Autoritarismo e Estado de Direito: as lições da História
Os italianos, os húngaros e os brasileiros testemunharam a corrosão de suas instituições e de seu Estado de Direito democrático-liberal por dentro, por meio da lei
Não foi preciso disparar um único tiro para que, logo depois da Marcha sobre Roma, Vittorio Emanuele III, o rei italiano, alçasse Benito Mussolini à condição de presidente do Conselho de Ministros. Sempre afiado, Bernard Shaw afirmou que os fascistas avançaram sobre a capital italiana como um ferro quente sobre um pedaço de manteiga.
Formalmente, tudo ocorreu dentro dos marcos da legalidade: Mussolini havia sido regularmente eleito e poderia ser investido na função pelo monarca. Com o Estatuto Albertino sob os braços, o futuro Duce formou uma coalizão com os mais variados matizes. Ele contou, inclusive, com o apoio de liberais[1]. Legitimado pelas urnas, o parlamento italiano aprovaria, à época, inúmeras leis sobre o associativismo político e sindical, as eleições e o poder do governo e de seu chefe.
Sem nenhuma discussão, o Congresso da Itália aprovou, em 1925, a lei 2263, que conferiu a Mussolini o poder de obstruir qualquer iniciativa de lei proposta por qualquer parlamentar. No Senado, uma única voz se levantou contra o projeto – a de Gaetano Mosca[2]. O próprio Duce permaneceu fiel à “estratégia legalista” traçada por Alfredo Rocco, seu influente Ministro da Justiça, até o fim do regime fascista[3].

Viktor Orbán
Praticamente cem anos depois da Marcha sobre Roma, o Fidesz, partido de Viktor Orbán, amealhou, em uma aliança com os democratas-cristãos, 53% dos votos nas eleições de 2010. O percentual garantiu-lhes, segundo as regras do sistema eleitoral húngaro, 68% das cadeiras do parlamento. Essa grande base alterou o número de ministros da Corte Suprema, que ganhou mais quatro juízes, todos nomeados pelo novo governo. A mais alta instância do Judiciário húngaro detém uma espécie de poder de revisão das decisões tomadas pelos congressistas.
Orbán queria mais. Em 2010, um parlamentar do Fidesz esboçou, a bordo de um trem entre Estrasburgo e Bruxelas[4], uma nova constituição para a Hungria. No início de 2011, o país tinha uma lei fundamental nova. Em um movimento que lembrou o Aventino italiano – após o assassinato do deputado Giacomo Matteotti, um dos principais críticos de Mussolini, a maior parte dos oposicionistas deixou a Câmara em 1924 –, a oposição, afirmando-se alijada de todo o processo, deixou o parlamento no dia da votação do projeto.
Três anos mais tarde, o governo de Órban alterou, também de modo legal, as regras eleitorais. Apesar de seu partido ter perdido apoio popular – em 2014, ele obteve 45% dos votos dos húngaros –, seu espaço no parlamento não mudou muito. Dali em diante, 67% das cadeiras seriam suas, percentual suficiente para aprovar reformas constitucionais. “Hoje, na Hungria, se Viktor Orbán quisesse passar uma lei que lhe concedesse o direito da primeira noite, nada poderia impedi-lo de aprová-la”, afirmou o jornalista húngaro Gábor Horváth[5].
Brasil
Se, no Brasil, as emendas à Constituição são frequentes, o país não promoveu, nos últimos anos, mudanças tão profundas em seu ordenamento jurídico. Mas foi sob vestes legais e constitucionais que, há quatro anos, o Congresso Nacional aprovou, baseado em um overruling do Tribunal de Contas da União, o impeachment de Dilma Rousseff. Antes dela, governos dirigidos por outros presidentes já haviam atrasado repasses aos bancos públicos contratados para o pagamento de benefícios sociais – algo jamais questionado pelos órgãos de controle.
O Tribunal de Contas da União achou por bem, contudo, mudar seu entendimento. Sua nova posição deveria se estender, inclusive, a fatos pretéritos. Às antigas pedaladas fiscais de Dilma Rousseff não seriam aplicadas, assim, as decisões de outrora: a inovação as atingiria. Com razão, a Advocacia Geral da União sustentou, em defesa da presidente, que, por aqui, é “vedada a distorção ou mesmo a construção de interpretações novas que busquem em dado momento conferir aparência de ilegal àquelas condutas que sempre foram recepcionadas pela legalidade”[6].
Qualquer overruling, a mudança de entendimento das cortes judiciais, deve, é claro, preservar a segurança jurídica. Mas o Congresso Nacional deu de ombros para ela. Instado, o Supremo Tribunal Federal também fez ouvidos moucos às alegações da presidente. O rito do impeachment foi rigorosamente observado. Democraticamente eleita dois anos antes com 54 milhões de votos, Dilma Rousseff foi deposta por pedalar. Outros apreciadores de bicicletas não tiveram, porém, o mesmo destino.
A Itália de Mussolini, a Hungria de Órban e o Brasil do impeachment de Rousseff têm algo em comum: em nenhum desses países as instituições tradicionais foram atacadas com um golpe clássico – daqueles com tanques e forças armadas nas ruas. Neles também não houve sinal de estado de sítio ou de estado de defesa. A exceção não deu as caras.
Os italianos, os húngaros e os brasileiros testemunharam a corrosão de suas instituições e de seu Estado de Direito democrático-liberal por dentro, por meio da lei. Isso não quer dizer, necessariamente, que o fascismo esteja dando as cartas em Budapeste ou em Brasília. Na verdade, a arquitetura institucional dos fascistas devia muito às construções teóricas do próprio liberalismo. Ao contrário do nacional-socialismo, o fascismo tendeu a conservar o Estado de Direito e seu tradicional princípio da legalidade”[7].
Adam Przeworski nota que uma subversão sub-reptícia das regras tem ganhado cada vez mais espaço nos últimos anos[8]. O fascismo italiano não é mencionado pelo cientista político polonês, mas Mussolini e seus asseclas já se valiam dessa tática. As mudanças das normas eleitorais constituem um dos principais objetivos dos governos autoritários. O avanço do Executivo sobre o Legislativo e mesmo sobre o Judiciário também integra os seus planos. Os referendos lhes são igualmente caros, assim como o controle sobre a mídia. Tudo somado, uma série de medidas discretas e supostamente compatíveis com as instituições democráticas acaba por, sob esse autoritarismo furtivo, corroer o Estado de Direito liberal-constitucional[9].
Carl Schmitt afirma que o fascismo e o bolchevismo são antiliberais, mas não são antidemocráticos[10]. Não há dúvida, porém, de que a democracia e o liberalismo estabeleceram ou tentaram estabelecer, ao longo dos últimos séculos, pontos de contato. De qualquer forma, as mais recentes experiências demonstram que “democracias não dispõem de mecanismos institucionais que impedem que elas sejam subvertidas por governos devidamente eleitos segundo normas constitucionais”. Leis, emendas constitucionais e referendo podem, “por meios legítimos”, pôr abaixo eventuais obstáculos a governos autoritários[11].
Estratégia para, constitucionalmente, tornar um Estado menos democrático, um “constitucionalismo abusivo” pode, paulatinamente, consolidar políticas autoritárias. “Barreiras de pergaminho não bastam para impedir o desgaste da democracia por governos que agem sub-repticiamente”, lembra Adam Przeworski. Pouco a pouco, de modo paulatino e furtivo, muitos dos novos governos autoritários tomam certas medidas que, aparentemente democráticas e constitucionais, fortalecem a si próprios e destroem a oposição. “O efeito da sub-repção é obscurecer o perigo a longo prazo”[12].
Mussolini já sabia disso tudo. A história nos dá lições. É preciso levá-las a sério. E, alerta Adam Przeworski, “se a oposição não impedir que o governo tome uma série de medidas legais, será tarde demais para impedi-lo de tomar medidas ilegais”[13].
Marcel Mangili Laurindo é mestre em Sociologia Política e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
[1] DE FELICE, Renzo. Breve Storia del Fascismo. Milano: Mondadori, 2018, p. 22.
[2] SCHWARZENBERG, Claudio. Diritto e Giustizia nell’Italia Fascista. Milano: Mursia editore, 1977, p. 45.
[3] MUSIEDLAK, Didier. Alfredo Rocco et la question du pouvoir exécutif dans l’État fasciste. In: Alfredo Rocco: dalla crisi del parlamentarismo alla costruzione dello Stato nuovo. A cura di Emilio Gentile, Fulco Lanchester, Alessandra Tarquini. Roma: Carocci, 2010, p. 80-81.
[4] CARIELLO, Rafael. A Fronteira. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-fronteira/. Acesso em 09 dez 2020.
[5] CARIELLO, Rafael. A Fronteira. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-fronteira/. Acesso em 09 dez 2020.
[6] FREITAS, Ailton de. Governo vê contradição no TCU. Disponível em : https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/513495/noticia.html?sequence=1. Acesso em 09 dez 2020.
[7] COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 184-185.
[8] PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 201.
[9] PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 202-204.
[10] SCHMITT, Carl. Situação Intelectual do Sistema Parlamentar Atual. In: A Crise da Democracia Parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996, p. 16.
[11] PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 204-205.
[12] PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 205-217.
[13] PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 217.