Características das Revoluções
Nem o embaixador britânico em São Petersburgo em 1917 nem o dos Estados Unidos no Teerã em 1978 perceberam o movimento sutil do alvoroço que se aproximava. O silêncio das massas dá impressão de instabilidade e dissimula os primeiros focos de ebulição, em geral atiçados pela juventude
O embaixador da França na Tunísia não percebeu a chegada dos levantes em 2010, assim como, antes dele, o embaixador da Grã-Bretanha em São Petersburgo não havia se dado conta da bomba-relógio acionada. De fato, três dias antes da queda dos Romanov e apesar da intensidade das manifestações, este último enviou uma mensagem a seu ministro de Relações Exteriores para informá-lo sobre “certas desordens no dia de hoje, mas nada sério”.1
Os serviços de informação ocidentais também se surpreenderam com os acontecimentos iranianos. Em agosto de 1978, cinco meses antes do fim do reinado do xá, as manifestações tornaram-se cada vez mais frequentes, enquanto um informe da Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos concluía que “o Irã não está em situação revolucionária, nem mesmo pré-revolucionária”,2em consonância com a posição do presidente norte-americano James Carter de que o Irã é “uma ilha de estabilidade numa das regiões mais conflituosas do mundo”.3Assim, a monarquia seria apoiada até seu último dia pelos “Estados Unidos e Grã-Bretanha, mas igualmente pela União Soviética e pela República Popular da China”.4
O governo tunisiano não vislumbrou em nenhum momento que as manifestações sinalizavam o fim do regime, assim como os monarcas czaristas em 1917. Dois dias antes do czar ser destituído do poder, uma greve geral atingiu Moscou, e a czarina Alexandra Fedorovna comentou-a da seguinte forma: “Se o tempo estivesse mais frio, [os manifestantes] provavelmente teriam ficado em casa. Tudo isso passará e a calma voltará a reinar”.5 O rei Luís XVI não foi exceção a esse tipo de análise e, com a queda da Bastilha, indagou: “Mas será isso uma revolta?” – ao que foi respondido pelo duque de Liancourt: “Não, majestade. É uma revolução”.6
Nem os próprios opositores do regime tunisiano anteciparam a iminência da revolta, assim como o líder sandinista Daniel Ortega confessou, em julho de 1979, alguns dias antes da queda do ditador Anastasio Somoza, não ter vislumbrado o triunfo da revolução nicaraguense.7 Também Lenin declarou em janeiro de 1917: “Nós, da velha geração, talvez não estaremos presentes nas batalhas decisivas da revolução”.8
As autoridades francesas demoraram em tomar uma posição clara em relação à Tunísia, com a esperança de que o desenrolar dos acontecimentos favorecesse o statu quo, assim como o governo norte-americano agiu em relação a Cuba na metade do século passado. Embora os revolucionários estivessem a dois passos de Havana, a administração norte-americana ainda esperava que os fatos se reconfigurassem a seu favor: “Às 4 da tarde do dia 31 de dezembro de 1958, algumas horas antes de Batista deixar a ilha, os oficiais da administração norte-americana ainda insistiam em encontrar uma alternativa a Fidel Castro”.9
Falsificando aparências
Esses diferentes episódios revelam um elemento essencial das revoluções: a imprevisibilidade. Elas surgem sempre onde menos se espera. A razão é simples. Como sublinhou Timur Kuram,10 diante de regimes repressivos, as populações aprendem a resistir ao arbitrário pela falsificação de suas preferências. Mesmo se as pessoas reconhecem a necessidade de mudança, jamais expressarão em público qualquer atitude ou comentário suscetível de revelar suas verdadeiras aspirações; na melhor das hipóteses, seriam discutidas em âmbito privado, com pessoas de confiança. Esse silêncio das massas dá impressão de estabilidade, e essa aparência de estabilidade não permite ver o crescimento gradual de descontentamento nem a forma como é gestado – até o momento em que detonam os levantes. Com as máscaras caídas pela imprevisibilidade, revela-se um povo obstinado pela reivindicação da liberdade, da liberdade de ser ele mesmo, à imagem do boxeador de exceção que, livrando-se de sua roupagem de escravo, gritava a quem quisesse escutar: “Não serei aquilo que você espera. Sou livre para ser quem eu quiser”.11
Outros elementos caracterizam uma revolução política e, mais uma vez, a revolução tunisiana pode ser usada como exemplo. A juventude desse país lançou-se à contestação sem nenhuma preparação ou plano e, no entanto, saiu às ruas em perfeita coesão, exatamente como no início da Revolução Mexicana de 1911: “O movimento [revolucionário mexicano] foi similar a uma imensa avalanche, e essencialmente anônimo. Nenhum partido organizou ou presidiu seu nascimento. Nenhum intelectual impôs um programa, uma fórmula ou doutrina nem definiu os objetivos”.12 Esse aspecto é igualmente válido para a Revolução Russa, como atesta a declaração de um membro da Okhrana (polícia secreta do czar) infiltrado no partido bolchevique (com o pseudônimo de Limonin): “O movimento formou-se sem a preparação de nenhum partido ou qualquer discussão preliminar quanto a um plano de ação. Os círculos revolucionários começaram a reagir apenas no fim do segundo dia”.13
Os jovens tunisianos diplomados e desempregados foram os detonadores dos protestos, seguidos rapidamente pela União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT) e pelas classes médias. A defasagem entre suas expectativas e a situação do país parecia insuportável, acentuada pelo florescimento da economia tunisiana, pela corrupção, pela brutalidade policial e pela ausência de liberdade. Difícil não fazer um paralelo com a Cuba dos anos 1950, que o assistente do presidente John Fitzgerald Kennedy, Arthur Schlesinger, descrevia nestes termos: “A característica do regime de Batista tornava praticamente inevitável uma reação popular violenta. O vampirismo dos dirigentes, a corrupção do governo, a brutalidade da polícia, a indiferença do regime às necessidades do povo […] – todos esses elementos, tanto em Cuba como em outros lugares, constituíram cenários convidativos à revolução”.14
Com o recrudescimento das manifestações, Zine al-Abidine ben Ali tentou intervir ao denunciar pela televisão os “vândalos mascarados” e logo acrescentou: “Os jovens correm e gritam que não há pão simplesmente para criar exaltação generalizada”.15 O xá do Irã havia dito algo similar havia algumas décadas e afirmava que “os vândalos e outros” fracassariam.16
Esse ponto nos conduz a outro elemento essencial das revoluções: a presença significativa de jovens solteiros. Não é surpreendente encontrar dados em estudos empíricos sobre a presença majoritária de homens solteiros nas diferentes formas de rebelião. O argumento mais frequente usado para explicar esse “fato estilizado” é que jovens solteiros temem menos se não estão ligados a responsabilidades familiares.17 Porém, é possível formular outra interpretação, talvez menos difundida, mas muito pertinente: num regime repressivo no qual a liberdade da palavra foi banida, não há canais de comunicação que permitam aos jovens desempregados queixar-se de seus descontentamentos para com o Estado. Com a degradação crescente da situação, vislumbram apenas uma alternativa: aceitar com resignação ou fazer-se ouvir à força pelo regime vigente. No segundo caso, a única estratégia possível de comunicação é uma grande manifestação. Em outros termos, o comportamento da contestação pode ser uma forma de levar à praça pública o sentimento de uma situação insuportável.
A assinatura tunisiana
Qual seria, então, a particularidade da revolução tunisiana? Essencialmente, sua forma pacífica de protesto, característica que já de partida a diferencia de outras revoluções violentas. Seria possível defender sua semelhança com os acontecimentos no Leste Europeu a partir do fim dos anos 1980, mas ainda assim dois elementos a diferenciam. Em primeiro lugar, no Leste Europeu, no fim dos anos 1970, começaram a surgir movimentos de oposição como a Solidariedade na Polônia ou o grupo de dissidentes identificados com a Carta 77 na Tchecoslováquia. Esses movimentos, guardadas as devidas proporções, contribuíram para insuflar o vento da esperança. Ademais, beneficiaram-se da simpatia das chancelarias ocidentais e da opinião pública mundial (a Carta 77, por exemplo, ganhou comitês de apoio em Paris, Estocolmo etc.). Na Tunísia, não houve esse tipo de movimento prévio, talvez alguns vestígios da Liga Tunisiana pelos Direitos Humanos, que finalmente não pôde desempenhar plenamente seu papel pela infiltração de membros do partido de Ben Ali. Pior: a simpatia das embaixadas ocidentais dirigiram-se ao ditador. Contrariamente aos povos do Leste Europeu, portanto, a população tunisiana ficou relegada às sombras, enquanto Ben Ali ganhava espaço entre governantes de países democráticos. Nesse contexto, o efeito surpresa ganhou contornos ainda mais inesperados.
Em segundo lugar, as revoluções pacíficas do Leste Europeu começaram a ser forjadas desde que Mikhail Gorbachev, no âmbito da glasnoste da perestroika, colocou os governos dos países satélites sob sua responsabilidade e avisou que, em caso de manifestações populares, o Exército Vermelho não interviria. Os tunisianos se lançaram às ruas sem qualquer respaldo de aliados de Ben Ali, como Sarkozy, Berlusconi ou Zapatero, e menos ainda de personalidades políticas de grandes potências com residência na Tunísia. Assim, os jovens tunisianos parecem mostrar ao mundo que a democracia envelheceu mal na Europa.