Cadê o Amarildo? – O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs
O livro do jornalista e sociólogo Leandro Resende (disponível à venda no próprio site da Baioneta Editora) não só desmistifica o consenso acrítico que se formou em torno das Unidades de Polícia Pacificadora, como ainda demonstra a ruptura e quebra desse consenso a partir do desaparecimento de Amarildo.
No meio de tantas obras que buscam interpretar a situação penosa de nossos dias, Cadê o Amarildo? – O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs, recém-publicado pela Baioneta Editora, se distingue pela profundidade e clareza na demonstração de uma situação de completa normalização da violência institucional. A selvageria habitual, como forma de controle, ocorre no Brasil por meio de diversos dispositivos, dos quais o mais conhecido é a militarização da polícia, apontada no livro.
Se o processo de militarização, atuando como forma de choque, é fenômeno geral nas áreas onde a pressão da desigualdade se faz sentir, e onde a ordem armada desempenha funções que em princípio caberiam a políticas e programas de minimização da pobreza e dos problemas sociais, no Rio de Janeiro a militarização é um fenômeno político, presente desde os anos de 1980.
Por isso, a ordem que supostamente chegaria com as UPPs, projeto do ex-governador, Sergio Cabral, ao contrário do propagandeado, acabou de cimentar um espaço de exceção, “onde a lei é como que desativada, zonas cinzentas nas quais os protocolos da ‘resistência seguida de morte’ são a senha de uma autorização para matar”1 . Esse aprofundamento da exceção – acompanhada do fortalecimento das milícias – contrariou assim as belas intenções e a recepção acrítica da imprensa. Como fica evidenciado no livro, o projeto de pacificação soçobrou fundando uma espécie de faixa de Gaza para pobres do Brasil, aprofundando a separação existente na geografia da cidade.
O livro do jornalista e sociólogo Leandro Resende (disponível à venda no próprio site da Baioneta Editora) não só desmistifica o consenso acrítico que se formou em torno das Unidades de Polícia Pacificadora, como ainda demonstra a ruptura e quebra desse consenso a partir do desaparecimento de Amarildo.
Debaixo do manto de uma necropolítica arraigada em 500 anos de história, as UPPs surgiram sob a máscara da gestão e da administração especializada e despolitizada no qual o objetivo principal seria a regulação da segurança de pessoas que viviam em locais dominados pelo narcotráfico: “Além de romper com a ‘truculência’ nas ações de polícia nas favelas, a paz seria levada e os serviços do “asfalto” subiriam o morro. A marca seria, portanto, romper com duas metáforas, a da “guerra” e a da “cidade partida”2.
Pensada, no entanto, sob a ordem “naturalizada” de nossa violência historicamente fundamentada pela desigualdade radical, o projeto se ergueu como uma tentativa de domesticação das “classes perigosas”. Classes que possuem uma definição racializada negra muito própria determinada pela herança escravocrata, calculadamente3 mantidas às margens do direito burguês até hoje.
Por outro lado, mas do mesmo modo, as intenções que não eram das melhores não ocultam um fato vibrante construído em torno da história da segurança pública do próprio Rio de Janeiro, algo apontado pelo autor ao final do livro, qual seja: a construção de uma histeria coletiva em torno do poderio do tráfico.
É evidente que este tipo de projeto só pôde ser mobilizado pela construção do pânico, diuturno, no que se refere às áreas pobres da cidade, medo espetacularizado e fomentado por redes de TV abertas. Essa política do medo encontra na administração dos espaços e na tentativa de domesticação de pessoas o lugar de efetivação. Também é preciso dizer que a política “despolitizada” da administração tem como única razão de ser a criação do medo como estrutura social de viabilização de seu imperativo.
Foi, tão só, com o medo, como princípio mobilizador, que se tornou possível criar espaços constituídos de exceção legalizada debaixo dos olhos liberais de nossa imprensa. Se a ideia era criar uma polícia solidária, o que se deu foi o crescimento abrupto de desaparecimentos que jamais serão solucionados porque fazem parte da administração imposta pelo conveniente dispositivo militarizado. Como o próprio autor sugere: “A redução dos índices de letalidade silenciou o recrudescimento de outros – como os desaparecimentos – em nome do entusiasmo com a nova política pública que estaria mudando a vida nas favelas.”4
No entanto, o caso Amarildo aparece como uma insurgência, ou melhor, num contexto de insurgência, contra a insuficiência dessa política de administração isenta da própria política. É no levante de 2013, no qual se chegou ao fim de um ciclo apático de administração da pós-política, que o desaparecimento de Amarildo ganhará relevância no debate público.
Resende demonstra, com um passo a passo interessante, os desdobramentos do caso na sequência da quebra de sua singularização, isto é, quando o caso deixa de ser apenas o de mais um pobre desaparecido para tornar-se a simbolização de uma luta que ultrapassaria as fronteiras do Rio de Janeiro. Um dos motivos cruciais, sem dúvida, foram os levantes de junho de 2013, que colocaram em xeque as diversas pós-políticas administrativas e gestionais do período que chegava ao fim. O que, por sua vez, colocaria em xeque as próprias UPPs.
Respondendo a pergunta: “Contra quem, de que forma e onde”5 o autor nos dá indícios da maneira pela qual o caso se torna central na discussão dos limites da política de pacificação. Para tanto mobiliza a própria forma como se expõem os variados discursos e como as narrativas sobre o caso ganham a sensibilidade da insensível ordem midiática mantendo em seu cerne a violência institucional. A controvérsia, resgatada pelo autor, é só um dos meios pelos quais a violência radical se expressa ideologicamente.
“Amarildo, nesse sentido, pode ser lembrado como um exemplo ideal desta insuficiência: vítima do arbítrio policial típico do contexto da ‘guerra’, sofreu na pele as distinções de abordagem que o Estado faz contra certos cidadãos, de certa cor e de certo local – mesmo após a promessa de que a ‘cidadania’ existente no asfalto subiria a favela ao lado da militarização.”6
Para além do próprio caso, o livro marca-se pela tentativa de esmiuçar os diversos argumentos e contra-argumentos lançados na construção e desdobramento do acontecimento em torno de Amarildo. Com isso o autor não apenas evidencia os pressupostos político-ideológicos dos atores como ainda torna claros os mecanismos utilizados por eles para diminuir o problema, e isentar o poder governamental, ao naturalizar a violência como coisa normal nesse país. Ambos os polos em choque são sustentados pela brutalidade da vida militarizada imposta aos mais pobres por meio da ideologia do trabalho.
Naturalmente, isso possibilita enxergar, nas lacunas da construção do fato, a visão naturalizada de mundo sustentada por cada participante direto, como o próprio governador, os policiais envolvidos e a imprensa.
A análise dos discursos – ora a construção de Amarildo como homem de bem, ora como um traficante – salienta uma dicotomia escorada numa ideologia inerente ao solo no qual a violência é seu esterco. Isso, portanto, traduz uma espécie de formação social que coloca a justiça sob a égide da vingança, explicada pelo fato de que se acaso se tratar de um “reles” traficante, então pode sim ser assassinado.
É evidente que esse tipo de visão, naturalizada no Brasil, sustenta a própria trama em que se dá o desdobramento do caso Amarildo. E o que concluímos ao ler o livro é que a força essencial da noção ideológica de “vingança como justiça” foi bem ilustrada pelo destino que o caso de Amarildo tomou durante o seu desdobramento. O discurso naturalizado de violência contra os que estão fora da lei é foi o que permitiu aos policiais, algozes de Amarildo, imputarem-lhe o título de traficante.
Publicamente, isso minimizaria o assassinato e a ocultação de cadáver perante a opinião midiática. Aqui estamos no verdadeiro centro ideológico da forma de violência institucionalizada no Brasil: a vingança estatal contra os que se põem às margens da lei. É preciso dizer, no entanto, que as margens da lei são também as margens da cidade. Zonas espontaneamente criadas pela exclusão social. Logo, todos os que aí estão, potencialmente estão às margens da lei. E a lei mesma é a própria polícia.
É claro que a controvérsia se deu em cima de uma contradição que revelava um senso comum: o assassinato e desaparecimentos são justos quando voltados para os que desobedecem a ordem e estão às margens do processo civilizatório. Da mesma forma aplica-se também, àqueles que estão em zonas de exceção que podem ser suspeitos aos olhares dos policiais, eventualmente tomados por fortes emoções.
Ambos os lados – homem de bem/traficante – mistificam e fomentam a violência institucional justificando moralmente suas posições. Para a pregação midiática, o pai de família, trabalhador, é legitimado como cidadão de bem por ser subserviente e exemplar. Para os policiais, a morte do traficante é legítima pela defesa da ordem e dos valores da lei que a própria mídia e sua imprensa apregoa. Tanto o crime policial quanto a defesa midiática, desse modo, partem da noção de que alguns podem ser mortos e outros não.
O livro desnuda como a necropolítica age em estado bruto no Brasil legitimado pelas formas de abordagem de temas complexos na visão naturalizada da violência que, de tão comum, nem é mais sentida enquanto tal. O que os dois discursos compartilham é uma abordagem disciplinar violenta que coloca no horizonte a possibilidade que o Estado tem para assassinar. Isso só depende da forma como a cena do crime é disposta. Nem precisamos dizer que o componente racial para tal disposição é fundamental…
É justamente pela manutenção da violência institucional naturalizada que esses discursos se voltam contra a violência particular do tráfico e seus agentes mantidos às margens da sociedade – a diferença de tratamento entre os do asfalto e os do morro. Há, portanto, evidenciado no livro de Leandro Resende, uma violência ligada às raízes do desenvolvimento histórico-social que fora instrumentalizado pelos agentes políticos com a criação das UPPs, mas também tornada senso comum no discurso oficial que separa a população entre os de bem e os de mal.
Nesse sentido, o Brasil tornou-se um centro de referência para as formas de tentativa de administração social de grupos humanos potencialmente agressores da ordem. Por meio de um discurso latente pronto para defender e justificar a morte de alguns como controle social, tornou-se comum e corriqueiro aceitar o crime policial como algo necessário. Com uma faixa de Gaza particular, na qual os desaparecimentos são corriqueiros para não contar nas estatísticas, da utopia de polícia pacificadora e social restou só as armas e os autos de resistência.
E é por isso que o livro “Cadê o Amarildo?” é fundamental.
1 ARANTES, P. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 362.
2 RESENDE, L. Cadê o Amarildo? – o desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs. São Paulo: Baioneta Editora, 2019, p. 46.
3 Moura, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-ed. com Anita Garibaldi, 2014. V. a respeito A Lei da Terra, p. 108.
4 Idem, p. 49.
5 Idem, p. 50
6 Ibidem, p. 56.