Ataques a jornalistas deram a tônica em ano eleitoral
Em 2022, Bolsonaro e seus seguidores foram responsáveis pela maior parte dos casos de ataques à imprensa
Após a confirmação da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais de 2022, uma profusão de vídeos em que pessoas celebravam por todo o país o resultado das urnas passou a circular nas redes sociais. Entre eles, um em particular chamou a atenção e viralizou. Na redação da maior emissora de televisão do país, a Rede Globo, jornalistas se abraçavam euforicamente e comemoravam em tom de alívio a derrota do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (PL) à reeleição.
Esse fato insólito ilustra a realidade do exercício da atividade jornalística brasileira durante a gestão Bolsonaro, marcada pela intoxicação do debate público e pelo estímulo, por parte dos apoiadores do ex-presidente, ao sentimento de desconfiança e suspeição em relação à imprensa, situação que resultou, não raro, em ataques verbais e físicos a jornalistas e comunicadores/as. Sem falar na redução da regra de transparência de atos públicos, que resultou em empecilhos ao escrutínio das ações (e omissões) do governo por parte da mídia. A exemplo do que ocorreu nos países que experimentaram a ascensão de governos autoritários, se criou um caldo social de ódio à imprensa brasileira, reiteradamente acusada de “comunista”.
O ano de 2022 foi particularmente difícil para as instituições democráticas brasileiras diante do aumento da temperatura política provocada pelas eleições, tornando o ambiente ainda mais tóxico e belicoso. Consoante a tendência de aumento da violência política contra profissionais de comunicação, as tentativas de redução do espaço democrático atingiram em cheio os jornalistas em seu trabalho de informar a população, a ponto do Brasil alcançar a ignominiosa marca de um caso de violência contra jornalistas por dia, com 376 casos de agressões, de acordo com o Relatório da Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil – 2022, publicado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
A tipologia das agressões ocorridas em 2022 contempla um arco variado de violações dos direitos fundamentais de liberdade de expressão e imprensa, do envio de mensagens de ódio às redes sociais de jornalistas e grupos de mídia ao cometimento de agressões físicas. Para a presidenta da Fenaj, Samira de Castro, essas violências foram estimuladas – quando não raro cometidas – pelo ex-presidente Bolsonaro; sua postura agressiva no relacionamento com a imprensa foi a senha para mobilizar ataques de grupos bolsonaristas radicalizados e inseridos em uma visão alternativa da realidade compartilhada nas redes sociais. “A gente compreende tudo isso como uma tática da extrema-direita mundial para tentar desacreditar as instituições e fazer prevalecer a sua narrativa mentirosa e golpista. Nós, jornalistas, entramos nesse contexto de perseguição, seguido à risca por Bolsonaro aqui no Brasil. O que a gente não esperava é que houvesse uma adesão tão forte da sociedade a esse tipo de comportamento”, afirma.

O relatório aponta que no último ano houve uma redução de 12,56% no número de casos, passando de 430 em 2021, ano em que se observou um número recorde de agressões, para 376 em 2022. A queda dos índices de ataques poderia ser comemorada, no entanto, a análise qualitativa dos dados revela uma piora do quadro. A redução ficou restrita aos casos de “descredibilização da imprensa”, que passou de 131 para 87 atentados (queda de 33,59%) e de “censura” (redução de 54,96%). Por outro lado, cresceram em todas as regiões do país as agressões diretas a jornalistas, especialmente as “ameaças, hostilizações e intimidações”, que aparecem em segundo lugar com 77 casos, um aumento de 133,33% no número de ocorrências em relação a 2021.
As “agressões verbais” chegaram a 46 casos, 20,69% a menos se comparamos aos do ano anterior, por outro lado, o número de casos de “agressões físicas” mais que dobrou, passando de 26 para 49, com aumento de 88,46%. O mesmo se deu em relação aos “impedimentos ao exercício profissional”, categoria em que os números de casos saltaram de 7 para 21, crescendo 200%. Houve ainda crescimento no campo dos “ataques cibernéticos” a veículos de comunicação, indo de 4 para 9 casos, registrando um aumento de 125%.
Quando se toma o recorte por região, percebe-se que a violência contagiou todo o país. Dos 27 estados da federação (incluindo o Distrito Federal), somente Sergipe e Roraima não apresentaram nenhum caso. Houve crescimento da violência no Sudeste (28,47% dos casos), no Norte (13,2%), no Nordeste (12,15%) e no Sul (12,15%). A região Centro-Oeste, responsável por 34,03% das ocorrências, observou uma queda no número de casos, entretanto, seguiu na dianteira como a mais perigosa para o exercício do jornalismo no Brasil.
Os números revelam que as ameaças verbais se converteram mais regulamente em agressões físicas. Gradativamente, a violência do mundo digital migrou para o mundo real. Segundo Artur Romeu, diretor do escritório regional da Repórteres Sem Fronteiras para a América Latina, as agressões contra jornalistas e comunicadores não são uma novidade. Contudo, o que vemos agora é uma agudização do fenômeno com contornos nunca vistos na história brasileira. “O Brasil é um país violento não só para jornalistas e comunicadores, mas para qualquer pessoa que exerce uma atividade de enfrentamento ou denúncia do poder constituído. Nos últimos anos, o que a gente viu foi a institucionalização dessa violência, no sentido em que o mais alto escalão do governo passou a tratar a imprensa em geral, e os jornalistas em específico, como inimigos públicos”, diz.
Para ele, a origem militar de Bolsonaro, conjugada ao receituário estratégico de líderes autoritários e autocráticos mundiais em atacar a credibilidade do jornalismo enquanto atividade democrática, ajuda a explicar seu comportamento. “Os militares, tradicionalmente, têm uma ojeriza à transparência pública, ao acesso à informação e à prestação de contas à sociedade daquilo que está sendo feito”, complementa.
Mulheres jornalistas: o violador é Bolsonaro
Em Como enfrentar um ditador: a luta pelo nosso futuro, a jornalista filipina Maria Ressa, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2021, destaca como as mulheres jornalistas se tornaram vítimas contumazes de governantes autoritários. Segundo ela – que foi perseguida pelo regime de Rodrigo Duterte -, a violência de gênero que acomete mulheres em posição de destaque possui impacto real, visto que representa uma ameaça à continuidade de suas atividades e visa desencorajar o protagonismo de outras profissionais.
No ano em que Jair Bolsonaro tentou se reeleger presidente, o país testemunhou agressões contra mulheres jornalistas proferidas por ele em plena cadeia de televisão. Esses casos ganharam repercussão na sociedade por meio das redes sociais e aumentaram a percepção sobre a misoginia impressa no temperamento de Bolsonaro. Naquela altura, ele já estava mal avaliado entre as mulheres e sua campanha se esforçava em conquistar o voto feminino.
O caso mais emblemático ocorreu na noite do dia 28 de agosto, durante o primeiro debate entre os presidenciáveis, promovido pela Rede Bandeirantes. Em sua intervenção no debate, a jornalista Vera Magalhães perguntou ao candidato Ciro Gomes (PDT) acerca dos efeitos da campanha de desinformação a respeito das vacinas contra a Covid-19, promovidas pelo então presidente, sobre a baixa cobertura vacinal de outras doenças que o país enfrentava. Bolsonaro havia sido escolhido pela jornalista para comentar a resposta, no entanto, utilizou seu tempo para atacá-la. Bolsonaro a chamou de “mentirosa” e afirmou que ela era “uma vergonha para o jornalismo brasileiro”; não satisfeito, debochou da jornalista, dizendo que ela havia sido “fantástica” por ter dado a ele a oportunidade de “dizer um pouco de verdade sobre você”.
Na ocasião, Bolsonaro ainda atacou outra mulher, a então candidata Simone Tebet (MDB), ao afirmar que ela era “uma vergonha para o Senado Federal”. Ele ainda se defendeu das acusações de atacar mulheres, classificando aquilo de “historinha” e acusando-as “de se vitimizar [sic]”.
No dia 6 de setembro, Bolsonaro esteve presente no programa Sabatina do canal Jovem Pan, veículo que se tornou a voz do bolsonarismo e ao qual o ex-presidente concedeu inúmeras entrevistas exclusivas ao longo do mandato. Nem mesmo em um órgão de imprensa considerado “chapa branca” o então presidente conseguiu esconder sua hostilidade à função jornalística e reincidiu no ataque a mulheres jornalistas. A vítima dessa vez foi Amanda Klein, que havia questionado o presidente sobre a suspeita da compra de imóveis em dinheiro vivo por seus familiares. Bolsonaro a chamou de “leviana”, descredibilizou o jornal Folha de S. Paulo e indagou se ela acreditava na imprensa. “Você acredita em você, olhando no espelho, Amanda? [sic]”, insistiu o ex-presidente.

Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.
No dia 13 de setembro, o então deputado estadual Douglas Garcia (Republicanos/SP), conhecido pela defesa enfática do ex-presidente e de suas pautas, também atacou a jornalista Vera Magalhães. Ele esteve presente ao debate dos candidatos ao governo do estado de São Paulo promovido pela TV Cultura, órgão em que Vera trabalha, a convite da campanha do candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), que viria a ser eleito governador.
Durante a intimidação, ele repetiu por cinco vezes a mesma frase proferida por Bolsonaro duas semanas antes, de que ela seria “uma vergonha para o jornalismo brasileiro”. Esse caso robusteceu a tese de que Bolsonaro, além de agressor, seria o principal incentivador para que seus seguidores atacassem jornalistas, comunicadores e órgãos de imprensa. O relatório da Fenaj contabilizou 570 ataques de Bolsonaro a veículos de comunicação e aos jornalistas entre os anos de 2019 e 2022, o que significa um atentado à imprensa a cada dois dias e meio.
A violência contra mulheres jornalistas extrapolou as fronteiras nacionais. No dia 18 de setembro, a repórter Laís Alegretti – em companhia do repórter cinematográfico Giovanni Bello -, da BBC Brasil em Londres, estava cobrindo a passagem de Bolsonaro pela capital inglesa, em razão do funeral da rainha Elizabeth II, quando foi cercada e intimidada por um grupo de bolsonaristas. Um homem gritou a palavra “lixo” em direção aos jornalistas, enquanto outro perguntava o que eles estavam fazendo ali. “Vocês não são bem-vindos”, ameaçou. Diante do ambiente hostil, Alegretti e Bello recolheram seus equipamentos e deixaram o local sob vaias.
De acordo com Samira de Castro, a camada de ódio despejada pelo bolsonarismo sobre mulheres jornalistas ocorre em função da condição feminina dessas profissionais. “Essas mulheres não são atacadas por suas qualidades enquanto jornalistas, mas sim em razão desse forte componente que nós temos no Brasil de machismo e misoginia. Esses ataques, coordenados principalmente nas redes sociais, tentam desqualificar aquela profissional acima de tudo como mulher”, observa.
Em junho de 2022, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a condenação de Bolsonaro e decidiu, por 4 votos a 1, aumentar o valor referente à indenização por danos morais que havia sido conferida à jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, em decisão de primeira instância. O valor passou de R$ 20 mil para R$ 35 mil reais. Em fevereiro de 2020, Bolsonaro insultara a jornalista com um comentário de cunho sexual para seguidores que o acompanhavam em Brasília.
“Eles vão sentir saudades da gente”
Não foram apenas os jornalistas da grande mídia que sofreram algum tipo de violência, representantes do jornalismo independente também experimentaram tentativas de impedimento de atuação profissional. Foi o caso de Leandro Demori, ex-editor-executivo do The Intercept Brasil. Às vésperas do primeiro turno eleitoral, ele deixou o Brasil acompanhado de sua família em razão dos recentes “episódios de violência”, como revelou em seu canal no Youtube. Demori, que ganhou projeção após as reportagens da “Vaza-Jato”, já havia sofrido um caso de violência; em janeiro de 2022, ele foi perseguido e intimidado por um homem enquanto passava férias em Balneário Camboriú (SC) – câmeras de segurança registraram o ocorrido.
Defensor de uma política antiaborto, o governo Bolsonaro investiu contra o site The Intercept Brasil e o Portal Catarinas por terem revelado o episódio de uma menina de 11 anos que havia engravido após um estupro e sido pressionada pela juíza responsável pelo caso a não abortar, embora o aborto para esse tipo de situação esteja amparado na legislação brasileira. Atendendo ao pedido do então presidente, o antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos fez representação junto ao Ministério Público para a abertura de investigações contra os veículos de mídia. Em 2019, a pasta havia encaminhado denúncia parecida ao MP contra reportagem da revista AzMina sobre a realização de aborto seguro e legal.
Monitoramento da Repórteres Sem Fronteiras em parceria com o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Labic/UFES) nas contas de 120 jornalistas no Twitter, durante o período eleitoral (16 de agosto a 30 de outubro), revelou a cifra estratosférica de 2.929.986 postagens contendo termos ofensivos e insultos direcionados à imprensa (os números são preliminares). Entre os dez jornalistas mais atacados, seis são mulheres.
Dois dias após a derrota no segundo turno das eleições, Bolsonaro fez um breve pronunciamento ao lado de ministros e políticos de sua base. Ao chegar ao local onde iria discursar, diante de um batalhão de repórteres que o aguardava, ele voltou-se para o então ministro da Casa Civil Ciro Nogueira e comentou em tom de desfaçatez: “eles vão sentir saudades da gente”.
Após esse evento, Bolsonaro submergiu, permanecendo recluso e em silêncio por quase dois meses. Nesse período, milhares de bolsonaristas fecharam rodovias e montaram acampamentos antidemocráticos em frente a quartéis e sedes do Exército por todo país, inconformados com a vitória do presidente Lula e pedindo intervenção militar. Durante a cobertura desses eventos golpistas foram registrados 63 casos de agressão contra jornalistas, mais de um ataque por dia. Em 2022, Bolsonaro e seus seguidores foram, juntos, responsáveis por 184 casos de ataques à imprensa.
Desafios
A partir de 2019, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDH), por meio do decreto nº. 9.937 do governo federal, passou a abranger ambientalistas e comunicadores, alterando sua nomenclatura para Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas. A inclusão de comunicadores no rol dos contemplados pelos mecanismos de proteção se deu a partir da mobilização de entidades de representação de classe, ativistas e organizações em defesa dos direitos humanos. Paradoxalmente, a inclusão se deu sob o governo Bolsonaro, embora as articulações que culminaram no decreto já estivessem em discussão antes de sua eleição.
Conforme análise da RSF, até julho de 2022 somente seis dos 650 beneficiários atendidos pelo PPDH pertenciam à categoria de comunicadores. O baixo número resulta de alguns fatores, entre eles, a limitação do alcance da cobertura do programa àqueles profissionais de comunicação que atuam diretamente na defesa dos direitos humanos, bem como o desconhecimento dos comunicadores sobre a existência do programa. O quadro se torna complexo quando se observa a dificuldade que os comunicadores tiveram nos últimos quatro anos em acessar um sistema de medidas de proteção que estava sob o comando de um governo que ameaçava e perseguia a quem deveria proteger, comprometendo a eficácia da política pública.
Tanto o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) quanto a Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores têm apresentado uma série de recomendações em seus relatórios para o funcionamento devido e efetivo do PPDH. Destacam que as medidas não devem inviabilizar a expressão dos comunicadores, como nos casos de afastamento dos mesmos de determinadas coberturas, da retirada de seus territórios em casos de ameaça – implicando sobretudo a atuação de comunicadores populares que falam sobre e a partir desses lugares -, ou da saída dos ambientes digitais, como as redes sociais, que são fundamentais para o exercício da comunicação.
No dia 30 de dezembro de 2022, durante uma “live”, em seu último pronunciamento como mandatário, Bolsonaro se dirigiu a seus seguidores como um perseguido pela imprensa. “A imprensa, sempre ávida para pegar uma palavra errada minha, uma frase fora de contexto, para criticar”, afirmou. Mas, durante a sua gestão, a desinformação, a violência e o ódio se tornaram políticas públicas promovidas através de uma comunicação intensa, direta e sistemática. Sem ele no poder, mas com o espectro do bolsonarismo rondando, impõe-se ao novo governo, à própria imprensa e à sociedade civil organizada a dura tarefa de restabelecer a confiança da população nos fatos e no entendimento da importância da atividade jornalística para a democracia.
Tanto Castro como Romeu convergem na interpretação de que não há uma bala de prata que resolva esses problemas de imediato, sendo preciso calibrar estratégias e políticas públicas que operem no campo da educação midiática, na proteção dos jornalistas e comunicadores no exercício de suas funções, bem como na regulação das grandes plataformas de redes sociais para, desse modo, poder dar respostas de longo prazo.
Iury Batistta é pesquisador, mestre em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.