Breves anotações sobre os “novos” atores coletivos na cena política
Estes sujeitos, ao enfrentarem um problema que a geração dos movimentos dos anos 1980 não conseguiu tocar, podem produzir uma ruptura no imaginário supostamente “pacificado” da transição democrática brasileira e assim resgatar os sentidos da radicalidade das lutas por igualdade e direitosTaciana Gouveia
O título deste artigo faz uma referência intencional ao livro Quando novos personagens entram em cena, análise feita por Eder Sader sobre os movimentos populares no período de 1972 a 1980. Essa referência me parece pertinente não apenas por ser esse um dos mais importantes estudos dos movimentos sociais brasileiros, mas por apontar para a caracterização de “novidade” que vez por outra domina as interpretações e análises da movimentação social e seus sujeitos.
Ainda que o atributo de “novo” não esteja presente nas narrativas que os sujeitos contemporâneos fazem sobre si mesmos, é evidente que suas práticas e discursos apresentam pontos de ruptura com determinados formatos organizativos dominantes dos movimentos sociais “clássicos”, ao mesmo tempo que resgatam ideias e princípios que já foram experimentados por uma vertente importante desses movimentos.
Princípios como autonomia, horizontalidade e independência, presentes nas autodefinições do Movimento Passe Livre (MPL), Movimento Ocupe Estelita, Direitos Urbanos (Recife) e Frente Independente Popular (FIP), estruturam há mais de três décadas muitas das organizações e grupos feministas, por exemplo. Do mesmo modo, a concepção de si mesmos como sendo coletivos, que demarca um formato sem hierarquia, também pode ser encontrada na origem de muitos movimentos surgidos a partir da década de 1970. Em um período mais recente, ainda que esses grupos tenham se formado por sujeitos políticos mais tradicionais, princípios com decisões por consenso e rechaço à representação passaram a constituir os processos do Fórum Social Mundial.1 Essa dinâmica entre ruptura e resgate talvez seja um dos pontos mais interessantes, e pouco valorizados, na existência dos sujeitos políticos contemporâneos.
Considero que em toda ação política de movimentos sociais as formas organizativas existentes têm uma relação de determinação recíproca com os conteúdos das lutas e os contextos em que se inserem. Isso se dá marcadamente nos momentos iniciais dos processos políticos, dado que são problemas que estão à espera de uma luta, e esta, por sua vez, demanda uma forma. Mas essa forma é determinada pelos campos de possiblidade dos contextos mais amplos em que as lutas se inserem.
Os problemas contemporâneos que estavam à espera de uma luta são bastante diversos, indo da questão do passe livre, que define o MPL, passando pelas dinâmicas da especulação imobiliária tratadas pelo Movimento Ocupe Estelita e pelo Direitos Urbanos, a questão do genocídio da juventude negra, no caso do Reaja ou Será Morto(a)!, chegando à própria existência das lutas tal como expressam a FIP e a Federação Anarquista Gaúcha (FAG). Não são problemas novos, e sim o que sobrou sem nenhuma resolução efetiva do ciclo sociopolítico iniciado no final dos anos 1970 e concluído com a chegada do PT ao governo federal. Por assim serem, os modos da ação política atual se dão em um contexto em que as estratégias do momento anterior demonstraram sua insuficiência, em especial a aposta nos espaços institucionais da democracia participativa e a relação próxima, ainda que não dependente, com um partido político – no caso, o PT.
Não por acaso, é a ocupação dos espaços abertos das ruas a face mais visível e, para muitos, a mais surpreendente da ação dos sujeitos políticos contemporâneos. Nada mais coerente com uma lógica política que rejeita todas as formas de institucionalidade. Talvez seja exatamente essa concepção da política como ação aberta e sem limites predefinidos que unifica o conjunto de coletivos tão diversos, pois em maior ou menor grau o princípio da ação direta é constituinte de seus modos de ser e fa
Contudo, se observamos bem o conteúdo das lutas empreendidas por grande parte desses sujeitos, apesar de se referirem aos problemas estruturais da desigual sociedade brasileira, ele não aponta para soluções fortemente radicais. Na realidade, muitas delas se localizam no campo da efetivação dos direitos expressos na Constituição de 1988. Tomemos o caso dos movimentos Ocupe Estelita, Direitos Urbanos e MPL. Todos estão inseridos no campo do direito à cidade ao enfrentarem os problemas da especulação imobiliária e do custo do transporte coletivo. Se a esses sujeitos agregarmos a importante ação realizada pelos Comitês Populares da Copa, constataremos que em termos de objetivos práticos temos vivido nos últimos anos uma agudização dos conflitos urbanos e uma ampliação dos sujeitos que atuam pela realização da função social das cidades, conceito esse formalmente definido desde 2001. Não é a toa que muitos dos coletivos e movimentos contemporâneos se aproximam do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Não deixa de ser curioso que muitas das análises sobre a cena política atual não incluam o MTST entre os “novos atores”, ainda que seja ele, junto com outros movimentos de moradia, que incida de modo bastante radical nos contextos das grandes cidades, usando o método da ocupação não apenas de edificações públicas e privadas, mas também das ruas. Os movimentos de moradia são considerados sujeitos clássicos e há muito tempo se valem da ação direta como forma de luta.
Nesse sentido, considero pertinente nos questionarmos por quais motivos estabelecemos por vezes uma associação mais direta entre as formas de luta e os sujeitos políticos contemporâneos brasileiros com os processos de luta ocorridos em cidades como Nova York, Túnis e Cairo nos últimos três anos, os “occupies” pelo mundo, e menos com a tradição de luta dos movimentos sem terra e sem teto locais. Tendo a considerar que uma das grandes questões com as quais lidamos no momento – seja no campo da análise, seja no campo da luta – se refere muito mais à forma (modo de organização e de ação) do que ao conteúdo das reivindicações.
Quanto ao modo de organização, os coletivos e movimentos contemporâneos têm uma diversidade de formatos que impossibilita que os coloquemos todos sob a mesma definição. Entre os exemplos que venho utilizando aqui, temos em um extremo a FAG, que se organiza de modo federativo e está vinculada a uma instância nacional, a Coordenação Anarquista Brasileira; portanto, um desenho mais tradicional, por assim dizer. Em outro extremo está o Movimento Ocupe Estelita e o Direitos Urbanos, dinamizados fundamentalmente a partir das redes sociais, embora existam encontros presenciais, e por um conjunto amplo de participantes, notadamente indivíduos. O MPL está assumindo o formato federativo, mas garantindo a autonomia dos coletivos locais. Já a FIP e a campanha Reaja ou Será Morto(a)! se compõem de outros coletivos.
Contudo, em que pese essa diversidade, a impressão que se tem é que tais sujeitos são desorganizados e que suas formas abertas, modos de decisão por consenso, apego à horizontalidade e autonomia os deixam fluidos por demais e com baixa ou nenhuma institucionalização. De meu ponto de vista, nenhuma dessas dimensões se configura uma novidade ou uma característica definidora desses coletivos, nem sequer um problema ou equívoco. Acredito que os formatos organizativos por eles assumidos são resultantes da relação complexa entre a vivência concreta de seus princípios políticos, as condições de possibilidades dadas pelo contexto e o acirramento dos conflitos sociais, notadamente a entrada na cena pública de grupos vinculados à direita extremamente conservadora – este talvez um “novo” ator ainda pouco analisado.
Entre a ruptura e o resgate, como mencionei anteriormente, está a rua, a cena pública, a visibilidade dos problemas nos espaços centrais das cidades. Parafraseando Gilberto Gil, “a novidade era a guerra, a novidade era o máximo do paradoxo”dos espaços públicos de uma sociedade supostamente democrática impedidos pelo aparelho repressivo do Estado de ser ocupados. Digo isso porque as formas de ação mais evidentes dos sujeitos políticos contemporâneos foram amplificadas pela ação da polícia. É com e pela ação da polícia que a dimensão da violência é posta em cena. Esse é, para mim, um fator definidor não só dos modos de ação, como também dos muitos olhares que se têm sobre aqueles sujeitos. E também produziu uma nova frente de luta que há mais de duas décadas não se apresentava como tal: a luta pela liberdade de organização e manifestação, articulando ainda novos sujeitos em torno dela, como é o caso da FIP, que surge na sequência dos processos que ficaram conhecidos como jornadas de junho.
Para uma sociedade que oficialmente deixou de viver uma ditadura militar há trinta anos (ainda que o aparato repressivo militar jamais tenha sido desmontado), é bastante perturbador ter de se defrontar com forças policiais agindo com a brutalidade desmedida como têm feito nas manifestações de rua. Não que tal brutalidade seja uma novidade, mas até então ela estava ocultada pela desatenção cotidiana com a vida das populações da periferia das grandes cidades, ou orientada para os sem-teto das ocupações urbanas. E a perturbação ocorreu tanto para os segmentos progressistas/de esquerda, como para aqueles conservadores/de direita. No primeiro caso, assustou pelo medo do retrocesso a uma situação ainda dolorosa; no segundo, por constatar que seu modo predileto de resolução de conflitos ainda estava ativo e operante.
É impossível negar que a ação do MPL ganhou força após o primeiro momento de uso mais brutal da força policial em 13 de junho de 2013. Do mesmo modo que o Movimento Ocupe Estelita, até então uma ação de visibilidade apenas local, passou a ser conhecido em âmbito nacional no dia 17 de junho de 2014, quando de uma reintegração de posse ilegal e extremamente violenta. Tais fatos não desmerecem em nada a importância e capacidade de mobilização dos dois movimentos, apenas revelam todas as dimensões do conflito social brasileiro, reafirmando que o entendimento de uma dada ação só pode ser feito se consideramos o campo dos antagonismos e contradições em que ela incide. E esse campo, no caso brasileiro, não apresenta nenhuma novidade, apesar das aparências.
Entretanto, a exposição pública dos velhos modos de uso do aparelho repressivo do Estado está possibilitando a emergência amplificada do questionamento da ação policial, seja por meio da publicização e do enfrentamento do genocídio da juventude negra – da qual a campanha Reaja ou Será Morto(a)! é o melhor exemplo por desvelar de modo incisivo a perversidade do racismo estrutural da sociedade brasileira –, seja por meio dos recentes – e ainda pouco reconhecidos como sujeitos políticos – comitês pela desmilitarização da polícia. Esses sujeitos, ao enfrentarem um problema que a geração dos movimentos dos anos 1980 não conseguiu tocar, podem produzir uma ruptura no imaginário supostamente “pacificado” da transição democrática brasileira e assim resgatar os sentidos da radicalidade das lutas por igualdade e direitos. A violência estatal, em seus aspectos objetivos e subjetivos, é conteúdo à espera de outras e mais formas de luta. Uma paradoxal novidade.
*Taciana Gouveia é educadora feminista, mestra em Sociologia e desde os anos 1990 analisa a movimentação social.