Gênero sob ataque e a erosão da democracia
Na censura, na desinformação e no discurso de ódio, o ataque ao gênero converge na atuação de líderes e partidos de extrema direita. Alimentam-se reciprocamente. E esses ataques podem servir para ampliar a adesão popular a líderes cujas agendas são, em outros aspectos, antipopulares. Por isso é tão importante compreender a conexão atual entre a agenda neoliberal e a neoconservadora.
As agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual estão sob ataque, em reações de caráter transnacional aos direitos de mulheres e da população LGBTQ. Ao mesmo tempo, processos de desdemocratização têm sido diagnosticados em diferentes partes do mundo, em análises que apontam para o esgarçamento de instituições, práticas e valores democráticos. Mas qual é a relação entre o gênero e a erosão das democracias? Este artigo apresenta alguns caminhos possíveis para responder a essa questão.
Desde os anos 1990, o conceito de gênero se tornou parte das estratégias de grupos conservadores contra avanços produzidos pelos movimentos feministas. Na segunda década dos anos 2000, ele passou a circular pelas ruas nos cartazes carregados em protestos contra a chamada “ideologia de gênero”, que ocorreram em diversos países. Nessas campanhas, a agenda de gênero é denunciada por colocar em risco as crianças e as famílias. Já sabemos agora que redes transnacionais as promovem, por isso slogans e estratégias de ação são comuns, assim como a projeção dos feminismos como inimigos “estrangeiros”. Suas consequências variam, dependendo do equilíbrio de forças nos contextos nacionais. Estamos, afinal, falando de países tão distintos como Espanha, França, Polônia, Romênia e, na América Latina, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, México e Costa Rica.
O recurso à noção de “ideologia de gênero” tem permitido ampliar as alianças de oposição aos direitos humanos e mobilizar apoio a lideranças e partidos de direita e extrema direita. Seu caráter estratégico não contradiz sua condição de projeto político. Nesse projeto, há mais de conservadorismo. A justificação da censura, a transformação de adversários e de segmentos inteiros da população em inimigos, a recusa a direitos fundamentais e a normalização da violência e das desigualdades são elementos de políticas autoritárias que, a olhos nus, desmontam as bases frágeis de nossas democracias. E podem fazê-lo com base popular.
Como isso tem se dado? O combate ao gênero é justificado pela ideia de que é preciso proteger a infância e “a família”.
A denúncia da educação sexual como uma forma de corromper moralmente as crianças tem sido mobilizada em diversas partes do mundo, como discutimos no livro recém-lançado Gênero, neoconservadorismo e democracia (Boitempo, 2020, com Maria das Dores Campos Machado e Juan Vaggione). Dessa perspectiva, a maneira de educar meninas e meninos seria uma escolha de cada família, negando-se a ideia de que diretrizes comuns podem ser assumidas em uma sociedade de acordo com princípios de justiça, debatidos em ambientes democráticos. É, aliás, o que ganhou volume na América Latina, a partir de 2016, com o movimento “Con mis hijos no te metas”, criado no Peru.
A censura e o veto se tornaram recursos comuns para impedir o debate sobre gênero nas escolas. No Paraguai, a Resolução n. 29.664, de 2017, do Ministério da Educação e Ciência, proibiu a “difusão e uso de materiais impressos digitalmente, referentes à teoria e/ou ideologia de gênero, nas instituições de ensino”. No Peru, assim como na Colômbia, ministros da Educação perderam o cargo por pressão de grupos conservadores que reagiram a conteúdos educacionais para combater a homofobia e promover a educação sexual.
Saindo de nossa região, o caso da Polônia nos mostra até onde essa dinâmica pode nos levar. Nesse país, em 2020, mais de cem governos locais definiram suas cidades como “LGBT-free”, numa grave limitação da cidadania de uma parte da população.
No Brasil, a discussão sobre o Plano Nacional de Educação, na Câmara dos Deputados, em 2014, inaugurou os vetos ao “gênero” nos conteúdos educacionais. Desde então, multiplicaram-se os projetos de lei em nível municipal e estadual para proibir o debate sobre gênero nas escolas. A ativação dessa agenda por parlamentares religiosos e pelo movimento Escola Sem Partido é importante na capilaridade que esse ataque assumiu. Um levantamento realizado por João Vitor Martins, estudante de Ciência Política da UnB, mostrou que os projetos para colocar em prática o Escola Sem Partido nos estados são muito semelhantes, tendo inclusive a mesma estrutura. Na base disso estão estratégias políticas e jurídicas. Ao mesmo tempo, a maioria dos autores dos projetos apresentados para proibir a “ideologia de gênero” e/ou para efetivar o Escola Sem Partido é religiosa e, sobretudo, evangélica. O mesmo ocorre no Congresso Nacional, como mostrou a pesquisa de Raniery Parra Teixeira, também da UnB. Nesse caso, os evangélicos correspondem a 43,5% dos parlamentares envolvidos nas proposições que tratam da “ideologia de gênero”, seguidos por 24,2% que se identificam como católicos. Somados a outros que se apresentam como “cristãos”, 68,2% se definem como religiosos em registros oficiais, sites ou redes sociais.
A religião é importante nessas disputas. Os atores políticos conservadores ativam estratégias para impor a moralidade religiosa como moralidade pública. Isso ocorre em uma temporalidade específica, na qual a reação aos avanços produzidos por movimentos feministas e LGBTQ é um fator fundamental. Vale observar que políticos e partidos evangélicos, que são importantes nessa dinâmica, expandiram sua atuação com os processos de democratização na região. São atores desses regimes, isto é, se fizeram justamente em ambientes políticos mais plurais, mas têm, em alianças com outros setores conservadores, religiosos ou não, operado em detrimento do pluralismo ético, contribuindo para a erosão das democracias.
A tentativa de censurar debates e silenciar a crítica vai além das escolas. Os estudos de gênero também têm sido alvos importantes de ataques e de censura ao redor do mundo. Já foram interditados na Hungria e, nos últimos dias, a proibição foi proposta na Romênia. Vêm sofrendo limitações também na Polônia. No Brasil, há razões para acreditar que se busca atingir esses estudos retirando-lhes o apoio financiamento necessário à pesquisa científica. Isso ocorre em meio a um movimento mais amplo de asfixia da ciência no país, que tem sido denunciado desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, mostrando que a reação abrange, ao mesmo tempo, agendas igualitárias e o potencial crítico da ciência. Mas as investidas antecedem sua eleição. Em novembro de 2017, a chave do ataque ao gênero foi utilizada com o objetivo de impedir a palestra da filósofa Judith Butler em São Paulo, em campanha disparada pelas organizações católicas ultraconservadoras CitizenGo e HazteOir, baseadas na Espanha. O alvo direto era a crítica acadêmica, mas a estigmatização da pesquisadora foi fundamental, mostrando o papel da desinformação nessas campanhas. A demonstração passou longe do conflito de opiniões, com discursos de ódio e ameaças que se expressaram, por exemplo, na queima de um boneco que representava Butler.
Na censura, na desinformação e no discurso de ódio, o ataque ao gênero converge na atuação de líderes e partidos de extrema direita. Alimentam-se reciprocamente. E esses ataques podem servir para ampliar a adesão popular a líderes cujas agendas são, em outros aspectos, antipopulares. Por isso é tão importante compreender a conexão atual entre a agenda neoliberal e a neoconservadora.
A ascensão da extrema direita se dá em meio a processos econômicos que ampliaram a concentração de renda, restringiram garantias e tornaram amplos setores da população mais vulneráveis. Com a redução de investimentos sociais em nome da austeridade, a responsabilidade estatal e coletiva pelas mazelas humanas se reduz. Resta, assim, o imperativo de que cabe a cada um lidar com suas próprias mazelas e, a cada família, a “gestão” do bem-estar dos seus.
Como discuto em outros textos, ao defenderem “a família” das ameaças da “ideologia de gênero”, atores conservadores e de extrema direita procuram canalizar os afetos em contextos nos quais as inseguranças são reais, mas obviamente ultrapassam os deslocamentos nas práticas e na moral sexual – que, é claro, também existiram de maneira significativa nas décadas recentes. Não são esses que têm ampliado a vulnerabilidade das famílias e dos indivíduos, como sabemos. As restrições de direitos trabalhistas e previdenciários, do acesso à saúde e à educação ampliam as inseguranças e a possibilidade de cuidar das pessoas mais próximas. De maneira muito simples, eu diria que é preciso disputar as narrativas sobre o que torna as famílias mais vulneráveis e as vidas mais precárias. Sem isso, fica difícil conter a potencial adesão popular a políticos autoritários que acenam com a promessa da superação das inseguranças pela reconstrução da “ordem” moral.
Jair Bolsonaro expandiu sua imagem e suas alianças com o alinhamento à agenda contrária ao gênero muito antes de ser candidato à Presidência. Sua oposição estridente ao Programa Brasil Sem Homofobia, após audiência pública na Câmara dos Deputados, em 2010; ao Projeto de Lei Menino Bernardo (PL 7671/2010), que criminaliza castigos físicos impostos às crianças; e à decisão do STF em favor da união entre pessoas do mesmo sexo, de 2011, abriram-lhe um novo ciclo de visibilidade. Ao fazer comentários como o de que seria legítima a agressão física, por parte dos pais, quando percebem que seu filho é gay (na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 1º de dezembro de 2010), seu rechaço dos direitos humanos ganharia mais uma frente. O ataque à igualdade de gênero e à diversidade sexual se somou a suas agendas históricas de imposição da “ordem” em detrimento do Estado de direito – defesa da violência policial e da ampliação do acesso a armas, da ditadura de 1964 e da tortura. E, claro, facilitou sua aproximação a setores políticos religiosos conservadores, realizada com mais afinco a partir de 2016, quando já preparava sua candidatura à Presidência. Seu batismo pelo pastor Everaldo no Rio Jordão, em maio de 2016, é um episódio ilustrativo.
O ataque a direitos numa perspectiva de gênero abriu caminho para que Bolsonaro apresentasse ao eleitorado uma proposta de “ordem” feita à base da bala e da Bíblia, da violência direta e do radicalismo moral. Nela, adversários são transformados em inimigos que, no limite, podem ser eliminados. O “outro”, estigmatizado e reduzido em sua humanidade, justifica a violência. A igualdade fundamental é, assim, colocada em xeque na estratégia e no conteúdo dos projetos autoritários que dão materialidade ao governo atual.
Já eleito presidente, em seu curto discurso inaugural, em 1º de janeiro de 2019, Bolsonaro alçaria o combate à “ideologia de gênero” e ao “politicamente correto” a prioridades de seu governo. Como foi notado por muita gente, fez isso enquanto deixou de lado o combate à desigualdade, que figurou de um modo ou de outro no discurso de todos os seus antecessores. Acho importante conectar as duas coisas: trata-se de uma ordem social e moral que se efetiva na desigualdade.
O ataque ao gênero compõe a recusa mais ampla a políticas pautadas por valores igualitários e pelo respeito à diversidade. Ao mesmo tempo, é importante na recusa da política como alternativa, de um imaginário coletivo e democrático para a superação das inseguranças. O slogan “Con mis hijos no te metas”, já mencionado, corresponde nesse sentido à moralização de um imperativo prático: que as famílias deem conta de si, já que não virá da política e da responsabilidade coletiva a resposta para suas dificuldades. Mas corresponde também ao adensamento da família como realidade que resta, na medida em que o público se torna mais denso, e os laços sociais, mais atravessados pela desconfiança.
O esgarçamento do público mostra que duas das agendas fortes na eleição e no governo de Bolsonaro, a neoliberal e a moral, se encontram na aposta na família como unidade sobre a qual recaem as responsabilidades de que o Estado se esquiva e os controles a que se propõem. O espaço público aparece na forma da ameaça. Se não é capturado pelo privado, isto é, monetarizado e transformado em capital, é assunto de polícia. E isso nos conecta a uma terceira agenda, a da militarização. No processo atual de erosão da democracia, ela tem papel fundamental e se faz “de dentro”, tornando desnecessário “o golpe”, enquanto um cotidiano político de rupturas é normalizado. O direito à oposição política, por exemplo, está em risco na mesma medida em que o Estado de polícia se expande. Mas a militarização vai além disso. Das escolas à abordagem da política ambiental, do descaso com a vida da população indígena à resposta trágica à Covid-19, trata-se da instauração, política por política, declaração por declaração, de uma ordem que é, a cada dia, menos democrática. Não teria como desenvolver aqui a relação entre a militarização e a afirmação de uma masculinidade para a reafirmação dos valores patriarcais e heteronormativos, diante de décadas de avanços significativos produzidos pelos movimentos feministas e LGBTQ. Não é à toa que, nesse contexto, esses mesmos movimentos passam a fazer parte do rol de inimigos a serem combatidos.
O ataque ao gênero dispara e justifica a censura e a violência contra grupos identificados como desviantes. É estratégico para naturalizar desigualdades e responsabilizar as famílias e, nelas, as mulheres, enquanto se produzem sociedades da precariedade, marcadas pela vulnerabilização de amplos setores da população e pela repressão da contestação. Como esse ataque incide nos valores que circulam cotidianamente em uma sociedade, colabora também para a produção de preferências não democráticas, dando densidade social ao autoritarismo.
Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.