O breque dos apps e o movimento dos trabalhadores
Se acompanharmos a evolução dos sistemas de produção no modo de produção capitalista, perceberemos que, enquanto as mudanças ocorreram na estrutura organizativa, repercutindo nos meios utilizados para a direção da força de trabalho posta à disposição do capitalista, certos preceitos da relação entre capital e trabalho permanecem os mesmos, como é o caso da prestação de trabalho por conta alheia
As recentes mobilizações dos trabalhadores por aplicativos devem chamar a atenção de toda a sociedade para a precarização do trabalho na contemporaneidade. A situação não é nova, nem lhes é exclusiva, mas certamente tem neles a sua representação mais caricata. Mudanças sociais que remontam às primeiras décadas de neoliberalismo, com seu ideal de autonomia individual e fortalecimento de um chamado espírito empreendedor. Um ideal que certamente cativa grande parte dos trabalhadores, incentivados pelo mercado a se reconhecerem como responsáveis pela sua própria sorte, e que esperam ver-se desligados das pesadas correntes que, no capitalismo industrial, pesavam os pés de tantos outros.
O chefe imediato agora foge das suas vistas, de modo a tornar-se o próprio trabalhador o condutor de suas forças. Enquanto isso, no entanto, o mais-valor que produz permanece sugado na origem. Seus vencimentos continuam baixos, apesar de agora empreendedor. Como que escorrem por algum buraco aberto, não se sabe onde, entre a prestação do serviço e o consumidor final. Esse furo por onde esvai o valor produzido só pode – e deve – ser melhor compreendido se examinarmos detidamente o que difere esse trabalhador autônomo do trabalhador subordinado. Com isso, se reexaminarmos os elementos que constituem uma relação de emprego.
Como se sabe, a relação de emprego constitui um instituto chave para o ordenamento jurídico trabalhista, especialmente com o fortalecimento do Estado de bem-estar social nos países do centro do capitalismo e da correspondente estruturação das normas de proteção e ordenação do trabalho nos países da periferia, como foi o caso do Brasil desde trabalhismo de Getúlio Vargas.
À luz dessa estrutura normativa, cuja finalidade seria permitir a melhor equação na disputa de forças entre capital e trabalho, seria possível qualificar ou não uma determinada relação como empregatícia a partir da análise de certos requisitos predispostos nas normas trabalhistas do respectivo país.
No caso brasileiro, esses requisitos são geralmente anunciados como pessoalidade, não eventualidade, subordinação, onerosidade e, por fim, a prestação de trabalho por pessoa física. Verificados todos esses requisitos, a relação de emprego deveria ser reconhecida e, com isso, o trabalhador mereceria a salvaguarda dos direitos trabalhistas.
Nuances interpretativas, entretanto, tornaram o requisito subordinação um constante e importante ponto de reflexão para a caracterização da relação de emprego, tendo sofrido diversas mudanças na sua interpretação ao longo desse período. Já caracterizada levando em consideração a superioridade do domínio técnico ou econômico sobre o trabalhador, com o tempo passou a ser compreendida como a contraface do empregado em relação ao poder diretivo do empregador, sob o conceito de subordinação jurídica.
A compreensão da subordinação sob o conceito de subordinação jurídica teve gradativamente sua validade corroborada por parte majoritária da doutrina nacional, sendo considerado suficiente para a compreensão das relações de emprego. Isso se deu especialmente em razão do período de maior expansão do setor industrial, sob organização do sistema de produção taylorista e fordista, quando a verticalidade hierárquica era traço marcante da produção fabril, tornando o poder diretivo um elemento de fácil percepção.
Entretanto, com a expansão da doutrina econômica neoliberal e o estabelecimento gradativo do sistema de produção toyotista, novas formas de relação foram forjadas para flexibilizar os laços entre capital e trabalho, colocando a demanda à frente da produção, e, portanto, modulando a estrutura empresarial conforme a demanda do mercado. Com isso, deu-se o crescimento da terceirização da força de trabalho e, mais recentemente, a intensificação das relações mediadas com o auxílio da tecnologia, chegando até o limite das atuais empresas de serviços de entrega e transporte particular, cuja mediação se dá fundamentalmente através de algoritmos.
Essas mudanças tiveram repercussão sobre as doutrinas produzidas acerca das relações de emprego, implicando, como consequência, uma atualização do conceito de subordinação para melhor adequá-lo às novas formas de exercício do poder de direção. Surgiram os conceitos de subordinação jurídica objetiva, estrutural, integrativa e parassubordinação. Entretanto, como bem observa Paulo Merçon,[i] a expansão do conceito de subordinação, no intuito de abarcar situações fáticas antes não alcançadas, apesar de importar grande avanço, é ainda assim incapaz de tocar as raízes da relação de emprego e, portanto, de entendermos a sua própria realidade. É no intuito de compreendermos o cerne dessa relação jurídica que devemos retomar a evolução do contrato de trabalho, de modo que possamos separar suas características conjunturais daquelas estruturais.
O surgimento da relação de emprego tem como pano de fundo imediato e necessário o modo de produção capitalista, especialmente com a Revolução Francesa, momento a partir do qual é gradativamente estruturado o Estado de direito e sedimentados os institutos do sujeito de direito e da igualdade formal. O trabalhador, enquanto sujeito de direito, passa a disponibilizar voluntariamente a sua força de trabalho no mercado em troca de um salário, uma contraprestação monetária através da qual poderá satisfazer as suas necessidades vitais adquirindo produtos igualmente disponibilizados no mercado.
Como já mencionado, o contrato de trabalho é o instrumento jurídico pelo qual se estabelece uma relação de emprego, que por sua vez tem como requisitos a pessoalidade, a não eventualidade, a subordinação, a onerosidade e a prestação de trabalho por pessoa física. É justamente quanto à subordinação, entretanto, que surgem as maiores discussões na doutrina que trata do assunto. Há um motivo para isso. Afinal, foi a transição do domínio físico, no modo de produção escravista, ou do domínio em razão da propriedade da terra, no modo de produção feudal, para a subordinação jurídica que conferiu novo patamar à relação de domínio e direção da força de trabalho no modo de produção capitalista.
A juridicidade conferida à direção da força de trabalho, ressaltando a liberdade e igualdade idealizadas pelas sociedades de democracia liberal-representativa, foi elevada a requisito central para a compreensão das relações que seriam abarcadas pelos direitos trabalhistas. Considerando que a consolidação da legislação trabalhista no Brasil se deu no período de industrialização sob influência do método da administração científica de Friederick Taylor, o conceito da subordinação jurídica, ao mesmo tempo que forjou suas bases sobre as estruturas industriais de hierarquia verticalizada, foi capaz de alcançar uma grande quantidade de trabalhadores, concedendo-lhes os direitos mínimos de férias, repouso semanal, salário mínimo etc.
Entretanto, se no princípio a aparência da subordinação como requisito para caracterização da relação de emprego era suficiente, mudanças ocorridas no mundo do trabalho desde a década de 1970 vêm causando fissuras cada vez mais perceptíveis nessa imagem. Essas fissuras são causadas pela desestruturação dos meios empregados para a subordinação da força de trabalho. Enquanto no sistema taylorista e fordista os trabalhadores eram organizados em grandes fábricas sob uma estrutura hierárquica rígida, nos sistemas de produção que se seguiram essa hierarquia sofreu uma contínua descentralização, esgarçando, com isso, a estrutura que dava a aparência de centralidade à subordinação.
Como resposta, a doutrina mais progressista procurou empreender esforços para readequar suas concepções acerca da subordinação jurídica conforme a nova estrutura que se definia. Essas novas abordagens, no entanto, apesar de lograrem alcançar um maior espectro de trabalhadores, mantêm suas fundações distantes do cerne que caracteriza a relação de emprego. São como um retoque à aparência que se fez desbotada pela modernização dos instrumentos de subordinação na atualidade.
A própria mudança reiterada do conceito de subordinação, com o intuito de adequá-lo a uma nova realidade, já nos permite questionar sobre a efetiva centralidade desse elemento para a caracterização da relação de emprego. Se acompanharmos a evolução dos sistemas de produção no modo de produção capitalista, perceberemos que, enquanto as mudanças ocorreram na estrutura organizativa, repercutindo nos meios utilizados para a direção da força de trabalho posta à disposição do capitalista, certos preceitos da relação entre capital e trabalho permanecem os mesmos, como é o caso da prestação de trabalho por conta alheia.
A relação de emprego não é uma ficção legislativa, um produto da ideia, mas da realidade. Suas determinações são reais, e assim devem ser compreendidas, a partir da absorção das determinações dessa realidade para o campo das ideias, e não o contrário. É a forma da prestação do trabalho por conta alheia que torna a norma trabalhista necessária, e não a mera subordinação. Esta, ao contrário, se dá por consequência daquela, já que, por pertencerem os resultados da atividade do trabalhador ao capitalista desde o momento da sua própria execução, ao último é conferido, por consequência, o controle sobre essa força de trabalho dispendida, o controle da própria atividade prestada, numa relação de subordinação que, entretanto, não necessariamente rechaça a existência de traços de autonomia. Subordinação e autonomia, portanto, não são elementos que necessariamente se eliminam. Ao contrário, coexistem como medida de intensidade um do outro.[ii]
No contexto do estágio atual do capitalismo de plataforma, questiona-se sobre a autonomia conferida ao trabalhador quanto ao estabelecimento da sua jornada de trabalho ou mesmo quanto à liberdade de prestar serviços a diversos tomadores. Analisando esses casos sob o prisma do trabalho alienado, fica clara a inexistência de controle desses trabalhadores sobre o modo de prestação do seu trabalho, posto que sua autonomia se dá unicamente quanto ao momento que irão conectar-se à plataforma: todo o resto é dirigido pelo algoritmo. Absorvida direta e imediatamente a atividade do trabalhador pela empresa, aquele não constrói qualquer conexão com o consumidor final da atividade, posto que já apropriada pela empresa, em nome de quem o consumidor compreende a prestação do serviço.
Não há sequer expansão da autonomia na atividade do trabalho, há mera opção entre prestar o serviço e ser remunerado e não prestar o serviço e não ser remunerado. A autonomia está fora da relação de trabalho, está na esfera do indivíduo. Se não procedermos à revisão dos elementos necessários à caracterização da relação de emprego, permaneceremos numa luta constante para revisão de um conceito que lhe é conjuntural, que transmuta à medida que se transformam os sistemas de produção e seus novos modos de direção da força de trabalho. O breque dos apps deve servir não somente para esclarecer à sociedade sobre as condições precárias de trabalho desses trabalhadores, mas para jogar luz sobre aqueles com os quais disputam interesses, seus empregadores.
Leia a edição de Janeiro de 2020 com artigos sobre o tema.
Filippe de Oliveira Mota é servidor público. Graduado em Direito e especializado em Sociologia pela Universidade Estácio de Sá.
[i] MERÇON, P. G. A. “Relação de emprego: o mesmo e novo conceito”. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, 78: 182-208, 2012.
[ii] MENDES, M. M. B.; JÚNIOR, J. E. R. C. Subordinação estrutural-reticular e alienidade. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, 76: 97-218, 2007.