Barbárie, mea-culpa e as pessoas
O resultado das eleições de 2018 não pode ser desvinculado dos eventos que o precederam, pois foram eles que produziram as condições sociais e políticas que o tornaram possível
“Como é que a gente deixou o Bolsonaro ser eleito presidente?”, questionou Leandra Leal no programa Altas Horas, da Rede Globo, exibido em 27 de junho deste ano. Ao contrário do que se pode pensar, essa não é uma pergunta banal, já que, como a atriz também ressaltou, estamos falando sobre um homem que nunca fez questão de esconder o seu apreço por práticas que legitimam e (re)produzem o sofrimento humano, como o racismo, o machismo, a homofobia e a tortura. Basta lembrarmos a quem ele dedicou o seu voto, favorável à destituição golpista da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
Acredito que a nossa reflexão deve partir do fato de que nenhum acontecimento político emerge do nada ou se consolida por acaso, mas resulta de um ou mais eventos que abrem caminho para a sua emergência ou consolidação. No tocante ao bolsonarismo, parece óbvio que a sua construção, no contexto da dita Nova República, está diretamente relacionada ao projeto de ódio ao Partido dos Trabalhadores (PT) que se desenrolou no Brasil a partir de 2013. Mas esse projeto também não aconteceu de repente, como um ato isolado; ele ganhou forma e legitimidade através de uma sequência de eventos inter-relacionados: as manifestações de junho (2013); os protestos contra o governo federal (2014, 2015 e 2016); o Golpe que destituiu Dilma Rousseff (2016); e a produção espetacularizada do encarceramento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2017 e 2018). Cada um desses eventos teve um papel significativo na construção do cenário de violência, autoritarismo, desigualdade e morte que caracteriza o projeto de poder bolsonarista. Nesse sentido, penso que o resultado das eleições de 2018 não pode ser desvinculado dos eventos que o precederam, pois foram eles que produziram as condições sociais e políticas que o tornaram possível. A vitória de Bolsonaro foi – ao menos, naquele momento – a “cereja do bolo”.
Durante a campanha eleitoral de 2018, quando as pesquisas apontavam para o favoritismo de Bolsonaro, uma das coisas que mais me deixava inquieto era o modo convicto como algumas pessoas se mostravam indignadas e com medo do que estava por vir, mesmo tendo participado ativamente, por ação ou omissão, de eventos que possibilitaram a emergência daquele contexto. Eu me perguntava: onde estavam a indignação e o medo dessas pessoas quando, em um passado recente, elas escolheram ocupar os mesmos espaços político-ideológicos que Bolsonaro? O que as fez acreditar que o lado “certo” da História seria o lado em que estava um admirador da tortura e do Golpe Civil-Militar de 1964? Será que não viram que estavam sentadas à mesma mesa que esse homem?
Ao me fazer tais perguntas, eu me lembrei de quando uma dessas pessoas foi a um protesto em favor do golpe de 2016 e posou para uma foto, toda orgulhosa, com um cartaz que se referia à presidenta Dilma com palavras misóginas. Também me lembrei das pessoas que se incomodaram mais com o cuspe-resposta de Jean Wyllys em Bolsonaro do que com a homenagem que Bolsonaro fez a um torturador da Ditadura Civil-Militar na Câmara dos Deputados, sob a alegação de que “isso [o cuspe] só atrapalha”. Em relação ao período de “caça a Lula”, eu me lembrei das pessoas que celebraram a condução coercitiva e o encarceramento do ex-presidente, e que passaram a ver Sergio Moro como “herói nacional” – mesmo tendo acesso a informações que colocavam em xeque a legalidade do caso e a conduta imparcial do então juiz. Por fim, me lembrei de uma conversa que tive no primeiro semestre de 2018, quando uma pessoa declarou que o Brasil precisava do golpe de 2016 para “se movimentar”.

Devido ao caminhar da História e aos passos tímidos da Justiça, pode-se dizer que, atualmente, há uma aceitação mais expressiva no país sobre a ocorrência de um golpe parlamentar, em 2016, e sobre as ilegalidades que desencadearam a prisão de Lula, em 2018. E o que me assusta é a forma dissimulada como a maioria das pessoas que celebraram esses e outros eventos, intrinsecamente relacionados à construção do bolsonarismo, se eximem de qualquer responsabilidade pela tragédia política e social instaurada por Bolsonaro e seu obsceno projeto de poder. Nesse grupo, incluem-se também as pessoas que se deram conta da barbárie que o seu voto de 2018 ajudou a construir, mas que têm optado pelo conforto do silêncio, como forma de encobrir a sua participação direta em tudo que está acontecendo. Posso contar nos dedos de uma mão as pessoas conhecidas que têm se manifestado contra a necropolítica bolsonarista com o mesmo “patriotismo” e “desejo de justiça” com que se manifestaram contra a corrupção, em 2013, e em favor do golpe, em 2016, e da prisão de Lula, em 2018. Embora o arrependimento seja um passo importante na elaboração de uma nova “consciência” política, acredito que, quando honesto e genuíno, ele deve ser acompanhado por uma autocrítica, o que significa, basicamente, questionar e assumir a própria relação com a circunstância que o motivou. Se o voto em Bolsonaro foi a “cereja do bolo”, todos/as que, em algum momento, se sentaram à mesa com ele, participaram efetivamente da preparação do bolo que estamos comendo agora. Chega a ser cômico ver uma pessoa fingindo que sempre esteve do lado sensato e democrático da História, quando outras pessoas, inclusive ela mesma, sabem que isso não é verdade. É cômico e leviano.
A minha questão é que o verdadeiro arrependimento deve passar pela mea-culpa. Não se trata, obviamente, de um processo de expurgação ou redenção dos pecados, ou mesmo de uma autoflagelação pública, como a palavra talvez leve a pensar. O conceito de mea-culpa em que me apoio aqui se refere precisamente ao movimento de autocrítica que mencionei antes, ou seja, ao reconhecimento, por parte do sujeito arrependido, de sua responsabilidade na formação do contexto que o levou ao arrependimento. No caso do Bolsonarismo, é preciso reconhecer que quaisquer alianças políticas diretas ou indiretas com o atual presidente – antes, durante ou após a sua eleição – tiveram um peso significativo na escalada do seu projeto de ódio e destruição. Algumas pessoas tentam ainda se esquivar da mea-culpa transferindo a (ir)responsabilidade de suas ações ao PT, que supostamente lhes tirou a razão e, portanto, a capacidade de pensar. E pode ser que o movimento deva partir exatamente daí, já que a capacidade de pensar e refletir sobre as próprias ações, como defende Hannah Arendt, é o que nos atribui a condição de pessoas. De acordo com a filósofa, quando nos abstemos do pensamento, abdicamos dessa condição, e, ao fazê-lo, nos tornamos capazes das maiores atrocidades. Em suas palavras, extraídas do ensaio Questões sobre a filosofia moral (2003), “o pior mal é aquele cometido por ninguéns, isto é, por seres humanos que se recusam a ser pessoas” (grifos meus). Assim, aqueles/as que desejam construir uma outra visão política, mas que ainda culpam o PT por suas ações irrefletidas, devem começar pelas seguintes perguntas: como fui capaz de deixar um partido e as paixões construídas sobre ele me retirarem da condição de pessoa? Como fui capaz de, em nome de um delírio coletivo, me alinhar politicamente com um homem cujas visões política e de mundo flertam, desde sempre, com repertórios fascistas?
Eu quero acreditar que a vergonha seja o motivo principal que impede a maioria das pessoas de se engajar no processo de mea-culpa. Afinal, para quem se (re)descobre uma pessoa depois de abdicar dessa condição e que se percebe democrata após legitimar a ascensão de um governo autoritário, não é confortável admitir, nem para os outros nem para si mesmo/a, que esteve sentado/a ao lado de um fascista. Ora, antes mesmo de o fascismo se apresentar para nós de formas múltiplas, cotidianas e escancaradas, a filósofa Marcia Tiburi, hoje em exílio na França devido às ameaças que vinha sofrendo de eleitores bolsonaristas, já nos alertava sobre as complexidades que atravessam o diálogo com um sujeito fascista. Isso porque, como afirma em Como conversar com um fascista (2015), o sujeito fascista “não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser”, tornando-se, assim, “o suprassumo da personalidade autoritária”. Ao recusar a dimensão do outro, o sujeito fascista se converte em porta-voz da banalidade do mal: “é masoquista e um sádico, que não hesita em transformar o outro em mero objeto e goza ao vê-lo sofrer”. Portanto, o “diálogo” a ser construído com um fascista se justifica pela necessidade de confrontar radicalmente a sua visão de mundo através de informações e conhecimentos éticos. E não era bem isso que se observava nos “diálogos” que muitas pessoas tentaram construir com Bolsonaro. Ao contrário, o que se via eram pessoas repetindo, com entusiasmo, os mesmos atos de linguagem que ele certamente vociferava: O gigante acordou! (2013); Dilma vadia! e Fora Dilma! Fora PT! (2014, 2015 e 2016); Lula ladrão! (2017 e 2018); e, finalmente, Brasil acima de tudo, Deus acima de todos! (2018). Ou seja, eram “diálogos” não para confrontar o fascista e nem mesmo para conversar com ele; mas para falar como ele.

Uma vez mais, reitero que o meu conceito de mea-culpa não envolve pedido de perdão e/ou autoflagelação pública. É um movimento que pode acontecer em situações pontuais e na presença de sujeitos específicos – como familiares, amigos/as, colegas etc. – que testemunharam o percurso e as alianças obscuras da pessoa que se arrependeu. Aliás, esse movimento pode acontecer, inclusive, internamente, sem a participação de outras pessoas, desde que seja honesto e que o sujeito arrependido não recorra à boa e velha “neutralidade” em contextos que demandam posicionamento. Insistir na mea-culpa não significa, também, desconfiar das pessoas, em geral, ou me recusar a construir alianças com quem está disposto/a a refletir e mudar. É justamente por ainda acreditar nas pessoas e por desejar construir novas alianças que não abro mão do movimento da autocrítica, pois é ele que demonstrará o quão disposto o sujeito arrependido está a se engajar em novos diálogos para restituir a Democracia que ele contribuiu para esgotar. Em Mea-culpa: uma sociologia da desculpa e da reconciliação (1993), Nicholas Tavuchis apresenta uma compreensão da mea-culpa como enunciação “[da] existência e força de valores compartilhados que legitimam determinadas alianças sociais e demarcam fronteiras morais”. Apesar de não compreender a mea-culpa como pedido de perdão ou desculpa, acredito que a discussão proposta pelo sociólogo reconhece a força produtiva desse movimento na concepção de uma nova ordem, já que envolve “a organização social mais ampla em que os/as participantes estão enredados/as”. É nesse sentido que a mea-culpa pode se mover para além do indivíduo, configurando-se como um processo de rearticulação coletiva.
Algo me diz que o período eleitoral de 2022 será um momento-chave na construção coletiva de outra ordem política e social no Brasil. Se as projeções atuais se confirmarem, teremos Lula e Bolsonaro no segundo turno. Ainda que se admita que Lula cometeu os crimes pelos quais é acusado, não se pode negar que ele jamais atentou contra o Estado Democrático de Direito e que os seus governos jamais instituíram a violência como forma de fazer política e de conduzir as relações sociais no país. Além disso, foi durante os governos de Lula que experimentamos a conjuntura que mais se aproximou do que se entende por Estado de bem-estar social. Isso sem mencionar que é quase impossível imaginar Lula imitando uma pessoa acometida pela Covid-19, com crise de falta de ar, em qualquer estágio de uma pandemia em que milhares de pessoas têm lutado para continuar respirando – como fez Bolsonaro mais de uma vez.
Portanto, comparar Lula e Bolsonaro, sob qualquer prisma, é o mesmo que comparar cristal e lodo. É demonstrar-se incapaz de entender o que está em jogo e de delimitar fronteiras morais na política e na vida social. Mesmo assim, é certo que várias pessoas, que hoje se mostram arrependidas, não hesitarão em fazê-lo, abdicando-se, novamente, da condição de pessoas. E a minha hipótese é que uma parcela considerável desse grupo será constituída por aqueles/as que se esquivaram da mea-culpa e se refugiaram na suposta “neutralidade” do silêncio – talvez, por esperança de que, no último instante, algo pudesse acontecer e justificar o injustificável: as suas alianças com a barbárie. Se tivermos sorte, viveremos para ver.
Marco Túlio de Urzêda-Freitas é doutor em Estudos Linguísticos pela UFG