BNDES: o reforço à dinâmica dos negócios
Priorizar a agropecuária, a indústria extrativista e a metalurgia é uma opção de desenvolvimento. E as razões que levam o Brasil a permanecer ancorado nesses setores intensivos em natureza são tão contundentes quanto a necessidade de superá-las
A estrutura produtiva do país está fragilizada. E existem pelo menos dois responsáveis por isso: a liberalização econômica, que vem na esteira das políticas de ajuste, e a busca pela inserção competitiva como resposta à globalização. Ambas beneficiam a produção intensiva em natureza1.
Como decorrência desse processo, assiste-se a uma regulação pública de baixa intensidade, que abre mão da indução de uma diversificação produtiva maior e se limita, quando muito, a minimizar impactos e/ou gerar compensações sociais e ambientais.
Ao mesmo tempo, a abordagem estrutural da economia, que remonta à escola cepalina e às proposições desenvolvimentistas, foi perdida de vista – não por ironia – pelas injunções do mercado. A hegemonia dos preceitos liberais nesta virada de século empobreceu o debate, e o assim chamado “pensamento social brasileiro” ficou órfão, sendo substituído pelo tecnicismo de gabinete.
A crescente demanda por commodities e a iminência de o etanol se transformar em mais uma delas tornam esse processo aparentemente incontornável e incontestável. Principalmente se considerarmos que o capital financeiro internacional se desloca em direção a investimentos produtivos com o objetivo de controlar certas cadeias produtivas e, desse modo, não apenas lastreia suas posições como amplia sua margem especulativa. Esse movimento, aliás, vem sendo apontado como uma das principais razões da recente alta dos alimentos. Como se vê, a relação centro-periferia se atualiza e se aprofunda.
A atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – o BNDES – corrobora esse estado de coisas. Desde o final dos anos 1980, o banco se alinhou ao processo de liberalização, capitaneando a onda de privatizações e, mais recentemente, desembolsando volumosos financiamentos – sem estabelecer contrapartidas sociais e ambientais – para os setores intensivos em natureza, que poderiam obter esse tipo de recurso no mercado. Assim, o crédito subsidiado operado pelo BNDES, que poderia ser um fabuloso agente indutor de outro desenvolvimento, se ajusta passivamente à dinâmica dos negócios.
Centro de formulação de modelos, uma espécie de think tank do Estado brasileiro, o banco possui um papel proeminente na orientação do desenvolvimento nacional, operando um volume de recursos jamais visto. Nos últimos dez anos o orçamento do BNDES mais que quadruplicou, passando de R$ 18 bilhões em 1999 para uma projeção superior a R$ 80 bilhões em 2008.
Embora sua atual gestão sinalize ser favorável a uma política industrial e a salvaguardas socioambientais nos financiamentos, o direcionamento de mais da metade dos desembolsos totais de 2007 para a agropecuária e a indústria – extrativa e de transformação – sugere um persistente privilégio ao setor intensivo em natureza.
Em texto recente, o diretor de Planejamento do BNDES, João Carlos Ferraz, fez referência a um estudo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) que compara um conjunto de países quanto à estrutura produtiva, ao esforço de inovação e ao desempenho da produtividade e das exportações2. O relatório revela que os países que avançaram economicamente possuem estrutura industrial diversificada, voltada para atividades econômicas intensivas em tecnologia. O Brasil aparece no grupo das nações onde prevalecem atividades econômicas intensivas em recursos naturais, com baixo nível de diversificação e inovação. Segundo Ferraz, isso seria um fator central para a persistência, em economias como a brasileira, de um crescimento relativo menor da renda e da produtividade, fazendo prevalecer a geração de ocupações informais, precárias e de baixa qualificação.
Sob a perspectiva de mudar esse cenário, o próprio Ferraz conclui que existe um espaço importante para a atuação de bancos de desenvolvimento – como o BNDES – especialmente no financiamento da política industrial, tecnológica e de comércio exterior. Cabe, então, indagarmos se há algum movimento do BNDES nessa direção. A resposta pode vir da análise dos montantes desembolsados pelo banco para cada área.
Geração de renda e demanda por consumo
Quanto aos setores intensivos em natureza, observa-se não só a centralidade desses desembolsos, mas um crescimento que tende a se acentuar, particularmente devido à tendência de aumento dos investimentos nas áreas de mineração, papel e celulose e etanol – e, sobre este último, já se tem a informação de que o volume aprovado e contratado para este ano é mais que o triplo do desembolsado em 2007.
Já quanto aos investimentos destinados aos setores intensivos em trabalho, verificamos que eles não são apenas marginais como também sofrem uma tendência ao descenso. E sabemos que, dentro de uma estratégia que vise o fortalecimento do mercado interno, a geração de renda e de demanda por consumo é essencial. Além disso, embora se verifique uma melhora significativa nos desembolsos para o setor de intensivos em engenharia e tecnologia, essa participação segue frágil e insuficiente, sem ultrapassar o patamar de 13% dos desembolsos nas três áreas analisadas (dados de 2007), ainda mais levando em consideração a desarticulação do setor após a abertura dos anos 1990.
Comparando os dados do ano passado com os de 2003 (veja tabela abaixo), podemos inferir que o BNDES tem feito muito pouco para fomentar a diversificação produtiva e a inovação técnica. Restaria perguntar: como fazer, então, coincidir a estratégia enunciada e a política operacional do banco? Está mais do que na hora de o BNDES se abrir ao debate público sobre seu papel no desenvolvimento do país. Sua atuação vem sendo questionada por um conjunto de organizações e movimentos sociais que defende a importância de o Brasil possuir um banco público de desenvolvimento. Recentemente, esses atores políticos constituíram a “Plataforma BNDES”3, uma proposta de reorientação das políticas do banco em favor de um desenvolvimento capaz de superar desigualdades e promover direitos na sociedade brasileira. Ela defende, por exemplo, outro modelo de desenvolvimento rural, centrado na agregação de valor à agricultura familiar e camponesa, grandes responsáveis pela produção de alimentos para o mercado brasileiro. Levanta também questões como a descentralização do crédito em prol da diversificação produtiva, o financiamento da inovação técnica – em particular no que se refere à energia e biotecnologia –, o fortalecimento da participação pública na gestão e o fomento de infra-estruturas sociais, como no caso do saneamento. Argumenta ainda em favor de uma integração regional sul-americana, voltada para o fortalecimento das economias nacionais e que beneficie o comércio entre os países, sem priorizar o modelo primário-exportador.
Neste momento, a Plataforma BNDES busca um comprometimento do banco, principal fonte de recursos para o setor, na construção de parâmetros e critérios para o financiamento do etanol, contribuindo para estabelecer, de fato, uma política pública para o produto. Assim como outras monoculturas, esta também tem de enfrentar de forma séria e conseqüente os riscos do desmatamento, das queimadas, do esgotamento de recursos hídricos, da exploração sem peias do trabalho, da especialização produtiva e do deslocamento da produção de alimentos.
Sem dúvida, o debate sobre o papel do BNDES está inscrito em uma discussão maior sobre qual é o projeto de país que queremos e vai além dos cálculos a curto prazo de nossa classe política. Este é um debate que precisa ser ampliado, envolvendo o conjunto das forças sociais, as universidades, a imprensa, os movimentos sociais, as organizações de direitos e as centrais sindicais. A tarefa é desafiadora, mas abdicar da construção coletiva de um projeto para o país significa mantê-lo estruturalmente incapaz de responder aos anseios básicos de seu povo.
*João Roberto Lopes Pinto é cientista político, coordenador do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e professor da PUC-RJ.