Avanço das big techs e crise no modelo de negócio do jornalismo
Falta de regulamentação das plataformas digitais agrava desintegração do jornalismo no Brasil. Veja no novo artigo do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
Novos tempos, velhos problemas. O mundo digital alterou significativamente a forma de produção e de circulação da informação, entretanto o fantasma do monopólio ainda se mantém como ameaça à real democratização da comunicação. Emissoras de televisão e jornais impressos de circulação nacional sempre permaneceram nas mãos de poucas empresas no Brasil e, atualmente, os maiores meios de circulação digital de informação, as chamadas big techs ou “gigantes de tecnologia”, cabem nos dedos de uma só mão – e isso em escala global.
Pesquisa publicada em 2023 pelo Instituto Reuters, realizada em parceria com a Universidade de Oxford, aponta que entre as pessoas que consomem notícias online em todo o mundo, 30% delas o fazem prioritariamente pelas redes sociais e 22% por meio do acesso direto aos sites de veículos jornalísticos. Ainda segundo o relatório, o restante divide-se entre 25% que fazem pesquisa direta, 9% que consomem as notícias por alertas de mensagem de celular, 8% por agregadores de notícias e 5% diretamente por e-mail.
Em números de usuários, chegamos a um impressionante oligopólio global. Num planeta com população estimada de 8 bilhões de pessoas, 4,7 bilhões são usuárias ativas de redes sociais, o que representa por volta de 59% da população mundial. Os dados são do Digital 2023: Global Overview Report (Kepios).
A mesma pesquisa aponta que 3 bilhões utilizam o Facebook; 2,5 bilhões, o YouTube; 2 bilhões, o Instagram, o mesmo número dos que se comunicam via WhatsApp. O TikTok ostenta o número de 1,1 bilhão de usuários e o X (antigo Twitter), 600 milhões. E, vale lembrar, Facebook, Instagram e WhatsApp são todos de uma só empresa, o grupo Meta.
Ainda que essas plataformas não sejam, em essência, produtoras de conteúdos informacionais, seria ingenuidade acreditar que pouco interferem na sua circulação e consequente produção de sentido. Se o “meio é a mensagem”, para lembrarmos o teórico Marshall McLuhan (ainda se fala dele?), certamente essa absurda concentração em poucos grupos privados são um grande entrave à democratização da comunicação e à sua pluralidade e diversidade.
Com uma mão tira, com a outra “dá”…
No novo contexto de circulação e consumo de informação por meio de plataformas digitais, instaurou-se uma crise no modelo de negócio do jornalismo tradicional. Enxugamento de redações, defendido pelas empresas como a “otimização” de seus funcionários – que, sob o pretexto de um jornalismo multiplataforma, acabam assumindo múltiplas tarefas –, tornou-se regra mesmo em grandes grupos empresariais de comunicação diante da redução de faturamento via vendas de exemplares, assinaturas digitais e recebimento de verbas publicitárias.
No entanto, ao passo que as gigantes da tecnologia foram responsáveis por essa alteração no ecossistema econômico das empresas jornalísticas, atualmente elas também são fontes de recursos para as mesmas, por meio de programas, parcerias, patrocínios de eventos e outros tipos de apoio.
Uma pesquisa realizada por Charis Papaevangelou, vinculado à Universidade de Amsterdam, Holanda, mostrou que, entre 2017 e 2022, Google e Facebook financiaram mais de 6,7 mil veículos jornalísticos e entidades do setor em todo o mundo. O total investido nesses programas chega a US$ 900 milhões, segundo declarações públicas de executivos do Google e da Meta, colhidas pelo pesquisador (Funding Intermediaries: Google and Facebook’s Strategy to Capture Journalism). Segundo o mesmo levantamento, pelo menos 424 veículos e organizações jornalísticas, de todas as regiões do Brasil, já receberam algum tipo de financiamento das corporações de tecnologia.
Papaevangelou mostrou também que grande parte do dinheiro não foi para veículos jornalísticos, mas para programas e associações intermediárias. Para o pesquisador, os dados deixam claro o esforço das big techs em “capturar e plataformizar a indústria do jornalismo o máximo de níveis possível”.
Perante esse cenário, duas alternativas ganham relevo: a primeira, o debate sobre a remuneração sobre conteúdo jornalístico que circula pelas plataformas digitais (e com o qual elas lucram); a segunda, a criação de políticas públicas de fomento à produção jornalística plural e descentralizada.
Cobrar das gigantes de tecnologia
No ano de 2020, iniciou-se a tentativa do Legislativo brasileiro de regular as plataformas digitais, com a apresentação do Projeto de Lei (PL) 2630, chamado “Lei das Fake News”, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e relatoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP). Em 9 de abril deste ano, entretanto, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira sinalizou que um novo projeto de lei deve ser formulado e apresentado para a Casa, o que gerou críticas por parte da sociedade civil, que aponta que a medida desconsidera todo o debate que foi acumulado nos últimos anos.
Do texto inicial do PL 2630, a parte que previa alguma contrapartida financeira por parte das gigantes de tecnologia sobre o conteúdo jornalístico acabou sendo remetida a outro projeto de lei, o PL 2370, de autoria de Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que fora apresentado em 2019, e que versa sobre direitos autorais. Foi uma tentativa diante do forte lobby das plataformas digitais, contrárias a qualquer espécie de contrapartida financeira, de tentar fazer com que os projetos de lei pudessem seguir a tramitação dentro das casas legislativas.
Se há um consenso sobre a necessidade das gigantes tecnológicas arcarem com alguma contrapartida financeira sobre o uso do conteúdo jornalístico, a forma como isso deve acontecer e, mais especificamente, como deve ser feita essa negociação e a consequente distribuição de recursos segue em discussão mesmo entre organizações da sociedade civil voltadas ao tema. Algumas delas defendem inclusive que a remuneração sobre o uso do conteúdo jornalístico seja discutida em um projeto de lei específico, pois esse debate não se confundiria nem com o de transparência na moderação de conteúdos (objeto do PL 2630) nem com o de direitos autorais (objeto do PL 2370).
Marina Pita, coordenadora-geral de Liberdade de Expressão e Combate à Desinformação da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), atesta a necessidade de criar mecanismos para que as grandes plataformas digitais, que sugam a maior parte dos recursos publicitários e aproveitam os conteúdos produzidos por terceiros, contribuam financeiramente para a existência do jornalismo de interesse público, uma vez que este é relevante socialmente.
Segundo ela, “a elaboração desse mecanismo tem sido feita em diálogo com entidades da sociedade civil e de trabalhadores do jornalismo e empresas do jornalismo. São exploradas três frentes: a primeira de criação de uma Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico (Cide), a segunda de elaboração de uma regulação que garanta o direito de negociação das empresas jornalísticas por trechos do conteúdo, a exemplo do que foi feito na Austrália, e a terceira pelo reconhecimento de um direito autoral dos titulares de conteúdos jornalísticos”, completa a coordenadora.
E a verba do governo?
Colocar as palavras “governo”, “financiamento” e “jornalismo independente” numa mesma frase instaura, obrigatoriamente, uma contradição de termos. Cabe ao governo, entretanto, formular políticas públicas de fomento ao jornalismo e à democratização da comunicação, além de estabelecer critérios republicanos para o uso da verba publicitária que tem à disposição.
Ramênia Vieira, da coordenação executiva do Coletivo Intervozes, reforça a necessidade de que o governo tenha uma organização do orçamento de publicidade “que saiba fazer uma distribuição com critérios melhores da verba em relação não só a alcance que aquela mídia tem, mas também de pensar na questão da regionalização, fortalecimento de jornais nos chamados desertos de notícias, além de uma mídia diversa e plural. Essa redistribuição visaria fortalecer a pluralidade e a diversidade de ideias e a qualidade jornalística”.
O fomento da diversidade e do jornalismo de interesse público também é uma preocupação levantada por Maia Fortes, secretária-executiva da Associação de Jornalismo Digital (Ajor), que reúne trinta organizações com o objetivo de fortalecer o jornalismo digital. Para ela, indagada sobre políticas públicas com esse objetivo, seria possível a “criação de um fundo que tenha como objetivo o financiamento do jornalismo de interesse público por meio de iniciativas como, por exemplo, editais elaborados mediante um modelo de governança participativo, que permita a atuação da sociedade civil em conjunto com o Estado e a adoção de critérios de diversidade e regionalização na destinação dos recursos”.
Maia Fortes defende também que é necessário criar uma política pública de inovação voltada para o jornalismo, que potencialize o campo e democratize o acesso a tecnologias, bem como atualize as normativas e o entendimento dos governos federal, estaduais e municipais sobre a destinação das verbas publicitárias.
Sobre a criação de programas de incentivo e capacitação voltados ao fortalecimento do jornalismo, Marina Pita, da Secom, adianta que “estão sendo realizadas políticas para suporte às necessidades tecnológicas do jornalismo e de apoio a empreendedores, especialmente por meio do Grupo de Trabalho Interministerial da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e do Ministério da Igualdade Racial. O projeto ainda está em fase de discussão interna, mas seria uma Incubadora de Tecnologia para Mídias Negras”, cita como exemplo.
Mas como fomentar a produção jornalística plural?
O desafio que se coloca é como apoiar o jornalismo plural e diverso sem alimentar o monstro da desinformação. Sob o comando do ex-presidente Jair Bolsonaro, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República foi alvo de investigação sobre distribuição de verbas publicitárias para sites produtores de fake news, de jogo do bicho, infantis, em russo e para um canal do YouTube que promovia o presidente da República, conforme revelado por reportagem da Folha de S.Paulo em 2020.
A solução para evitar a instrumentalização das verbas publicitárias por parte de governos de plantão, assim como evitar que sejam financiadores de produções que disseminam desinformação, passa pelo estabelecimento de critérios transparentes, como apontam Ramênia Vieira, do Intervozes, e Maia Fortes, da Ajor.
Em 2024, já sob o governo Lula, a Secom lançou a Instrução Normativa 4/24 com o objetivo de coibir a monetização por meio de verbas públicas de sites, aplicativos e produtores de conteúdo na internet que infrinjam a legislação nacional, incluindo temas como pedofilia, exposição inadequada de crianças e adolescentes, incentivo ao suicídio, racismo e jogos ilegais.
Dentro dos objetivos apresentados pela Instrução Normativa, há o da promoção de um “ecossistema informacional íntegro”, o de “promover a presença de veículos informativos voltados à cobertura de temas de interesse de grupos historicamente vulnerabilizados no portfólio de redes de anúncio” e o de “incentivar boas práticas de transparência na produção e divulgação de conteúdo publicitário e na produção e disseminação de conteúdos informativos”, conforme elencado no texto.
“Consideramos que existem iniciativas importantes de desenvolvimento de marcadores para reconhecimento e valorização do jornalismo responsável, ético e de interesse público, a exemplo do Trust Project e News Guard”, pondera Marina Pita, para quem “certamente a transparência de quem faz e quem controla os meios de comunicação é um elemento importante para determinar um produtor de conteúdo jornalístico legítimo”. Marina ressalta que o critério transparência foi incluído nos requisitos para credenciamento de agentes de veiculação de publicidade que potencialmente podem receber recursos do Sistema de Comunicação do Executivo Federal.
O desenvolvimento e a adoção de marcadores para identificação dos produtores de conteúdo comprometidos com as melhores práticas, entretanto, ainda são incipientes. “Porém, esta é uma área em que o Estado pode ser um incentivador, mas é preciso que as iniciativas sejam encabeçadas pela sociedade civil, pelo setor privado e pela academia”, conclui a coordenadora-geral de liberdade de expressão e combate à desinformação da Secom.
Por fim, Maia Fortes, da Ajor, é enfática ao ressaltar “que uma política pública para o setor, qualquer que seja, deve fomentar o jornalismo de interesse público, ou seja, aquele comprometido com a democracia, o exercício da cidadania e os direitos humanos”.
Rodolfo Vianna é jornalista, mestre e doutor em Linguística Aplicada e Estudos de Linguagem. É associado ao Coletivo Intervozes.