Autoritarismo 2.0
Após a primeira guerra do Golfo, os regimes árabes viveram perturbações desestabilizadoras. No entanto, as estruturas arcaicas sobreviveram. O propalado banho de democracia não ocorreu. E os governos apenas cobriram com novos véus suas feições autoritárias, tentando restabelecer uma imagem de pureza aos olhos do mundo
Em 1991, quando Saddam Hussein foi expulso do Kuwait, uma nova ordem mundial surgiu no horizonte. Ao menos era isso o que queria fazer crer, ao final da guerra do Golfo, a retórica otimista desencadeada pela queda do muro de Berlim. Daquele momento em diante, as regras do direito internacional e as resoluções das Nações Unidas seriam aplicadas em toda parte, inclusive na Palestina. Uma onda de democratização se espalharia pelo mundo árabe [1], pressionando os regimes autoritários a optarem pela maneira ocidental de governar.
No plano econômico, os “ajustes estruturais” – incluindo as privatizações e a redução das subvenções estatais, os acordos de livre comércio, o apelo aos investidores e os incentivos para empreendimentos -, finalmente fariam com que emergissem novas classes médias. Esses atores sociais, em simbiose com outras forças nacionais e internacionais, impulsionariam a região para uma via de dinamismo econômico e democratização. Da mesma forma que na América Latina e no sul da Europa, em países como Espanha, Grécia e Itália, as elites astuciosas serviriam de catalisadores das transformações políticas [2]. O Oriente Médio poderia alcançar o que era visto então como um movimento de progresso planetário.
Vinte anos mais tarde, o balanço dessas esperanças é desolador. No plano político, três tipos de regime dividem nossa região: os fechados (Líbia, Síria, etc), onde a diversidade não existe, sequer na aparência; os híbridos (Argélia, Egito, Jordânia, Marrocos, Sudão e Iêmen), em que o autoritarismo coexiste com formas de pluralismo; e os abertos, cujo único caso, no momento, é o da Mauritânia, que experimenta uma verdadeira alternância no poder.
Na economia, ao mesmo tempo em que as medidas neoliberais estimularam o crescimento, não transformaram os países em elementos dinâmicos do mercado mundial. E certamente não suavizaram a miséria e a injustiça social, que atingem principalmente os jovens. O Egito, Estado mais populoso, mantém seu status de rentista e tem na ajuda estrangeira uma fonte de renda estratégica. As nações petrolíferas, que naturalmente nadam em dinheiro, tampouco são exemplo de alguma inovação estrutural: seu bem-estar reflete apenas a alta do barril. Graças a instrumentos como os Fundos soberanos, algumas dessas nações privilegiadas conseguem mostrar sua força financeira, comprando parte de empresas dos grandes países industrializados em crise, e diversificando, assim, sua lucratividade.
É justamente dessa renda do petróleo, aliada às relações clientelistas permanentes, que dependem as novas classes médias, emergentes do processo de 1990. Contraditoriamente com o que pretendia o Ocidente, elas convivem com o Estado autoritário, adaptando-se a ele. Monárquico ou republicano, os governos perduram e demonstram um grande poder de adaptação: os empresários ricos lhes devem suas redes de influência e seus contratos e todos os demais, dos empreendedores mais modestos até os vendedores ambulantes, se submetem às diretivas ministeriais, às regulamentações minuciosas e à norma das propinas. Mesmo as profissões liberais e intelectuais continuam tributárias das instituições estatais e pagam um preço alto por qualquer transgressão dos limites prescritos.
Certamente, o rótulo “classes médias” é elástico e recobre um amplo leque de grupos sociais, que não se restringe aos homens de negócios e comerciantes, mas também inclui professores, enfermeiros, artistas, funcionários públicos, etc. A divisão entre eles é, porém, inegável. Enquanto uns são oriundos de linhagem antiga e solidamente implantada, local e nacionalmente, outros são os primeiros de suas famílias a superarem o nível da subsistência e a saírem do analfabetismo. E entre estes, um bom número voltará à condição de miserável na primeira crise. Os militares de alta patente, por exemplo, que pertencem a essa nova burguesia por possuírem importantes investimentos, constituem uma área das “classes médias” hostil a qualquer mudança. Junto aos altos funcionários e burocratas, eles acumularam riquezas graças a seus cargos. Um caso exatamente oposto é o dos “globalizados”, divididos em dois segmentos: profissionais e homens de negócios expatriados, que enviam um apoio financeiro à família deixada no país de origem suficiente para a compra de um pequeno comércio; ou grupos sociais que deparam com a falta de perspectivas internas e para os quais a única esperança de progresso econômico está em outro lugar, ainda que fora de alcance [3].
Esses dois tipos de imigração são, aliás, sintomas de uma mesma carência: o Estado exerce cada vez menos seu papel de provedor de empregos e de proteção social. O indivíduo perde o sentimento de elo entre seu destino pessoal e algum projeto nacional partilhado por todos.
Ao mesmo tempo, essas diferentes “classes médias” constituem apenas uma parte infinitesimal da população. A imensa maioria vive próxima ao limite da pobreza, com uma precária instrução pública, e simplesmente não reivindica a liberalização política de forma ativa. Afinal, desde o início dos anos 1990, as iniciativas de abertura econômica e política não permitiram o avanço das idéias progressistas e laicas entre as classes médias e populares. O islamismo, sob suas diferentes formas, chegou a figurar como o melhor porta-voz dos descontentamentos e das exigências de mudança, mesmo entre grupos tradicionalmente de esquerda e não religiosos, como os estudantes.
Mas ainda que todos façam parte de um mesmo grande coro exigindo a democratização, uns cantam a melodia de uma ordem social baseada no direito e nos princípios políticos modernos, universalmente aceitos, enquanto outros salmodiam as regras fundadas em um conjunto de preceitos corânicos. Os primeiros buscam estabelecer a soberania através da vontade popular e os últimos querem-na via um sistema de crença. E mesmo notando que um princípio de inflexão se esboça entre os Irmãos Muçulmanos egípcios ou no Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD) no Marrocos, essas ideologias têm vida longa…
As “reformas” infligidas à nossa região há quinze ou vinte anos, enfim, não nos conduziram para o caminho inexorável da liberação econômica e da democracia, passando pela modernização e a secularização. Elas, ao contrário, forneceram a prova irrefutável de que não existe nenhuma ligação mecânica entre as medidas e seus resultados.
Como explicar a atração, aparentemente paradoxal, que o islamismo contemporâneo exerce sobre muitos diplomados? Sem dúvida, ela é conseqüência de sua capacidade de reunir dois temas: orgulho cultural e identidade religiosa. Durante muito tempo, os regimes se contentaram em colocar a autoridade cultural nas mãos de religiosos conservadores, supostamente mais capazes de “controlar a sociedade”. Após todos os golpes sofridos pelo nacionalismo árabe – principalmente depois da derrota na Guerra dos Seis Dias, a colaboração de alguns importantes regimes com Israel e a invasão e a destruição do Iraque -, esses líderes aproveitaram o opróbrio lançado sobre seus governos para posarem de defensores da cultura árabe. Disso resultou um híbrido ideológico poderoso e inquietante, que afetou diversos setores.
Um exemplo claro é o uso da língua árabe: os zelotas religiosos adotaram uma postura de pressão permanente para combater a “profanação” desse instrumento, que inegavelmente tem uma longa história de produções ricas e variadas. No entanto, ao contrário do que esperavam, a coerção teve como efeito direto o enfraquecimento do status árabe no mundo. Ela agravou o fosso cavado entre as culturas orientais e ocidentais, reforçando a impressão de uma relativa fragilidade do nosso saber. Afinal, aqueles que são instruídos e multilíngües, ao depararem com a escassez de boas traduções, acabam por realizar uma parte considerável de seus trabalhos em inglês ou francês. Praticando outros idiomas, tornam-se momentaneamente laicos. Assim como eles, a juventude aproveita o que pode do fluxo global e cria, nas ruas e nas telas, uma nova mistura vernacular, e quando visitam o You Tube, também estão em um espaço secular. Este é um cenário dado e para mudá-lo precisamos que nossos cientistas, intelectuais, artistas e pessoas comuns utilizem mais as formas “profanas” da língua árabe, se apropriando de seu poder extraordinário.
No plano religioso, o híbrido também é empobrecedor. De um lado, o atrativo do Islã vem de sua posição como última grande religião abraâmica que oferece uma visão voltada para a redenção, englobando elementos das ideologias laicas de direita e de esquerda. É anti-individualista, anti-consumista e solidamente enraizado na vida da comunidade. Dependendo das interpretações, pode ser também socialmente muito conservador, rigidamente hierarquizado, respeitoso da ordem e da tradição. Como supõe-se que se dirige a todos, qualquer tentativa de priorizar a relação entre o Islã e uma cultura particular, principalmente a árabe, corre o risco de transformá-lo em algo autônomo, que mine sua pretensão universal. Detectamos os sintomas dessa orientação nas diatribes da Al Qaeda contra “os persas” ou dos ulemás contra “os turcos”.
Outro caso é a apropriação dessa compreensão para a manutenção da ordem. Muitos regimes baseiam sua legitimidade sobre grandes relatos nacionalistas um tanto míticos, onde os governos figuram como libertadores e defensores do Estado diante da dominação estrangeira, e, às vezes como defensores da fé. Em geral, essas histórias são verídicas porque muitos dos partidos e das famílias no poder desempenharam efetivamente um papel heróico na conquista e na conservação da independência nacional. Amplamente disseminadas pelas mídias oficiais, essas mitologias “unificadoras” criaram, porém, uma falsa identificação entre o regime e a sociedade, inclusive com o apoio entusiasta de intelectuais que buscavam neutralizar a dissidência e encorajar a docilidade. Mas, como em todos os grandes relatos, sempre existem ausências: no Egito, são os coptas; no Marrocos e na Argélia, os berberes; em outros países, os curdos ou os xiitas. Como as tensões sociais eram refratárias a essa homogeneização e os dirigentes tinham medo de seu próprio povo, apavorados com a idéia de qualquer abertura política real, algumas formas de autoritarismo adquiriram nuances populistas e outras até glorificantes da população. Mas, sob essas fachadas paternalistas, os governos e as elites desprezam todos que estão abaixo deles, sob o pretexto de que garantiram sozinhos a independência e as conquistas da nação.
É fato que a magia dessas ideologias unificadoras perdeu seu poder nas últimas duas décadas. Agora, o Estado autoritário é obrigado a enfrentar um viveiro de novos grupos e, ao contrário de antes, nem todos podem ser silenciados ou comprados. Cada um tem seu próprio motivo de descontentamento. Nenhuma aliança é estabelecida entre eles, pois a desconfiança mútua é constante. Assim, operários militantes não defendem as mesmas idéias que os camponeses pobres e conservadores. Da mesma forma, os donos de indústrias locais também podem não concordar com os projetos de homens de negócios e de altos funcionários ligados aos organismos financeiros internacionais. E a toda essa clivagem acrescenta-se ainda o receio de um islamismo radical, partilhado às vezes entre os próprios muçulmanos.
É claro que os regimes autoritários aprenderam a tirar vantagem dessas divisões. O Estado não se apresenta mais como defensor rígido de seu direito de exercer, sozinho, o poder sobre uma massa incompetente. Tornou-se, sim, o protetor dos oponentes “moderados” contra seus irmãos inimigos, os “extremistas”. Um exemplo egípcio ilustra bem essas contradições. No âmbito de seu programa econômico neoliberal, o governo atual reviu a reforma agrária feita por Gamal Abdel Nasser e confiscou as terras de seus proprietários, geralmente antigos meeiros, para dá-las aos latifundiários. A transição deveria ser feita gradualmente, para que os camponeses se adaptassem . Mas eles foram expulsos imediatamente, despejados pela polícia que os novos comrparam [4]. Os pequenos agricultores se mobilizaram contra toda essa brutalidade e poderíamos imaginar que outros agrupamentos aproveitariam a oportunidade para se unirem ao movimento. Porém, todos mantiveram distância, pois aprovam a política do presidente Hosni Moubarak e julgam a reforma nasseriana “comunista”. Desse modo, a esperança de organizar uma contestação política séria foi esmagada no seu nascimento.
O roteiro “extremistas versus moderados” facilitou também uma maior flexibilidade tática dos regimes. Não era mais necessário fraudar abertamente as eleições. Podia-se admitir a participação de mais partidos de oposição e conseguir 70% ou 60% dos votos, no lugar dos 90% habituais. Mais vozes são ouvidas nas mídias, principalmente na imprensa escrita, na qual as restrições são menos severas que antes, mas os limites também são bem precisos. Não era mais necessário colocar tanta gente na prisão, nem por tanto tempo – exceto os “extremistas”, logicamente. O Estado utilizou todos os meios, criou suas próprias mídias, suas organizações não governamentais (ONGs) e seu simulacro de uma sociedade civil. Trata-se de uma representação, de uma racionalização limitada da ordem política. O Estado autoritário não foi transformado pela democratização, ele se fantasiou com seus acessórios. Poderíamos ironicamente chamá-lo de “autoritarismo 2.0”.
Desde sempre, os fatores geopolíticos pesam sobre essas evoluções. A estreita participação da nossa região na política mundial remonta a 1945, quando o presidente americano Franklin D. Roosevelt e o rei saudita Abdelaziz Ibn-Saoud convencionaram como se daria o fornecimento de petróleo. Após a guerra de 1967, ocorreram outros fatos marcantes, tais como a aprovação do Egito e da Jordânia para a criação de um Estado palestino com a manutenção de Israel; a aliança dos Estados Unidos com diversos países do Oriente Médio, inclusive a Síria, para restabelecer a soberania do Kuwait em 1991; e, no decorrer dos anos 1990, todos os encorajamentos dispensados às nações árabes para liberalizar sua vida política e aplicar em suas economias, receitas neoliberais.
Mas, a partir de 2001, a administração de George W. Bush optou por uma nova leitura do pacto com nossa região: a prioridade não seria mais a estabilidade, mas sim a instauração da democracia, se necessário pela força. Esse abandono de um antigo princípio assustou muitos regimes, mas a opinião árabe percebeu rapidamente que o democrático não passava de um disfarce para um programa de intervenções de interesse exclusivo dos americanos e israelenses. Os regimes locais tiveram que aprender rápido a decifrar as declarações contraditórias vindas do Ocidente e finalmente reencontraram sua confiança. Uma fachada democrática lhes bastaria, com a condição de dar sua contribuição para a “guerra contra o terrorismo” e de não se oporem muito vigorosamente aos Estados Unidos e à Israel. Os governos mantiveram um duplo discurso, afirmando a seu povo que eles eram contra a invasão estrangeira ao mesmo tempo em que auxiliavam Washington a capturar e torturar suspeitos presos ilegalmente e conter a resistência com a determinação de “remodelar” a região.
Mas a internacionalização da luta – de um lado o Estado de segurança supervisionado pelos Estados Unidos, e de outro, a Al Qaeda -, contribuiu para desvalorizar essa atividade política local e desmobilizar seus atores. Do mesmo modo que a globalização mina o poder econômico do Estado e convida os cidadãos a se exilarem para garantir seu futuro material, o complexo criado para “a guerra contra o terrorismo” incita seus militantes a se lançarem nos campos de batalhas mundiais e imaginários. Para escaparem do desespero que reina em casa, fogem para a Europa para trabalhar ou para o Iraque para lutar. Diversas ações espetaculares das milícias jihadistas foram conduzidas por pessoas vindas de fora, muitas vezes de regiões relativamente afastadas dos conflitos, como por exemplo, o Marrocos. É a frustração social que gera esses dois tipos de despolitização: a desistência e a radicalização. O exemplo argelino é significativo. Primeiro veio a Frente Islâmica da Salvação (FIS), com sua determinação em reformar o Estado. Depois, o Grupo Islâmico Armado (GIA), que tentou derrubá-lo. E, por último, o radical Grupo Salafista para a Pregação e o Combate (GSPC), transformado em Al Qaeda no Magreb que a “renegou”. Aqueles que não podem se exilar agem localmente e recorrem a uma organização mundial na esperança de serem aceitos, mesmo o elo entre eles seja muito tênue. É o que permite à Al Qaeda estar presente em todo lugar, pois qualquer um pode encarná-la. E, reciprocamente, todo muçulmano descontente pode ser suspeito de terrorismo.
Desse modo, a “guerra contra o terror” penetra em cada bairro. É preciso distinguir a propaganda da realidade. Com certeza, existem pessoas perigosas no mundo, prontas a matar e a morrer movidas por alguma ideologia. Mas, “a guerra contra o terror” produziu uma verdadeira indústria do medo, que suscita pesadelos totalmente desproporcionais. Segundo a Europol, em 2006 aconteceram 500 atos de terrorismo na Europa, dos quais apenas um – fracassado, por sinal -, foi atribuído à islâmicos [5]. Já nos Estados Unidos, a Transportation Security System fez uma experiência para enganar a vigilância aeroportuária com falsas bombas e foi bem sucedida em seis vezes das dez tentativas – a maior parte em Los Angeles [6]. Mesmo assim, não ocorreu um único atentado terrorista em solo americano desde 2001. Se existissem realmente centenas de células jihadistas à espera, prontas para atacar, certamente saberíamos algo sobre elas.
Fora das zonas de combate, o terrorismo islâmico “no varejo” é raríssimo. Dentro delas, foi a invasão estrangeira que suscitou táticas de resistência e tipos de organização inéditos, compreendendo aí as antenas e as imitações da Al Qaeda. Em uma frase, o objetivo deveria ser criminalizar o terrorismo, e não politizar a jihad.
No entanto, a indústria do medo integra nossa relação com o Ocidente. O dinheiro das fundações e dos think tanks ocidentais, assim como os apoios políticos e a visibilidade midiática, fluem para todos que ajudem a encher o balão da “guerra contra o terror”. A segurança não é reforçada por causa disso, mas o temor cresce. E junto com ele, o número de mecanismos de controle que mantém os regimes autoritários. O medo substituiu, no momento oportuno, os álibis nacionalistas que recentemente serviam para retardar sine die a liberalização proposta pelo Ocidente.
A democracia está indiscutivelmente em crise pelo mundo porque não manteve suas promessas [7]. Entre nós, ela foi desvalorizada antes de existir: a própria palavra está desacreditada. Na opinião pública árabe, tornou-se o símbolo desprezado da hipocrisia dos regimes repressivos, do programa neoconservador de ataques preventivos e das ingerências estrangeiras em geral. Essa desconfiança atingiu até as ONGs. Algumas delas se mercantilizaram e, por isso, se afastaram das realidades locais. O futuro e a visão de seus quadros estão voltados para o Ocidente que os subvenciona e a militância cedeu lugar à preocupação com as próprias carreiras. Os poucos bons trabalhos que restam são completamente ignorado. É o caso do diagnóstico do Center Carter sobre as eleições de janeiro de 2006 na Palestina: a conclusão da ONG foi desprezada pela “comunidade internacional”, que impôs sanções porque os eleitores tinham escolhido majoritariamente votar no Hamas. O fim dessa história é a tragédia atual, protagonizada por 1,5 milhões de palestinos que vivem sitiados e famintos na Faixa de Gaza.
Em nossa região, as esperanças de democratização real são poucas. Os atores tradicionais das mudanças – militantes sindicais ou políticos e estudantes – parecem mais enfraquecidos do que nunca. Os novos atores – minorias regionais ou lingüísticas, jornalistas e intelectuais independentes – ainda sofrem para se unirem e desfazerem o cerco de uma política autoritária implantada há muito tempo.
Não podemos prever quais serão os instrumentos de transformação que emergirão a partir das resistências que se multiplicam. No Egito e no Paquistão, os magistrados e os advogados resistem corajosamente à destruição da independência do judiciário. No Marrocos e na Argélia, jornalistas lutam pela liberdade de imprensa. Por todo o mundo muçulmano, jovens teólogos inventam novas ligações entre Islã, democracia e modernização.
O Estado autoritário soube absorver e desviar as mudanças, mas não é uma máquina perfeita e impenetrável. Os espaços que ele estabeleceu para suas próprias manobras constituem também verdadeiros campos de ação política. Mas existem caminhos. É preciso esperar o inesperado. A maioria das transições democráticas que pudemos observar no mundo desde os anos 2000 se produziram em países autoritários “híbridos” [8].
Para contribuirmos com as mudanças, devemos “dar uma cor local” à mensagem progressista, revigorar o sentimento de um objetivo compartilhado, englobando a nação e o Islã, mas não se limitando a eles; apresentar uma visão voltada às necessidades imediatas das pessoas envolvendo-as nos projetos mais vastos de paz e de democracia. Acolheremos a ajuda dos Estados Unidos e da Europa com gratidão, mas, se o Ocidente quer realmente promover a democracia entre nós, é preciso que comece respondendo seriamente às preocupações locais. Falar de “democracia” não serve para nada se esse discurso não for independente dos grandes projetos geopolíticos e não privilegiar uma colaboração com os movimentos progressistas locais.
As pessoas precisam ter diante delas perspectivas abertas. É sua grande aspiração. É nesse terreno que devem se aventurar os progressistas.
*Hicham Ben Abdallah El Alaoui é primo do rei do Marrocos, Mohammed VI, e pesquisador visitante do Center on Democracy, Development en the Rule of Laz, da Universidade de Stanford, Estados Unidos.