A ficção se aventura pela psicanálise
Obras de autores como Philip Roth, Jacques Fux e Carla Madeira ganham novas camadas ao utilizar conceitos psicanalíticos de forma direta e aprofundada
Desde Freud, a literatura tem ocupado um importante papel no campo da psicanálise. São muitos os livros, ensaios e artigos científicos que propõem discussões psicanalíticas a partir da obra de escritores como William Shakespeare, Johann Wolfgang von Goethe, Virginia Woolf, Thomas Mann, William Faulkner e Sylvia Plath. Dentre os representantes da literatura brasileira, nomes como Clarice Lispector, Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Caio Fernando Abreu e Lygia Fagundes Telles figuram entre os que mais aparecem em trabalhos acadêmicos na área.
A relação entre os dois campos, no entanto, está bem longe de ser unilateral. Da mesma forma que estudiosos da psicanálise têm se debruçado sobre a literatura, ficcionistas têm encontrado em conceitos psicanalíticos uma rica fonte para compor personagens, narrar histórias e estabelecer conflitos.
Essa “troca” não é novidade. O austríaco Arthur Schnitzler já discutia em peças, contos e romances conceitos como o desejo e o universo onírico, ao mesmo tempo que Freud fazia suas principais descobertas sobre o inconsciente. Não por acaso, décadas mais tarde, o tcheco Milan Kundera afirmou que “o romance conhece o inconsciente antes de Freud.”
Com o passar dos anos, os diálogos com a psicanálise se tornaram mais explícitos em diversas obras literárias. Um bom exemplo é “O complexo de Portnoy”, clássico do estadunidense Philip Roth publicado em 1969. No romance, o advogado Alexander Portnoy aborda, no divã, traumas ligados a questões como a infância repleta de superproteção materna, a adolescência resumida a constantes masturbações, o casamento desfeito e a impotência sexual.
Marcada por um humor que transita entre o ácido e o escrachado, a obra causou polêmica quando foi lançada, mas não demorou a conquistar seu espaço entre o público e a crítica especializada.
Também foi pelos caminhos do humor que Luis Fernando Veríssimo criou, no início da década de 1980, “O Analista de Bagé”, um psicanalista gaúcho nada convencional, que mescla conhecimentos pseudocientíficos e sabedoria popular em histórias curtas que beiram o nonsense.
Já o estadunidense Irvin D. Yalom propôs uma abordagem diferente, ao publicar, em 1992, “Quando Nietzsche chorou”, romance que narra encontros fictícios entre o filósofo Friedrich Nietzsche e o médico e fisiologista Josef Breuer, um dos mentores de Freud. No livro, Nietzsche procura Breuer na expectativa de encontrar um tratamento para sua crise existencial. Breuer, por sua vez, está obcecado por Anna, uma jovem de quem tratou – e que na vida real desempenhou um importante papel nos estudos de Freud sobre transferência e contratransferência.
Irvin D. Yalom não parou por aí. Em 1996, publicou “Mentiras no Divã” e em 2005, “A Cura de Schopenhauer”, livros que, assim como o anterior, abordam temas diretamente ligados à psicanálise e que entraram para as listas dos mais vendidos em diversos países.
Perda, transmissão e silêncio
Mais recentemente, a literatura brasileira voltou a se atentar a questões diretamente ligadas à psicanálise. Jacques Fux, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, talvez seja o melhor exemplo disso. Apenas nos últimos anos, o autor publicou dois romances com fortes ligações com esses temas.
Em “Herança”, de 2022, três gerações de mulheres abordam o holocausto, a partir da subjetividade proporcionada pelos olhares e vivências de cada uma. São três narradoras bem diferentes entre si, ainda que compartilhem o laço sanguíneo e a relação com um dos acontecimentos mais nefastos da humanidade.
Uma dessas personagens é Clara, nascida no Brasil, em 1949, e filha de Sarah, judia que esteve em Auschwitz. Durante suas sessões de análise, em meio a associações livres, ela aborda o desconforto diante dos silêncios da mãe e encara seus traumas mais profundos.
Já “Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer”, de 2023, traz uma espécie de acerto de contas entre um casal recém-separado. Na obra, o escritor Jacques e a atriz M discutem o relacionamento a partir de conceitos que passam por ego, recalque, pulsão, desejo e sublimação.
Embora os dois livros tenham sido publicados nos últimos anos, o interesse de Jacques Fux pela psicanálise não é recente. “Acredito que tudo tenha surgido já no meu primeiro livro ‘Antiterapias’. Não é um livro ‘contra’, mas um livro que se propõe, entre outras coisas, a pensar no que seria uma análise e no que seria literatura. A literatura é algo estético que contorna, margeia e também acessa algo que a psicanálise teoriza. E o ‘Antiterapias’ também dialoga com ‘O complexo de Portnoy’, do Roth, que coloca um personagem no divã. Passei a explorar esses temas em todos os meus livros: ‘Brochadas’ falou da sexualidade; ‘Meshugá’, da loucura, e ‘Herança’ e ‘Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer’ sobre perda, trauma, transmissão e silêncio. Também há o ‘As coisas de que não me lembro, sou’ e ‘Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia’, que tratam das memórias que perdemos”, conta o autor.
Leitor assíduo de grandes autores da psicanálise, Jacques Fux faz pesquisas profundas antes de levar os temas para suas obras. “Sempre leio muitas teses de doutorado e livros acadêmicos. Meu pós-doutorado foi sobre a questão do testemunho, da transmissão, do silêncio que perpetua nas relações. E como não falar implica em criar – mas uma criação que causa sofrimento, a proposta desses dois livros é falar, elaborar para poder interromper o ciclo de dor – ou para ‘esquecer’ e superar um trauma amoroso.”
Carla Madeira, uma das autoras que mais vendeu livros no Brasil em 2023, é outro nome da literatura brasileira contemporânea que mergulha na psicanálise. Seu livro “A natureza da mordida”, publicado em 2018 e relançado em 2022, narra a história de duas personagens que se conhecem em um sebo improvisado: a psicanalista aposentada Biá e a jovem jornalista Olívia.
Conforme o romance avança, as duas desenvolvem uma profunda amizade e percebem traumas em comum, ligados, especialmente, ao abandono. Página a página, grandes temas da psicanálise (e, claro, da humanidade) ganham força e levam leitores a profundas reflexões sobre os conflitos internos vivenciados por essas personagens.
Entre o trauma e o desejo
Para o psicanalista Fábio Belo, professor associado do Departamento de Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), são muitos os fatores que contribuem para que escritores insiram personagens psicanalistas ou temas ligados à área em suas obras. “De forma geral, o analista sempre vai aparecer na mídia, nos filmes, nos livros, nas histórias em quadrinhos, inclusive. A figura do analista, de alguma maneira, é uma versão laica daquele confessionário, dos lugares de confissão do padre, das figuras religiosas, frente às quais ou para as quais, a gente endereçava os nossos desejos mais íntimos, mais secretos, vergonhosos muitas vezes. Isso atrai a atenção e o interesse das pessoas de saber o que o analista pensa, como ele vive, como ele dá conta dessa prática.
Em relação aos tópicos que aproximam as obras literárias da psicanálise, Fábio Belo lembra que dois deles são fundamentais para a análise: o trauma e o desejo. “Quando os romances tratam desses temas, a psicanálise também parece estar, de alguma forma, convocada. O próprio Freud associa a fantasia e o sonho à escrita literária em um texto muito importante de 1908, chamado ‘O poeta e o fantasiar’, em que sugere essa aproximação no sentido de que todos nós, em alguma medida, somos poetas quando sonhamos ou quando fantasiamos. A diferença é que os poetas, os grandes escritores, detêm a técnica da escrita e, assim, autores como Jacques Fux e Carla Madeira trazem à superfície temas tão caros à análise, como os traumas, os desejos, as fantasias e os sonhos.”
“O escritor tenta resolver seu trauma por meio da escrita. E isso, por sua vez, reabre a possibilidade de tradução e elaboração dos traumas dos leitores. Dessa forma, quando o leitor tem contato com os elementos da vida psíquica do personagem, a obra literária pode reabrir os seus próprios enigmas, os seus próprios sonhos e seus próprios sintomas.”
Em meio a ataques
As aproximações entre literatura e psicanálise, evidentemente, não param por aí. Recentemente, inclusive, ambas passaram a enfrentar tentativas de descredibilização e até mesmo censura.
Nos últimos dias, por exemplo, um ofício do Núcleo Regional da Educação de Curitiba determinou o recolhimento de exemplares do “Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, de todas as escolas da capital do Paraná. A obra, vencedora do Prêmio Jabuti, discute, entre outros temas, o racismo e a violência policial.
Algumas semanas antes, familiares de detentos denunciaram que um presídio em Belo Horizonte (MG) impede a entrada de obras literárias. Segundo as testemunhas, apenas a Bíblia e obras de autoajuda estão autorizados a circular pelo local. Já no ano passado, o livro “Que Bobagem!”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, classificou a psicanálise como charlatanismo.
Para Fábio Belo, as motivações para os ataques têm origens parecidas. “Ao possibilitar infinitas traduções para o desejo, a arte é um dos alvos prediletos da teocracia ou do fascismo da extrema direita. A arte, por definição, é o campo do indefinido e daquilo que, virtualmente, é eternamente novo. Não há limite, a princípio, para criatividade humana. A gente pode inventar os mundos mais diversos, diferentes, múltiplos. Isso é o horror da extrema direita. Esse é o horror da teocracia. A teocracia quer um mundo só e apenas um. Ela tem horror à diferença.”
“A arte e a psicanálise têm em comum a acolhida sistemática e muito vigorosa da diferença do devir outro. Uma acolhida de uma alteridade interna que a psicanálise considera sempre enigmática e para sempre irredutível a qualquer identidade. A alteridade do inconsciente não pode ser reduzida a nenhuma identidade. Ela pode vir a ser qualquer coisa. Os nossos desejos não têm nomes prontos, naturais, estáveis no tempo, ligados à biologia ou ao instinto. A nossa essência é não ter essência, é um desejo múltiplo que visa um devir sempre outro. Isso é o horror da teocracia, da extrema direita, do fascismo. Então, o alvo precisa ser sempre atacado. Tanto a psicanálise quanto a literatura, a arte de qualidade, geralmente vão ser alvo de ataque e de ódio, principalmente dessas pessoas que estão abduzidas, alienadas de forma muito radical a um projeto de essencialização do desejo humano.”
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.