Auxílio emergencial levou comida para a mesa das famílias brasileiras
Além de escancarar a desigualdade da distribuição de renda no Brasil, a pandemia revelou, da forma mais cruel, como o Brasil trata os mais pobres. O benefício foi um alívio temporário, que precisa existir para garantir comida na mesa e dignidade para a população
Se vivemos um 2020 marcado pela disputa entre a ciência e o negacionismo, com intensa disseminação de fake news e a prioridade da economia em detrimento da vida, também podemos dizer que tivemos um ano de muita luta pela vida. A pandemia aprofundou a terrível desigualdade existente em nosso país. Mas também lançou luz para o flagelo social que os governos insistem em esconder, num faz de conta como se tudo isso não existisse. Finalizamos o ano lutando, com resistência e perseverança, para garantir os direitos sociais e as condições básicas de acesso das pessoas ao cuidado e à higiene.
Mal começamos o novo ano, ainda com a esperança de viver dias melhores, frente às pressões enfrentadas em 2020, e já vemos os índices de contaminação e morte subindo. E a promessa da tão esperada vacina se perdendo num discurso confuso, como tudo o que vem sendo propagado por este governo anti-humanitário. O mesmo tem acontecido com o auxílio emergencial. A negativa do governo em prorrogar o benefício é mais do que um exemplo de má administração: é um sinal inequívoco de que quem precisa continua à margem, sendo excluído, discriminado e, pior, abandonado para sucumbir à miséria e à fome.
Neste momento, início de fevereiro de 2021, Paulo Guedes, ministro da Economia, propõe um auxílio emergencial que estabelece uma política pública de sadismo e de deboche com a pandemia e com a necessidade de sobrevivência das pessoas. A proposta é garantir três parcelas de R$ 200 apenas para informais que não estejam no Programa Bolsa Família, desde que a pessoa participe de um curso de qualificação profissional: o Benefício de Inclusão Produtiva (BIP). Imaginem, no meio de uma pandemia, propor transferência de renda condicionada a um curso, sendo que o valor do benefício não cobre nem 30% de uma cesta básica.
Se a Campanha Renda Básica que Queremos, que reúne mais de 250 organizações da sociedade civil, teve um papel determinante na discussão da renda emergencial em 2020, materializando a lei que instituiu o auxílio emergencial, para este ano sua pressão é essencial, pois traz importante alerta para o conjunto do governo e do Congresso Nacional: a sociedade civil continua organizada, sim! E se a pandemia não acabou e, consequentemente, a economia não decolou, o auxílio emergencial não pode acabar.
É absolutamente inconsequente o governo brasileiro ter deixado de prorrogar o estado de calamidade porque começamos o ano de 2021 com uma média de mortes diárias acima de mil, por semanas seguidas. Dos 5.570 municípios brasileiros, pouco mais de 130 têm população maior que o total de mortes acumuladas até meados de fevereiro de 2021. Mesmo assim, o governo federal reduziu o auxílio emergencial por Medida Provisória em setembro de 2020 e o suspendeu em definitivo em dezembro. Se isso não for corrigido, teremos em pouquíssimo tempo uma situação de caos social e fome, além dos terríveis efeitos sobre o controle da pandemia.
Apesar de todas as dificuldades operacionais e políticas impostas pelo governo para dificultar o acesso e, depois, para permanecer na lista dos beneficiados, o auxílio garantiu a 68,2 milhões de pessoas pelo menos uma das cinco parcelas de R$ 600 ou R$ 1.200, no caso das mães-solo.
Levantamento feito pelo Instituto Data Favela, em parceria com o Instituto Locomotiva e a Central Única de Favelas (Cufa), revelou que o valor de R$ 600 foi usado por 96% dos beneficiários de favelas, em 72 cidades, na compra de alimentos. O mesmo estudo mostrou que 56% dos que receberam o auxílio usaram o valor para ajudar amigos e familiares a comprar comida ou a pagar dívidas.
O que o governo não enxerga é que atrás desses números existem pessoas, histórias e trajetórias de vida ainda mais marcadas pelos impactos e pelo distanciamento impostos pela pandemia. Os enredos se repetem, como em um filme triste, a exemplo da Fernanda, de São Paulo, que enfrenta desafios acumulados: a falta de emprego, a ausência do auxílio e o preconceito que exclui do trabalho quem já cruzou a fronteira dos 50 anos.
Ela, com essa idade, e o marido, aos 60, não têm trabalho e fazem malabarismo para esticar os 170 reais do bolsa-família. O marido faz diversos tratamentos de saúde e, agora, precisa desembolsar o valor da passagem para usar ônibus em São Paulo, já que a gratuidade para quem tem 60 anos foi cancelada recentemente. Ou mesmo a história de Nice, também de São Paulo. Mulher negra, mãe-solo de três filhos, vive de bicos que minguaram na mesma proporção em que a doença voltou a ceifar vidas.
Nas regiões periféricas, como o Jardim Miriam, na zona sul de São Paulo, ou na Capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, a situação é ainda mais grave. Nesses locais, organizações acabam distribuindo marmitas entre pessoas em situação de rua. Agora, com o fim do auxílio, moradores das regiões mais pobres dividem as filas com essas pessoas, em busca de alimentos para eles e para as famílias. As doações são fundamentais, mas não podem garantir dignidade e permanência na forma de benesse.
São centenas de Tânias, Marias, Tatianas e tantas outras mulheres que viram suas vidas e a de seus filhos profundamente impactadas pela pandemia. Falta um teto, não há comida nem a dignidade de ter um trabalho para prover a família. O empobrecimento da população é evidente e a fome dos mais pobres, entre os pobres, divide ainda mais este país historicamente tão desigual. Somos a nação dos pobres e dos ricos; dos que comem bem e dos que passam fome; dos negros e dos brancos. Somos uma sociedade dual.
Sem perspectiva de aquecimento da economia, sabemos que o desemprego deve crescer ainda mais, engrossando a lista dos 14 milhões de desempregados. Mesmo assim, há insistência em não revogar o absurdo teto de gastos, implantado no final de 2016 sob falsas promessas de reequilíbrio fiscal, mas que, na verdade, se tornou o principal instrumento de destruição de políticas de proteção social, como saúde, educação e assistência social.
Há uma outra face do auxílio que poucos falam ou reconhecem. O benefício conseguiu distribuir mais de R$ 275 bilhões. Além de ajudar a conter a extrema pobreza, agravada pela pandemia, esses recursos foram primordiais para aquecer a economia, estimulando o consumo das famílias.
Norte e Nordeste
Estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) confirma que o impacto no PIB no terceiro trimestre foi de 7,7% em comparação com os três meses anteriores. As regiões mais pobres do país, Norte e Nordeste, receberam juntas 43% dos recursos. As cinco primeiras parcelas contribuíram para elevar em 6,5% o PIB dos estados dessas regiões, segundo o estudo dos economistas Écio Costa, da UFPE, e Marcelo Freire, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Os gastos feitos foram, primordialmente, com: compra de alimentos (53%), pagamento de contas como água e luz (25%), outras despesas domésticas (16%) e remédios (1%). Isso foi possível porque o auxílio emergencial é um programa de transferência direta de renda, cujos recursos são aplicados pela população como preferir: na alimentação, no pagamento de contas e até na compra de bens.
Quando ocorreu a redução do auxílio e houve alta dos alimentos, o primeiro setor a sentir o impacto foi o varejo, com os supermercados registrando queda nas vendas de até 10%. Ou seja: o auxílio emergencial tem impacto direto na recuperação da economia, no mercado de trabalho, no PIB e em outros indicadores. Especialistas já apontam que sua ausência vai impactar diretamente setores que estavam crescendo, como o de construção e o de bens de consumo duráveis.
Além disso, sua interrupção deve empurrar para a pobreza extrema 27 milhões de brasileiros. O impacto é tão significativo na economia que, no fim do mês passado, o Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central, acenou com uma possível desaceleração da economia em 2021.
Renda permanente
O auxílio emergencial fez retomar muito fortemente o debate sobre uma renda básica permanente no país e escancarou, para quem se negava a ver, que as marcas da desigualdade brasileira são profundas. Sem dúvida, esses foram pontos muito positivos nesse contexto. Se conseguirmos puxar para o centro do debate a importância de valores, como dignidade, cidadania e justiça social, também precisamos trazer para o meio do debate político que a desigualdade econômica não pode se esconder atrás do teto dos gastos.
Se o Congresso Nacional está sob nova gestão, que venha então com o compromisso escancarado de ampliar o auxílio emergencial até o fim da pandemia, construindo um caminho para consolidação de uma renda básica permanente, universal e incondicional. Que tenha a coragem de desnudar que a desigualdade passa por grande concentração de renda, por uma tributação injusta, desproporcional até, e que os poucos que concentram a renda de muitos contribuem, no fim das contas, com migalhas para o povo brasileiro.
Paola Carvalho é diretora diretora de Relações Institucionais e Internacionais da Rede Brasileira de Renda Básica, uma das organizações que participa das Campanhas Renda Básica que Queremos e Auxílio Emergencial Até o fim da pandemia.