“Até, meu bem, provar que não, que não, negro sempre é vilão”
Julgamento do perfilamento racial pelo STF apresenta às instituições político-jurídicas do país uma oportunidade ímpar para estabelecer um marco divisor no enfrentamento do racismo institucional
A frase do título foi tomada de empréstimo de um discurso contra o perfilamento racial adotado pela polícia contra pessoas negras na Bahia, pronunciado pelo militante do movimento negro Raimundo Bujão, no início dos anos 80, do século passado, e imortalizada pelo poeta e compositor Suka, na célebre canção do Ilê Aiyê, Ilê de Luz, gravada por Caetano Veloso.
Embora o conceito formal seja de recente elaboração, se apresentando na esfera jurídica dos direitos humanos num documento da ONU, em 2009, a experiência afrodiaspórica de submissão sistemática e institucional ao racismo permitiu ao povo negro identificar a prática do perfilamento racial e denunciá-la como violadora de seus direitos de cidadania desde sempre, num exercício de insurgência político-jurídica que pode ser nomeado como constitucionalismo negro.
Desde a abolição da escravidão e a subsequente proclamação da República, a retórica política republicana e sua arquitetura normativa constitucional, formalmente igualitaristas, foram postas à prova pela persistência de diversas formas discriminatórias desfavoráveis à cidadania negra. As hierarquias raciais, as interdições ao exercício de direitos, as práticas segregacionistas se mantiveram amparadas em dois recursos racistas: argumentos eugenistas de suposta inferioridade racial negra a ser superada pela miscigenação e pelo embranquecimento da população, além de argumentos classistas para os quais as desigualdades e iniquidades manifestas derivavam das diferenciações de classe, sendo o racismo inexistente ou residual. Funda-se o mito da democracia racial, celebrado pelas elites brancas de todos os espectros políticos e ideológicos nacionais.
A combinação desses argumentos negacionistas possibilitou a naturalização de práticas abusivas e ilegais em diversos domínios da vida social e institucional. Dentre estas, as mais perversas se institucionalizaram por meio das políticas de segurança pública fundadas no paradigma da “defesa social”, materializadas na ideia da existência de um inimigo interno a ser combatido, sendo este projetado nos corpos negros pelos estigmas racistas de suposta tendência nata para o crime.
A trajetória negra de resistência, formulação de propostas para o enfrentamento das discriminações raciais e aspiração pela plena cidadania sempre tiveram como horizonte o reconhecimento de seus direitos constitucionais. Jornadas pelo direito ao voto, à educação e ao trabalho, bem como reivindicação da criminalização do racismo, materializaram-se na constitucionalização de agenda antirracista na CF de 1988 e na subsequente adoção de normas infraconstitucionais que asseguram políticas públicas compensatórias mitigadoras das defasagens e desvantagens racialmente construídas em desfavor do povo negro.
As conquistas do Constitucionalismo Negro seguem enfrentando grandiosos desafios e permanentes riscos de inviabilização. Os principais são a persistência do negacionismo do racismo que deslegitima a dimensão civilizatória do debate sobre as relações raciais desiguais e iníquas, ao mesmo tempo em que possibilita o debate público sobre democracia sem a inclusão do combate ao racismo como elemento central nos projetos de defesa e aperfeiçoamento democrático. A democracia brasileira rejeita o desmonte dos artifícios desigualizantes incrustrados nas práticas institucionais discriminatórias e letais, especialmente nas políticas de segurança pública adotadas por governos de todos os matizes ideológicos, programáticos e partidários.
A prevalência da cultura de populismo punitivista concorre ativamente para a normalização de práticas policiais abusivas e ilegais, orientadas pela ideia de perfis raciais criminológicos. O julgamento do perfilamento racial pelo STF apresenta às instituições político-jurídicas do país uma oportunidade ímpar para estabelecer um marco divisor no enfrentamento do racismo institucional. O STF foi fundamental para a contenção das investidas antidemocráticas que pretendiam interromper a democratização inaugurada pela CF de 1988, portanto manifestar-se firmemente contra o perfilamento racial pode significar um passo corajoso para a retomada efetiva de horizontes democratizantes de reafirmação da ordem constitucional e do avanço na afirmação da cidadania plena para todos os brasileiros e brasileiras.
Samuel Vida é Ogan de Xangô do Terreiro do Cobre, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, coordenador do Programa Direito e Relações Raciais, doutorando em Direito, Estado e Constituição (UnB), diretor do Afrogabinete de Articulação Institucional e Jurídica (AGANJU) e membro da Coalizão Negra por Direitos.