Berlusconi, continuação ou fim?
Os recordes de popularidade atribuídos pelos institutos de pesquisa ao novo governo italiano, dirigido pelo ex-comissário europeu Mario Monti, indicam grandes probabilidades de adoção de um severo plano de austeridade. Silvio Berlusconi teve de ceder, mas deixou uma marca profunda na sociedade italianaIgnacio Ramonet
Após mais de oito anos quase ininterruptos no poder, Silvio Berlusconi teve de deixar a presidência do conselho italiano. Mas ele segue carreira política como deputado e continua sendo o líder de um dos dois principais partidos do país, o Popolo della Libertà, fundado há dezoito anos com o nome de Forza Italia. “Volto a trabalhar como empreendedor, mas de um partido político. Precisamos reorganizar tudo”, declarou no dia 16 de novembro, depois de renunciar. Incontornável no sistema parlamentar bicameral italiano, pois é aliado da Liga do Norte, que passou para a oposição, ele conta com maioria relativa na Câmara e maioria absoluta no Senado. Assim, pode manter uma espada de Dâmocles sobre o “governo técnico” de Mario Monti até que ocorram novas eleições (no mais tardar, durante a primavera [do Hemisfério Norte] de 2013).
“Il Cavaliere” não exclui voltar aos negócios, em caso de alta impopularidade do governo Monti, encarregado de impor “sacrifícios” aos italianos, especialmente mudanças no direito trabalhista e no sistema de aposentadoria, aumento de impostos, aceleração das privatizações e desregulamentação de diversos setores e profissões.
O paradoxo é que Berlusconi – bilionário, a segunda maior fortuna da península – tenha saído não por uma derrota eleitoral, mas sob a pressão dos mercados financeiros e instituições europeias e internacionais. Aquele que, na Itália, concentrou todos os poderes – midiático, político e econômico – acabou impotente diante do poder tecnofinanceiro: a pressão especulativa dos mercados levou a níveis insuportáveis as taxas de juros dos títulos do governo e os famosos spreads,1 no momento em que a dívida pública, a quarta do mundo, chegou a 1,9 trilhão de euros. A legitimidade democrática – mesmo sendo aquela encarnada pelo que o filósofo Michele Prospero descreve como “uma comédia da política”2 – foi varrida por outra legitimidade supranacional, que tomou o caráter de fatum.
“Grande obra de normalização”
É verdade que a cota de popularidade de Berlusconi caiu para 22% após o enfraquecimento de sua maioria, em decorrência da ruptura com Gianfranco Fini no verão italiano de 2010, agravada pelas derrotas nas eleições municipais e referendos da primavera [do Hemisfério Norte] passada. Isso sem contar os repetidos processos, as polêmicas com os magistrados, o abandono do patronato italiano e principalmente a exibição de suas escapadas sexuais (o agora famoso “bunga bunga”), que afastaram seu eleitorado católico e feminino.
Em compensação, Berlusconi teve suficientes quarenta anos para marcar os espíritos e promover o nascimento do “berlusconismo”. No contexto dos dramáticos “anos de chumbo”, lançou a primeira grande rede de televisão comercial, dando impulso ao entretenimento no imaginário dos italianos. Depois criou uma grande empresa midiática, uma campeã nacional, a Fininvest, que comanda três canais de televisão nacionais, uma empresa de cinema, o clube de futebol Milan e uma grande editora. Ao entrar na política, ele se autoproclamou “PDG [presidente-diretor-geral] da Itália”, ou “presidente-empreendedor”. O berlusconismo triunfou como uma nova ideologia, pós-democrata-cristã e pós-comunista, substituindo as dos dois grandes partidos que estruturavam a vida política e intelectual italiana desde o pós-guerra.
Grão-mestre das cerimônias televisuais, Berlusconi governou pela emoção. Fundindo vida pública e privada, identificou a existência cotidiana do chefe na história da Itália: em 2001, enviou a todos os lares italianos uma fotonovela colorida de 120 páginas, intitulada Una storia italiana [Uma história italiana], contando sua vida. Os eleitores-espectadores, presos num relacionamento especular e espetacular, foram chamados a segui-lo como se ele fosse o herói de uma novela ou série de TV. Em um panóptico invertido, a população foi convidada ao monitoramento contínuo de seu líder, num referendo diário e fictício: “A favor ou contra Berlusconi”, “O me o loro” [Ou eu ou eles]. A esse preço, “Il Cavaliere” quebrou recordes de longevidade no executivo do pós-guerra, permanecendo no poder por mais de 3.300 dias.
Mas foi no plano cultural, até antropológico, que Berlusconi ganhou suas vitórias mais estrondosas, incutindo no imaginário coletivo dos italianos os códigos culturais da “neotelevisão”,3 os slogans do marketing e as miragens consumistas. Como resumiu o cantor Giorgio Gaber, “eu não temo Berlusconi em si, mas Berlusconi em mim”. O berlusconismo instituiu uma direção político-intelectual da sociedade, uma hegemonia do entretenimento, do otimismo e do hedonismo consumista. Pier Paolo Pasolini viu se aproximar essa “grande obra de normalização” que impôs “modelos desejados pela classe industrial, que já não se contenta com um ‘homem que consome’, mas afirma que outras ideologias que não a do consumo são inaceitáveis”.4
Não é à toa que Berlusconi incorporou essa “cultura” na conjuntura dos anos 1990-2000. Em resposta à crise da política, ele assume uma representação e fecha o imaginário popular na “febre do consumo”, a “febre da obediência” descrita por Pasolini. Tendo cedido a isso, os italianos – incluindo os partidos de esquerda e os sindicatos – agora têm de aceitar o controle direto do poder pelos tecnocratas e banqueiros. O show acabou.
Ignacio Ramonet é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.