais como a liberdade, a intimidade, a vida privada, a honra, a igualdade de tratamento, o valor social do trabalho e o direito ao meio ambiente de trabalho sadio e seguro” (nossos grifos). O assédio moral, por sua vez, não está previsto como conduta ilícita no Código Penal, mas pode resultar em responsabilização civil para os autores. Refere-se a atitudes abusivas, de humilhação e desmerecimento no ambiente de trabalho, que atentam contra a personalidade, a dignidade e a integridade física e psíquica da pessoa, e acabam por alterar sua relação com o ambiente em que convive.
Muito embora as definições jurídicas de assédio sejam relevantes no processo de afirmação dos direitos, há uma série de fenômenos, também referidos nos estudos de gênero pelo termo “assédio”, que extrapolam esses conceitos e impactam sobremaneira a vida das mulheres. Em uma acepção mais geral e não meramente jurídica, o assédio se caracteriza pelo comportamento insistente daquele/a que busca submeter a outra pessoa a atos que geram sentimentos de ter sido maltratada, humilhada, rejeitada, menosprezada.[4] Pode também ser caracterizado por “condutas de natureza sexual, quer sejam de expressão física, verbal ou não verbal, propostas ou impostas a pessoas contra a sua vontade, principalmente em seu local de trabalho, e que acarretam um ataque à sua dignidade.”[5] Um desses fenômenos ocorre no convívio universitário, onde assédios têm tido crescente visibilidade, o que não quer dizer que esse tipo de violência simbólica e material não venha sendo praticado há muitas décadas nos campi universitários brasileiros. Atualmente, percebe-se que muitas interações violentas que ocorrem nos campi se dão entre pessoas conhecidas, colegas de cursos, estudantes em geral, professores/as e servidores/as, isto é, entre pessoas que integram a comunidade universitária. Em parte significativa dos casos não há relação de hierarquia ou ascendência funcional, como prevê o Código Penal, o que nos coloca diante de situações com características específicas, em que os comportamentos nem sempre se configuram como crime, mas causam importantes danos individuais e coletivos que requerem nossa atenção.
Como podemos interpretar os comportamentos de assédio nas universidades? Essas condutas estão legitimadas por uma cultura sexista ainda bastante presente em nossa sociedade ao presumir que a sexualidade das mulheres está à disposição dos homens. Nesse sentido, o mais grave é que, no convívio universitário, o assédio ocorre nas relações de proximidade e de pretensa confiança. No cotidiano universitário, ele ocorre sem que haja, necessariamente, o uso da força, sem deixar marcas físicas visíveis no corpo da vítima. Pois há muitas formas sutis e dissimuladas de assediar. Desde as palavras inadequadas usadas no ambiente sobre a vida pessoal afetiva, até ações praticadas sem consentimento, como a oferta insistente de convites e presentes, carícias indesejadas, e inclusive o toque físico não consensual com ou sem força: pega, segura, agarra etc. Quando essas ações são praticadas por um professor, há uma demonstração da condição de “poder e superioridade hierárquica”. Nas situações em que os assédios são praticados por estudantes, geralmente ocorrem quando homens ou rapazes se sentem “invisibilizados” pelas jovens ao afirmarem sua “virilidade”. Os relatos são abundantes nesse sentido.
Na pesquisa que realizamos (set/2017 a fev/2018) na Universidade de Brasília (UnB), uma amostra de 5% de estudantes de graduação (o que totalizou 827 pessoas) respondeu o questionário sobre várias formas de violência, dentre elas os assédios sofridos no convívio universitário. Dentre os resultados obtidos, destacam-se: 35% do total afirmaram ter sofrido algum tipo de violência no interior do campus Darcy Ribeiro; 26% sofreram violências no caminho ou imediações da UnB e, destas, 92% disseram ter sofrido alguma violência no transporte público, isto é, no trajeto para chegar à universidade. Quanto ao perfil das respondentes, 50% das que se identificaram como bissexuais disseram ter sofrido violência e 44% das lésbicas fizeram a mesma afirmação. Entre as pessoas negras que responderam, mais de 60% afirmaram ter sofrido algum tipo de violência. Quanto às formas de violência sofridas, 35% foram psicológicas e 28% foram sexuais; 89% dos agressores eram do sexo masculino, sendo que mais de um terço das agressões foi praticada por pessoas conhecidas (ex-namorado, namorado, ficantes etc.); 53% das diferentes formas de violência foram praticadas por estudantes, professores e demais servidores. O que chama muito a atenção é que, após o ato, 55% dos agressores “agiu naturalmente”. Por fim, ainda que haja uma quantidade maior de dados, destaca-se que 70% das respondentes já presenciaram cenas de violência praticadas dentro do campus e 96% já ouviram falar sobre práticas de violência no campus. Portanto, conclui-se que a violência tem forte presença no meio universitário e que os assédios são constantes. Inclusive o ingresso na universidade envolve a realização de um ritual violento e intimidador, ainda não erradicado – os trotes.[6] Vale lembrar que em março de 2016 uma estudante do curso de graduação em Biologia foi assassinada por seu ex-namorado dentro de um dos laboratórios da UnB.
Depois de vivenciar situações de assédio e de violência, há relatos de estudantes que desistem de cursar certas disciplinas, de frequentar um determinado laboratório, e mesmo há casos de abandono total do curso e mudança até mesmo de universidade, quando não de cidade.
Por muitas razões as estudantes não denunciam: sofrem ameaças, são humilhadas, sentem-se envergonhadas, são desacreditadas, têm medo de represálias ou perseguições. Muitas têm dependência hierárquica no contexto acadêmico, pois os professores podem ser orientadores ou coordenadores de grupos de pesquisa nos quais estão engajadas. Os relatos informam que o receio de ter comprometida sua futura carreira, pois o professor-assediador é uma referência na área acadêmica e pode manipular informações, é grande. Assim, os assédios sexual e moral causam danos psíquicos, criam angústias e ansiedades em relação a se manter no curso ou naquela universidade, podendo chegar ao dano existencial: causar suicídio ou tentativa de suicídio.
Em entrevista à Folha de S.Paulo (27 maio 2018), a professora Marcia Barbosa, docente no curso de Física da UFRGS, denunciava a presença do assédio na universidade e a desigualdade de gênero na ciência. Na ocasião afirmou que: “Na universidade, em muitos momentos da carreira você é julgada por pessoas da mesma área, seja para a concessão de uma bolsa, uma promoção, um prêmio. Quando uma pessoa assedia outra e esta não corresponde, ela passa a querer retaliar essa pessoa, e é isso que muitas mulheres temem. Se o assediador for o orientador, há um problema a mais, pois ou você o denuncia e tem que encerrar a orientação – perdendo anos de trabalho, uma bolsa – ou você vai ter que conviver com essa pessoa até o fim desse período. E o trabalho de pesquisa é um trabalho muito próximo. Você fatalmente vai acabar ficando a sós com essa pessoa de novo”.[7] O depoimento da professora é plenamente reafirmado pelas estudantes ouvidas, uma vez que desde a graduação estão presentes percepções sobre “ameaças” e “riscos”.
Muito embora o problema dos assédios nas universidades seja epidêmico, a administração da ampla maioria das instituições ainda não está preparada para escutar, acolher e tomar providências. Respostas institucionais adequadas deveriam, por um lado, estabelecer procedimentos éticos/deontológicos a todos os seus membros e, por outro, criar políticas públicas universitárias de combate à violência dentro do campus.
Em entrevista à revista Veja (13 jan. 2016), o educador norte-americano Jackson Kartz diz: “Gosto de dizer que [a violência] não é um comportamento que se aprende, mas que se ensina”. E continua: “precisamos questionar: o que faz com que um menino amável na infância bata em sua namorada na adolescência? Tem a ver com a genética ou com a forma como educamos as crianças?”
Evidentemente não tem nada a ver com a genética. Francamente não sabemos se haveria tanta diferença em aprender e/ou ensinar a violência. Quem ensina aprende e o contrário também é verdadeiro. Todos os valores que são aprendidos ou ensinados nas famílias acabam sendo deslocados para a escola e para outras instituições sociais. Valores “tradicionais” parecem ser recorrentes em relação à formação de determinadas atitudes e comportamentos que caracterizam a definição do que é ser homem e o que é ser mulher – e os consequentes sentidos da masculinidade e da feminilidade. Ainda permanecem “distinções” nos processos de socialização doméstica/familiar assim como nos rituais de formação escolar feitos em relação aos comportamentos e atitudes consideradas “mais adequados” às meninas e aos meninos.
É exatamente nos “comportamentos diferenciados” que se fortalece uma cultura sexista, pois “as meninas, desde os primeiros sinais de puberdade, são despojadas de seu sentimento de pertença a si mesmas e o medo da violação ou de agressões sexuais passa a fazer parte de sua vida e a dominar a sua existência. Como defesa contra esse sentimento, muitas adolescentes e mulheres reagem, negando a presença de si mesmas no seu corpo ou tornando sua presença no mundo menos visível, como se não merecessem o tempo e o espaço. Esse sentimento prejudica a afirmação pessoal e o próprio direito a existir”, afirma a procuradora de justiça Maria Clara Sottomayor.[8]
Longe de representarem brincadeiras inofensivas ou de um “elogio a beleza feminina”, os assédios têm consequências relevantes na vida das meninas e mulheres. Tais práticas impedem a liberdade, a autonomia e o livre desenvolvimento intelectual, professional e psíquico das jovens, representando um atentado aos seus direitos humanos. Diante disso, o fenômeno dos assédios, como forma de violência simbólica e material, nos leva a pensar sobre os limites impostos à atuação das mulheres em espaços de poder como, por exemplo, o campo científico. Mesmo em locais cujos valores são a ética e a valorização das identidades,[9] há um conjunto de obstáculos à equidade de gênero que ainda precisa ser vencido.
*Lourdes M. Bandeira é professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB); e Ana Paula Antunes Martins é professora substituta no Departamento de Gestão de Políticas Públicas da UnB.