Bolívia, na contracorrente da América do Sul
Enquanto as forças conservadoras avançam no continente sul-americano, um país permanece ancorado à esquerda: a Bolívia de Evo Morales, onde a contestação se concentra cada vez mais no seio do próprio campo político do chefe de Estado. A história singular do partido presidencial, o Movimiento al Socialismo, esclarece essa situação surpreendente
“Mandar obedeciendo”: pronunciada por Evo Morales em 21 de janeiro de 2006, às vésperas de sua primeira posse presidencial, essa máxima emprestada do subcomandante Marcos1 simbolizava o compromisso do líder indígena e sindicalista boliviano de governar com os movimentos sociais que o tinham levado ao poder. Sua vitória, obtida com 53,7% dos votos em 18 de dezembro de 2005, aparecia como a tradução eleitoral de vários anos de intensas mobilizações antiliberais. Concebido como um instrumento político a serviço das organizações populares, seu partido, o Movimiento al Socialismo (MAS), incorporava então a vontade de fazer política de uma maneira diferente.
Depois de mais de uma década, no entanto, essa ferramenta democrática parece ter se transformado em uma máquina de guerra dedicada principalmente a garantir a permanência de Morales à frente do Estado, como evidenciado pela mobilização do partido em favor de sua reeleição. No entanto, esse desenvolvimento não pode ser atribuído unicamente às ambições de seu líder, sob pena de esconder um problema mais profundo: a dificuldade estrutural que o MAS enfrenta para fazer a ligação entre um governo que luta contra as vicissitudes do poder e as organizações sociais sempre inclinadas – apesar de sua crescente institucionalização – a protestar nas ruas para defender os interesses de suas bases.
Uma federação de organizações
Nascido em 1999 por iniciativa dos sindicatos de cultivadores de coca, os cocaleros da região de Cochabamba, da qual o próprio Morales é originário, o MAS pretendia enviar líderes sindicais e indígenas para as bancadas do Congresso, permitindo que as organizações de base escolhessem elas próprias seus candidatos. Mais do que um partido no sentido clássico do termo, o MAS se parecia em seus primórdios com uma federação de organizações sociais em que se acotovelavam sindicatos de trabalhadores e de camponeses, comitês locais e comunidades indígenas – uma garantia de representatividade das classes populares em um país onde as várias áreas da vida social estavam sujeitas a um quadro organizacional muito denso. Essa estruturação particular desemboca no que foi batizado de “democracia corporativista”:2 ao agregar um conjunto heterogêneo de organizações, o MAS deve não apenas se encarregar, como qualquer partido, da mobilização eleitoral de seus membros, mas também assumir uma função mediadora entre os movimentos cada vez mais numerosos que o compõem.
Depois da vitória de 2005, o partido, tendo cedido toda iniciativa estritamente política ao governo, ficou praticamente reduzido a essa função mediadora entre organizações que se tornaram rivais, no que se refere tanto às investiduras eleitorais quanto aos cargos internos. Nesse contexto, a lealdade desses componentes ao MAS depende, em grande parte, do seu grau de integração ao organograma partidário. No MAS, as pessoas pertencem de início à própria organização – sindical, comunitária ou local – e depois ao partido. Portanto, na Bolívia, não é raro ver a mesma entidade mostrar apoio ao governo ao mesmo tempo que recorre a mobilizações coletivas para defender seus interesses setoriais em âmbito local ou nacional.
Confrontado com um elevado conflito social, o presidente Morales pôde constatar por muitas vezes que esse problema foi em parte alimentado por organizações que gravitam em sua órbita. A Federação Nacional das Cooperativas Mineiras da Bolívia (Fencomin), aliada do MAS desde 2005, oferece uma ilustração esclarecedora disso. Ao mesmo tempo que têm fortes ligações no seio do partido, do Congresso e do Executivo – controlavam já em 2006 o estratégico Ministério das Minas –, os cooperativistas mineiros por si sós estiveram na origem de duas das crises políticas mais sérias da era Morales: primeiro, os confrontos entre mineiros cooperativistas e mineiros assalariados do Estado em Huanuni, em 5 e 6 de outubro de 2006, que resultaram em dezesseis mortes; em seguida, o assassinato de um vice-ministro, Rodolfo Illanes, durante um bloqueio numa estrada na localidade de Panduro, em agosto de 2016, quando as cooperativas se opuseram a um projeto de lei que visava regulamentar com mais rigor sua atividade. Essa situação paradoxal ocorre com outras organizações afiliadas ao MAS, que não abandonaram os protestos de rua como um meio legítimo de ação, embora “seu” partido esteja no poder. Esse dispositivo revela suas falhas quando se trata de desarmar dinâmicas de conflito, já que faltam quadros de deliberação interna.
Num primeiro momento, o MAS conseguiu conter as tensões entre as organizações sociais. Os primeiros anos do governo foram uma época de conquista do aparelho estatal para os sindicatos, que ganharam novas posições institucionais, com força parlamentar e funcionários públicos. O contexto político opunha o lado governamental a uma direita neoliberal decidida a travar o funcionamento da Assembleia Constituinte prometida por Morales. Até 2009, o MAS conseguiu forjar sob sua bandeira uma unidade popular sem precedentes desde as lutas dos anos 1970 e 1980 contra as ditaduras militares. Mas os equilíbrios foram perturbados após a adoção por referendo de uma nova Constituição, em 7 de dezembro de 2009. Enquanto a direita sofreu uma derrota esmagadora nas urnas, as diferenças inerentes ao campo popular ressurgiram.
Repressão contra uma marcha indígena
Entre os conflitos decorrentes dessa reconfiguração está o que opõe desde 2011 os cocalicultores de Cochabamba aos indígenas do Território Indígena e do Parque Nacional Isiboro-Sécure (Tipnis), na região de Beni. Em 2008, o governo relançou um projeto de estrada que visava à abertura do acesso a esse território amazônico, próximo à área denominada “Trópico de Cochabamba”, onde estão instalados os cocaleros. Embora o trabalho estivesse previsto para começar em 2010, as comunidades indígenas locais, apoiadas pela Confederação de Povos Indígenas da Bolívia (Cidob), expressaram sua oposição. Além das consequências ambientais, elas temiam uma intensificação da atividade econômica dos cocaleros, que significava uma potencial expansão por seu território. Os produtores de coca, por sua vez, apoiavam o projeto. Ambos os lados pertencem ao MAS. Confrontadas com líderes cocaleros, um dos grupos históricos do partido, as comunidades locais e a Cidob, cuja liderança se juntara ao MAS em 2006, organizaram uma marcha indígena para pressionar o Executivo. O cortejo, que partiu em agosto de 2011 de Trinidad, capital de Beni, para chegar a La Paz numa viagem de dois meses, foi bloqueado no meio do caminho, no dia 24 de setembro, na localidade de Yucumo, onde foi duramente reprimido pela polícia. Um choque para a opinião pública boliviana e internacional, e uma derrota simbólica para Morales, o “presidente indígena”, que logo depois suspendeu a construção da estrada.
Apesar da violência perpetrada por alguns e da repressão sofrida por outros, os conflitos entre o governo e dois de seus aliados históricos – mineiros cooperativistas e indígenas – tiveram consequências diametralmente opostas dentro do MAS. De um lado, apesar das fortes tensões entre o Executivo e a Fencomin, as relações acabaram por se normalizar, à custa de pequenas concessões por parte da segunda. De outro, os conflitos do Tipnis levaram a uma ruptura de fato entre o governo e a Cidob. Essa diferença de tratamento é amplamente explicada pela posição dessas organizações no MAS. Os cooperativistas não têm ali rivais diretos, enquanto sua importância numérica (quase 120 mil afiliados) garante uma conquista fácil dos distritos de mineração. Ambas as partes encontram, portanto, um interesse na sobrevivência dessa aliança tumultuada, que desafia qualquer coerência ideológica: longe dos preceitos antiliberais do Executivo, o cooperativismo mineiro, apesar de sua denominação, exalta a liberdade de empreender em detrimento de toda a proteção social para seus afiliados.3
Por outro lado, a Cidob não dispõe das mesmas vantagens: a relação dos indígenas com o território, concebido como um espaço de vida estranho a qualquer conceito de produtividade, coloca-os numa situação de antagonismo latente diante dos camponeses e, sobretudo, dos cocaleros, para quem a terra só vale se for cultivada. O peso e o status dos cocaleros dentro do MAS levaram os líderes indígenas à saída. Se essa ruptura foi dolorosa para um presidente que, quando chegou ao poder, fez questão de exibir suas origens aimarás, seu custo político permanece moderado: os nativos representam um reservatório de votos restrito.
Portanto, em sua ação cotidiana, o governo frequentemente desempenha o papel de árbitro entre os movimentos sociais, mas suas tomadas de posição são fortemente condicionadas pelas hierarquias simbólicas que prevalecem no MAS; hierarquias moldadas pelas clivagens específicas das classes populares bolivianas, mas também pela história do partido e de seu líder. Assim, o projeto de estrada através do Tipnis, defendido pelo governo, não ilustra apenas as orientações produtivistas de sua política econômica: o fato de Morales ser, até hoje, um líder sindical, certamente simbólico, dos cocaleros de Cochabamba mostra que, mesmo na chefia do Estado, ele ainda se vê como o principal defensor dos interesses da organização de onde veio.4
O próprio presidente é um elemento essencial dessa democracia interna. Nascido de uma divisão no campesinato de Cochabamba, o MAS é em parte “seu” partido, um empreendimento político do qual ele tomou a direção em um momento em que os cocaleros eram regularmente acusados de alimentar o narcotráfico na Bolívia. Por meio das múltiplas legitimidades – sindical, partidária e institucional – de que pode se orgulhar, ele aparece como o único capaz de manter essa equipe díspar em que os líderes sociais coabitam, dentro das instituições, com intelectuais e líderes políticos que ele muitas vezes convidou pessoalmente para se unir ao partido.
Pedra angular de uma complexa arquitetura partidária, Morales também continua sendo o melhor candidato do MAS. Desde 2005, o partido tem tido dificuldade para formar quadros, como evidenciado pelos resultados eleitorais dos candidatos locais, sistematicamente inferiores aos do presidente. A última eleição geral, em 2014, mais uma vez ilustrou essa tendência: enquanto o conjunto dos candidatos a deputado do MAS nos 63 distritos eleitorais do país obteve pouco mais de 2 milhões de votos, Morales coletou quase 1 milhão a mais apenas para si próprio.
Essa situação decorre, em parte, da fraqueza da equipe política do MAS, especialmente nas grandes cidades, onde as administrações locais muitas vezes erráticas impediram o partido de consolidar suas posições. Isso também é explicado pela forte influência do próprio Morales, tanto no plano internacional – em que ele permanece um ícone da esquerda – quanto internamente, onde qualquer avanço do governo é creditado a ele. Na configuração atual, ele ocupa, portanto, uma posição central: canaliza parcialmente as dinâmicas centrífugas existentes nos movimentos populares bolivianos e continua a ser seu principal trunfo para vencer as eleições de 2019 e manter o acesso privilegiado deles aos recursos do Estado.
Esse desvio do funcionamento interno do MAS torna possível entender a vontade de seus componentes de fazer de Morales seu candidato presidencial pela quarta vez consecutiva, embora a Constituição o proíba. O MAS tentou suspender a proibição pela primeira vez por meio de um referendo em 21 de fevereiro de 2016. Com apenas 48,7% dos eleitores a favor da reforma, a consulta levou à primeira derrota eleitoral de Morales, após uma campanha de rara agressividade. Tenaz, o MAS acabou ganhando o caso pela via legal. Em 28 de novembro de 2017, o Tribunal Constitucional vetou qualquer limite de mandato contrário ao Pacto de San José (1978) relativo aos direitos humanos, segundo o qual os cidadãos das Américas têm o direito “de votar e de ser eleitos” (artigo 23) sem que nenhum limite seja especificado. Do lado da oposição, essa interpretação no mínimo generosa de um tratado internacional, invocado contra a Constituição, alimenta os processos sobre autoritarismo contra o governo e as suspeitas de submissão do Poder Judiciário. Em contrapartida, a maioria das classes populares bolivianas, convencida de que seu destino está intimamente ligado ao de Evo, celebrou esse veredicto como uma vitória. Em um contexto regional marcado pelo retorno de uma direita liberal com vieses autoritários e pela crise dos governos ideologicamente próximos na Venezuela e no Equador,5 não há dúvida de que Morales vê a si mesmo como o melhor baluarte boliviano diante da contrarrevolução na América Latina.
Um horizonte político limitado
O fato é que a “democracia corporativista” peculiar ao MAS, originalmente caracterizada por suas dimensões participativa e emancipatória, hoje mostra seus limites. A tendência recorrente à contestação das organizações que integram o partido ilustra como seus líderes ainda podem ser chamados à ordem por bases preocupadas com seus interesses. Mas essa ebulição, contida em uma estrutura estritamente sindical, também expressa a incapacidade crônica do MAS de “ser um partido”, ou seja, de desenvolver um projeto político comum ao conjunto da Bolívia popular, transcendendo os corporativismos.
Nesse contexto, a batalha pela reeleição obviamente consagra o lugar central de Morales, sem o qual o espaço partidário seria ameaçado de implosão. Mas ela também contribui para atribuir ao partido uma única função: exigir das organizações de base que cerrem fileiras apesar das divergências ocasionais que possam ocorrer entre elas ou em relação ao governo. Isso também limita o horizonte político do MAS à simples preservação do controle do aparelho estatal, já que parece entendido pelo governo que ele é a única garantia dessa Bolívia, nova, pluralista, mais igualitária, que ele ajudou a construir.
*Hervé do Alto é doutorando em Ciência Política.