Candomblé: da resistência à politização
A religiosidade contribuiu para a união, a resistência e a preservação das diferentes culturas africanas trazidas para o Brasil. Os terreiros, que de início eram locais de proteção e guarida a escravos fugitivos, hoje se articulam em termos de ações políticas e projetos diversos, realizando ações sociais e comunitárias
O candomblé é a denominação genérica das religiões de matriz africana, difundidas e praticadas no Brasil, especialmente na Bahia, onde surgiram os primeiros e mais tradicionais terreiros (templos). Há cerca de 1.410 terreiros em Salvador.
Essas manifestações religiosas se dividem, no Brasil, em quatro nações principais, a partir da região africana de onde vieram os negros sequestrados:
• Angola – bantus, vindos de Angola, Congo e Moçambique;
• Jêjes – oriundos do Daomé, atual Benin;
• Ketu – sudaneses ou yorubanos originários da Nigéria;
• Ijexá – ligados à cidade de Ilexá, próximo ao rio Oxum no golfo do Benin.
O candomblé e os terreiros foram muito importantes para a preservação tanto física quanto cultural dos negros.
Os traficantes, os negreiros e os senhores de escravos, quando da chegada dos negros, separavam famílias (marido de mulher, pais de filhos, irmãos) e oriundos da mesma região como uma das formas de evitar comunicação, fugas e rebeliões.
A religiosidade possibilitou a união, a resistência, e a preservação das culturas africanas que são marcantes no Brasil e, principalmente, na Bahia.
Os terreiros davam proteção e guarida a negros fugitivos e organizavam comunidades que reproduziam, em grande parte, a forma de vida dos negros na África.
A força do candomblé está presente na culinária: o acarajé, na verdade acará (jé é o verbo comer em yorubá), é uma oferenda a Yansã, orixá do panteão afrobrasileiro.
A dança afro, hoje tão difundida em faculdades, grupos, escolas de dança e blocos, tem sua origem na dança dos orixás.
O ritmo musical denominado ijexá é uma reprodução do toque de uma nação do candomblé. A música D’Oxum, do compositor Jerônimo, assim como Ijexá, de Edil Pacheco, que foi sucesso nacional na interpretação de Clara Nunes, são exemplos da influência das religiões africanas na música brasileira, em especial na baiana.
Os afoxés, grupos carnavalescos criados por negros, foram tema do carnaval 2009 de Salvador. O mais famoso é o Filhos de Gandhy, que completou 60 anos neste carnaval. Eles são oriundos, e muitos deles diretamente vinculados, a um terreiro de candomblé. Alguns estudiosos os denominam de candomblé de rua.
Outro ponto importante da presença e da força do candomblé é o fenômeno do sincretismo religioso, uma espécie de mistura de religiões.
Quando os negros chegavam da África tentavam tirar-lhes toda a identidade, pessoal e religiosa. Além da separação física das famílias e conterrâneos, eles eram batizados com nomes portugueses (tiravam-lhes os nomes africanos) e obrigados a se tornar cristãos. Ficavam proibidos de praticar os seus cultos e os rituais de sua religião.
Porém, os negros encontraram mais uma forma de resistência: começaram a identificar alguma semelhança entre as divindades africanas e os santos católicos e passaram a cultuar suas divindades fingindo que estavam cultuando os santos cristãos. Com isso, formaram-se as irmandades como a de Nossa Senhora da Boa Morte (1820) no município de Cachoeira, região do Recôncavo Baiano, uma instituição centenária e reconhecida internacionalmente. Outra dessas organizações é a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1695), sediada na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Pelourinho, centro histórico de Salvador.
As(os) integrantes dessas irmandades católicas (a primeira é composta só por mulheres, não tem presença masculina) são também pessoas do candomblé.
Outro exemplo de sincretismo religioso é a Lavagem do Bonfim, uma das mais tradicionais e importantes festas populares da Bahia. As baianas (vinculadas aos terreiros de candomblé), com água de cheiro e flores, lavam as escadarias da igreja do Senhor do Bonfim.
Intolerância religiosa
Um grave problema e fator de mobilização é a intolerância religiosa, principalmente os ataques dirigidos às religiões de matriz africana por parte das chamadas igrejas neopentecostais, que utilizam seus meios de comunicação, rádios, televisão e jornais, para desrespeitar e agredir o candomblé.
O movimento contra a intolerância religiosa vem se consolidando e alcançou já algumas vitórias, sendo que entre as mais dignas de registro está a condenação, em várias instâncias do judiciário brasileiro, da Igreja Universal, em função de agressões e ofensas publicadas no jornal da referida igreja, que concorreram para a morte da yalorixá Mãe Gilda, do Ilê Axé Abassá de Ogum.
A data do falecimento de Mãe Gilda, no ano de 2004, se transformou no Dia Municipal Contra a Intolerância Religiosa, através do projeto de uma vereadora de Salvador. Em 2008, essa data se tornou o Dia Nacional Contra a Intolerância Religiosa (projeto de dois deputados federais da Bahia).
A politização dos terreiros
Nos últimos anos, muitos militantes dos movimentos negros passaram a valorizar e se integrar aos terreiros das diversas nações, que passaram a se articular até mesmo em termos de ações políticas e projetos diversos, realizando ações sociais e comunitárias.
Enfrentaram uma visão equivocada das esquerdas sobre as religiões. A histórica frase de Marx: “Religião é o ópio do povo”, proferida num momento histórico e dirigida a uma religião específica, levou a atitudes preconceituosas contra todas as religiões.
A grande contribuição dada pela Teologia da Libertação e pelas CEBs – Comunidades Eclesiais de Base – para a mudança dessa postura influiu também para que os(as) militantes dos movimentos negros passassem a estudar e a compreender melhor o papel do candomblé como forma de resistência.
Foi preciso enfrentar também a despolitização, a desarticulação e o isolacionismo dos terreiros, postura que gerava manipulação por parte de políticos clientelistas.
Com esse processo de politização surgiram as articulações, as ações conjuntas e as entidades representativas. O que levou à ocupação dos espaços em conselhos, como é o caso da representação formal e legal dos terreiros no CDCN – Conselho de Desenvolvimento da Cidadania Negra (Governo do Estado) e no Conselho Municipal das Comunidades Negras (Prefeitura Municipal de Salvador).
Esse processo de politização levou à criação da ACBANTU – Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu. A ACBANTU é integrante dos CONSEAs – Conselhos de Segurança Alimentar em nível estadual e nacional. E também à criação da AFA – Associação de Preservação da Cultura e Religiosidade Afro e Ameríndia, que agrega os Terreiros de Candomblé de Caboclo (mistura da religiosidade africana e indígena brasileira), muito presentes na Bahia.
Demandas atuais:
Regularização fundiária
Muitos terreiros não têm os títulos de posse da terra onde estão instalados, ou a documentação completa, o registro completo. Esse fato, aliado à intolerância religiosa, gerou problemas de todo tipo.
Um dos exemplos mais gritantes é a invasão/ocupação do primeiro terreiro da Bahia e do Brasil, um dos mais tradicionais, o Terreiro da Casa Branca, por um posto de gasolina. Só após muita luta e pressão o posto foi retirado e o templo tombado como patrimônio histórico e cultural.
Outro terreiro, o Onipó Neto, teve parte de suas instalações físicas demolidas e seus objetos sagrados danificados em uma ação da Superintendência de Controle e Ordenamento do Solo Urbano. Após manifestação na Prefeitura, na Câmara Municipal e junto ao Ministério Público Estadual, o terreiro está sendo reformado e o município responde a processo para indenização dos objetos.
As demandas por regularização fundiária e pelo cumprimento do dispositivo constitucional da imunidade tributária levaram a Câmara Municipal a realizar uma sessão especial, e a Secretaria Municipal da Reparação a elaborar uma cartilha/ documento sobre a questão.
Regularização jurídica
Outra demanda importante é a regularização jurídica das entidades mantenedoras dos terreiros (ata de fundação da sociedade civil, constituição de diretoria, registro em cartório, CNPJ etc).
A partir da criação de secretarias voltadas para a igualdade racial, em nível nacional (SEPPIR), estadual (SEPROMI) e municipal (SEMUR), abriu-se a possibilidade do acesso a recursos públicos para reformas e melhorias nas instalações físicas e para o desenvolvimento de projetos.
Hoje, muitos terreiros realizam projetos educacionais, culturais, assistenciais e na área de saúde.
Vale a pena destacar o Projeto Egbé – Territórios Negros, idealizado e coordenado pela ONG Koinonia (Rio de Janeiro). Ele agrega e articula mais de cinquenta terreiros das diversas nações, localizados em Salvador e região metropolitana.
Esse projeto desenvolve ações de formação de agentes de saúde (saúde reprodutiva, prevenção de DSTS/AIDS), regularização fundiária, organização e regularização jurídica das associações mantenedoras dos terreiros.
*Normando Baptista Santos é graduado em filosofia e pedagogia pela UFBA e pós graduado em adiministração pública e planejamento habitacional pela Escola de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas. Um dos fundadores da ABONG e do Movimento Negro Unificado. Ogã do terceiro Ilé Axé Oiá Punjá.