Carla Madeira: “Acredito que as tragédias são atravessadas e influenciadas pelo amor”
Uma das autoras convidadas da 22ª Flip, Carla fala como nasceram as histórias dos seus três livros e a relação que existe entre eles: a maternidade
“Eu acho que a gente nunca sabe exatamente como as histórias começam, porque às vezes é uma faísca. Comecei muito despretensiosamente a escrever, mais pelo gosto de brincar com uma sonoridade”. A fala de Carla Madeira descreve algo que se pode sentir durante as leituras de Tudo é Rio, Véspera e A natureza da mordida. Ela é escritora, professora, jornalista e publicitária, além de uma das principais convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, de 2024.
Para Carla, as suas histórias têm em comum a centralidade da família, principalmente a relação da maternidade, marcante nos três livros. “Um autor acaba escrevendo sobre a mesma coisa o tempo todo. Eu acredito que aquilo que somos começa no núcleo familiar. Esse é o primeiro olhar para o mundo, a infância, a presença ou a ausência do amor”.
Tudo é rio, foi o primeiro livro publicado pela autora, com lançamento pela editora independente Quixote+Do, em 2014, e após sete anos foi reeditado pela Record. A obra iniciou com a ideia de contar a “história das Marias”, num lugar diferente do que seguiu o enredo.
O ponto de partida de Tudo é rio foi tentar introduzir Lucy, uma prostituta que gosta da profissão. Quando menina, teve uma infância sofrida e no fim acaba fazendo parte de um triângulo amoroso com o casal Dalva e Venâncio. O objetivo inicial foi relacionar essa personagem com a história das Marias. “Na hora que eu comecei a escrever a história de Lucy, é que veio o acontecimento principal. Quem era aquele homem que estava ali naquele puteiro? Ele tinha a promessa de um gozo enorme, e ao mesmo tempo uma dor tão grande que ele não dava conta nem dessa promessa de prazer”, comentou Carla.
O livro ficou paralisado por muitos anos, a escritora não sabia se ia ser um conto ou apenas um passar de horas. O processo de escrita começou em 2000, mas o próprio acontecimento principal da história, o que aconteceu com Venâncio – marido de Dalva e personagem que mais se destaca no começo do livro por ter um comportamento de culpa e agressivo – a tamanha dor que o protagonista sentia e a violência contra a mulher fez com que Madeira não seguisse em frente.
Quando voltou para a obra, aquele acontecimento que a fez paralisar se tornou o motor da escrita – “O que veio antes? O que vem depois? Como sair daquela situação? A vida consegue continuar depois daquilo? A partir dessas perguntas e sem saber nada da história, eu fui fazendo. Em Tudo é Rio, eu fui escrevendo o texto na ordem que o leitor lê. Foi um jogo, uma coisa que eu fiquei muito tempo com aquilo adormecido, crescendo de alguma maneira”, finalizou a autora.
A natureza da mordida, segundo livro publicado por Carla, traz novamente um aspecto trágico; um possível incesto afeta de maneira determinante a vida de alguns personagens. Porém, de princípio, o mais desafiador para os leitores é entender o encontro de personagens tão distintas, Biá e Olívia, que ao se encontrarem descobrem a dor que as unem.
Um dos objetivos da autora ao escrever a obra era criar uma dúvida no leitor ao iniciar os capítulos, queria que aquela dor desconhecida fizesse com que ele experimentasse uma certa confusão. Carla queria despertar em quem estava lendo uma insegurança de estar entendendo ou não. “Isso que para mim era exatamente o que Biá estava vivendo.”
Por fim, Véspera é um livro considerado mais maduro por Carla, que traz novamente o acontecimento do abandono, mas a diferença é que não foi tão imediato. A história bíblica de Caim e Abel está presente na história. “Pensar nessa coisa da identidade dos gêmeos é algo complicado, como mãe lidar com a possibilidade da diferença. Eu sou mãe de dois, e já é difícil quando os meninos não são gêmeos idênticos, homem e mulher”. A cena de rejeição de Vedina é relacionada com a história de Caim. Uma rejeição inicialmente de Deus, que não aceita a oferta, mas também uma rejeição de Caim ao irmão, que não foi rejeitado assim como ele. “É um sentimento de raiva com o qual ele não sabe lidar. Então, também foram essas as pistas, e aí que eu começo a olhar muito para essas forças, para esses acontecimentos, e vou trazendo a história”.
Confira a entrevista que o Le Monde Diplomatique Brasil realizou com Carla Madeira, conversando sobre as três obras de sucesso da autora e também um projeto futuro.
Tudo é Rio tem como temas principais o amor e a tragédia. Quando finalizou a escrita do livro, você conseguiu concluir a relação entre esses dois sentimentos?
Eu acho que é sempre sobre o amor ou a falta dele. Acredito que as tragédias são atravessadas e influenciadas pelo amor, e só assim existe o sentimento da dor. Quando respondo essa pergunta estou ampliando o sentido de amor, sem tratar apenas do romântico. Um exemplo, para mim são as questões climáticas, elas são trágicas, porque amamos esse mundo que tem floresta, rios limpos e animais. Então, é trágico ver tudo isso, não só porque vamos morrer, mas também porque é tão bonito. Amamos e queremos isso, é tão bom!
Portanto, acho que, para mim, o amor e a tragédia tem uma relação inseparável, como se fosse luz e sombra. A coisa da tragédia supõe uma perda, uma dor, um corte, uma fatalidade em alguma coisa que você queria que continuasse a existir.
A vida de Lucy foi inspirada em algo?
Não, não em alguém objetivamente. Eu acredito que me inspirei numa somatória de experiências que eu tive com esse simbólico da “prostituta desejada”, inclusive na nossa própria literatura. Essa coisa da mulher inatingível, que provoca uma sexualidade fálica, fora do controle, eu acho que isso está em muitas narrativas que herdamos. Nas histórias de Dona Beija, e de tantas outras mulheres cortesãs, as prostitutas de Jorge Amado, existem muitas referências.
Como a infância de Venâncio influenciou no desenrolar de todo o seu papel na história?
Influenciou muito. Tem a ver com esse primeiro lugar que a gente chega, essa coisa do pai violento, que o assustava e o envergonhava. Ou seja, era sempre um lugar de dor, inseguro, onde havia violência. Acredito que diante dessa violência, ele cresceu com uma falta de recurso nesse lugar do afeto e do amor. Talvez isso tenha sido um certo padrão que ele precisou desenvolver diante da figura do pai, podemos até chamar de um nível de defesa. E a defesa com esse pai violento é, de uma certa forma, reproduzir a própria violência.
Como você descreveria a personalidade de Dalva? E quais características a definem durante o enredo?
Dalva, em primeiro lugar, vem de uma família muito estruturada, tem uma mãe muito serena, justa e resolvida. Essa figura materna que tem uma aceitação com o outro, com os filhos, também com o que tem que ser feito. Na casa onde cresceu havia o exercício do amor e da confiança. O oposto de Venâncio por quem ela se apaixona, e como toda garota jovem, tem uma visão romântica desse amor, deles se bastarem, daquela troca intensa. Quando a família muda de cidade, o casal se fecha mais ainda numa bola. E aí, quando ela vive a violência, acaba vivenciando uma complexidade de sentimentos e possibilidades.
No primeiro momento, eu acho que tem uma impotência, ou seja, ela quer sentir, ela está com ódio dele, mas ela quer que ele veja esse ódio, ela não quer ir embora e carregar esse ódio para longe. Outra coisa é uma frustração de uma relação onde ela colocou muita energia, ela acreditou, investiu muito amorosamente. Será que então acabou? Será que é para acabar? Dalva sente a dor do fim, existindo uma negação, uma relutância. Tem uma passagem do livro que fala que ela poderia ter feito muitas coisas: ter denunciado e se apaixonado por outro. Mas, ela fez o que ela deu conta e naquele momento em que ficou paralisada por essas forças, da raiva, da frustração, do amor que acaba, da falta de desejo de estar exercitando esse ódio.
Quando ela já sabe o que aconteceu, porque pouco tempo depois da tragédia ela já sabe que o filho está vivo, é nesse momento que ela não consegue mesmo ir embora, porque é como se a dor da perda do filho tivesse sido apaziguado, mas a dor da perda daquele amor, a decepção, daquela traição do Venâncio, a tudo que eles tinham construído, aquilo ali estava completamente sem saída para ela.
Eu acho que ela é uma mulher que, embora tenha sido vítima de uma agressão, ela não se coloca como vítima. Dalva pega as rédeas da situação e vai ser o tempo dela, o tempo que ela precisa para sair daquela paralisia. O que é importante na história é o movimento do perdão. O perdão definido como alguma coisa mais em direção à vítima, ou seja, cessar o ódio dentro dela, para que ela saia da paralisia e também não fique na mão do agressor. Não necessariamente continuar junto ou não continuar junto, porque o livro acaba nesse lugar.
Não tem como saber se eles continuaram juntos. Tudo é rio acaba em aberto: “O caminho alagado trazia a promessa dos corpos úmidos. Deus estava de volta”.
A natureza da mordida explora uma dualidade entre instinto e razão nas relações humanas? Você acredita que essa luta existe?
Acredito que essa luta existe porque o corpo opera numa lógica própria. A relação que eu faço, que não é minha, é uma relação que a biologia faz, e eu acho muito bonita, que a emoção é no corpo. É esse corpo que sente, deseja, tem apetite e que sofre o que sente.
A emoção está no corpo, e a razão é uma busca de coerência para esse corpo na dimensão social da linguagem. Ou seja, a gente sente no corpo e fica tentando elaborar, explicar, entender, limitar, controlar, pacificar. Quando vemos um filme de terror, sentimos aquele medo enorme. O Oliver Sacks, um neurologista, diz que a emoção que a gente sente, o nosso corpo não sabe distinguir se ela é de uma experiência primária ou de uma experiência ficcional. Pode ser na ficção ou pode ser na vida real, que vamos sentir da mesma maneira, no mesmo lugar. Você vê um filme de terror, fica apavorado, sente um medo danado. Mas no fim, a razão vira para você de alguma maneira e fala “tudo bem, isso é um filme, isso não é verdade” e voltamos ao equilíbrio do corpo, essa é a dinâmica o tempo inteiro.
Se você tem um desejo, por que você não pode ter um desejo? Isso acontece no Édipo, é direto, a coisa está posta. O filho quer a mãe, não pode, porque a mãe não é do filho, a mãe é do pai. Então, esses instintos, essa força da natureza, essa força do corpo, ela é o tempo inteiro trabalhada pela razão, pela civilização, porque nós somos seres civilizados. Nós temos que ter acordos do que pode e do que não pode, e não sair fazendo tudo que o nosso corpo deseja. Então essa relação para mim, e a natureza trabalha isso, A natureza da mordida é essa.
Em quais momentos da história os personagens demonstram um crescimento significativo?
Acredito que é quando a história começa a se desenvolver, porque é nesse momento em que os personagens começam a aparecer. No começo a gente não sabe o que tá acontecendo, só depois passamos a entender o porquê daquelas duas vidas, a da Olivia e da Biá terem se cruzado.
Inicialmente, o que a gente tem são emoções. Sabemos que tem uma dor, uma tristeza, que tem algum acontecimento que impactou, mas sem as circunstâncias. Então vamos nos perguntar “O que aconteceu?”. Quando eu estava escrevendo, a mãe da minha sócia estava num processo de Alzheimer, ela sempre chorava no final do dia, tinha uma dor terrível, uma angústia muito grande, pedia para ir para casa, só que ela estava em casa. Então naquele momento, ela só tinha dor, sem nenhuma circunstância. Mas já não reconhecia a si mesma.
A Biá perdeu a história dela, esse era um pouco o sentimento que eu queria provocar: você tem a dor, mas na hora, a gente tem muita aflição em não compreender o que está acontecendo. Eu me utilizei dessa crença, que na medida que você vai conhecendo as circunstâncias do outro, você também vai criando recursos para ter empatia. ‘Quem é essa mulher doida que fica incomodada, que eu estou sentada na cadeira dela?’ Mas aí você começa, não, espera aí. Poxa, agora eu estou começando a entender quem é essa mulher e ela está me ouvindo. Ali começa um processo de análise de escuta e eu acho que a história fica mais confortável para o leitor na hora que ele entra no jogo.
No “O dia seguinte não importa, Olívia. Importa o resto da vida. Importa o que não pode ser desfeito” fica claro que o assunto em questão é o passado, como foi pra você trabalhar com esse tema?
Diferente de Tudo é rio, as personagens principais iniciam na história trazendo o passado. Mas, é algo que já aconteceu, porém, não parou de acontecer. É quando o passado não consegue ser passado, e também não consegue permitir que o presente exista. Então, o que é o outro lado da moeda, assim? Não consegue ser passado, quer dizer, eu não consigo seguir em frente e deixar aquilo para trás. Lógico que nunca o passado é uma coisa que ficou para trás, porque somos resultado do que vivemos. Só que ali na história das duas, como na história de Olívia, como na história de Dalva, como na história de Vedina, existiu um acontecimento.
Qual foi a importância de iniciar a história de “Véspera” com uma pergunta (Como se chega ao extremo?)?
Véspera tem três eixos narrativos. Inicia com o eixo do narrador, que é o começo e o fim, é o que atravessa toda a narrativa, porque o narrador é o sequestrador, e quem comete um ato extremo. Além dele, Veneza comete um ato extremo e assim como na história bíblica, Caim cometeu atos extremos.
Originalmente, eu pensei que o livro se chamaria ‘Extremos’, então, essa pergunta foi uma coisa que eu lancei, e que vai atravessar toda a história. Essa é a grande questão: Como se chega ao extremo? Aí estão às vésperas. O motivo de começar com isso é porque o próprio narrador está se implicando, é como ele contou essa história, que ele foi quem viu os acontecimentos, a fotografia, leu os depoimentos.
Como foi o processo de criação da capa de Véspera?
A capa de Véspera é uma capa feita pelo designer Daniel Jesus. Ele é amigo meu, um designer com quem eu trabalhei muitos anos e foi muito impressionante quando ele trouxe essa ideia de movimento. A pré-explosão, é a véspera da explosão, a véspera do vulcão que não pode ser contido, que arrebenta. Então, ele trabalhou com esse pensamento. Eu acho a capa linda, essa é uma capa que eu adoro. Ela mostra a força que tem essa história. Uma coisa que vaza, que explode. Algo deve vazar antes de explodir, é assim como acontece nas tragédias, algo violentíssimo. Não começa no ato, ela vem de longe.
Em relação a essa nova obra, ela traz aspectos parecidos com as três últimas ou ela vai ter algo completamente novo? E como está sendo o processo de escrita?
Novamente tem as questões familiares, a maternidade, mas dentro de um outro acontecimento. O que está sendo mais novo para mim é o jeito de contar, que vai ser mais formal. Eu estou fazendo uma polifonia, falando sobre algo que somos capazes e sobre as nossas circunstâncias que muitas vezes são atravessadas pelas nossas questões remotas, familiares.
Eu gosto muito de escrever, mesmo que eu esteja num momento difícil do livro, porque eu não estou encontrando as saídas, porque estou insegura com as escolhas, para mim é um prazer estar escrevendo. Sempre tem um gozo, é onde eu vou dedicar meu tempo, e assim me divirto.
Maíra Oliveira Graça é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.