Carnaval: de revisionismo histórico ao valor político da história
O fato é que novas interpretações e novas narrativas do passado são sempre possíveis, mas não podem ser puramente subjetivas ou tendenciosas: devem respeitar os critérios metodológicos que fazem da historiografia uma ciência
Diante das crescentes referências ao fascismo, o que nos leva a questionar o valor da história e a procurar um caminho entre os que negam acontecimentos do passado e os que permanecem neles ancorados sem elaborá-los, o carnaval brasileiro, já há alguns anos, vem sustentando um tipo de narrativa da história oficial, explorando cartografias das culturas afro-brasileira e indígena, que se configura como um verdadeiro revisionismo da nossa história.
Desde a década de 1940, nos desfiles das agremiações cariocas, há a obrigatoriedade de que os enredos das escolas de samba estabeleçam relação com a história e a cultura do Brasil. “Exaltação a Tiradentes” (Império Serrano, 1949), “Xica da Silva” (Salgueiro, 1963), ou momentos relevantes do país e de suas regiões, como “Aquarela brasileira” (Império Serrano, 1964) homenageando o clássico Aquarela do Brasil, de Ary Barroso.
Porém, os temas que, de modo geral, versavam sobre motivos e personagens brasileiros como mencionado, nos últimos tempos também começaram a explorar uma retórica violentamente antagônica ao retorno demonizador do fascismo, propondo, assim, uma reflexão sobre o valor político da história e sobre um novo projeto de Nação.
Heróis da Liberdade (Império Serrano, 1969) foi lançado dois meses depois da emissão do AI-5, durante a ditadura militar. Pedindo o fim da tirania, o samba homenageia aqueles que lutaram por liberdade ao longo da história brasileira. Também o fazem o “Onde o Brasil aprendeu a liberdade” (Vila Isabel, 1972), “Os Sertões” (Em Cima da Hora, 1976), que abordam a Guerra de Canudos e exaltam os rebeldes e, mais recentemente, a Paraíso do Tuiuti com o enredo “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?” (2018), “História para ninar gente grande” (Mangueira, 2019) e “Brava Gente! O grito dos excluídos no Bicentenário da Independência” (Beija Flor, 2023). Estes últimos não só recolocam personagens históricos como Pedro Alvares Cabral, Dom Pedro I e a Princesa Isabel, re-pintam o famoso quadro de Pedro Américo, recentemente exposto ao público no Museu do Ipiranga, mas substituem os retratados por heróis vindos das camadas populares, como Cunhambebe, Maria Felipa de Oliveira, Chico da Matilde etc.
No entanto, este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. O revisionismo histórico também faz parte da agenda política de muitos países há muitos anos. Parece que um dos grandes e inquestionáveis desafios do conhecimento no século XXI é a necessidade de reescrever a narrativa de nossa civilização e compreender a história mundial sob um novo prisma, incluindo termos como ecocídio, clima, extinção e genocídio na história da nossa civilização.
A história biológica e ecológica do nosso planeta foi modificada pela cultura do Homo sapiens que, ao longo de dois milhões e meio de anos, evoluiu juntamente com o clima, as plantas, os animais e a geologia da Terra. Essa consciência, que doravante marca o modo como a civilização humana elaborará sua imaginação e inventividade, também está chegando aos museus. Uma reinterpretação crítica de formas, simbolismos e figuras coloca-se como fundamental não só para melhor compreender quem fomos nos últimos séculos, mas sobretudo de onde vêm as questões mais graves que hoje se colocam à mesa.
O primeiro elemento que não se deve perder de vista é que a narração do passado representa o terreno da luta política que, hoje e sempre, para se transformar e ser reconhecido, deve oferecer uma justificativa no presente.
O fato é que novas interpretações e novas narrativas do passado são sempre possíveis, mas não podem ser puramente subjetivas ou tendenciosas: devem respeitar os critérios metodológicos que fazem da historiografia uma ciência.
Em alguns casos, a história parece perder qualquer referência à verdade e a seu método, feito de uso crítico de fontes e comparação de documentos; parece perder seu poder diante daqueles que afirmam utilizá-la instrumentalmente, ou seja, sem aplicá-la, em primeiro lugar, para seus próprios argumentos.
Impõe-se o que Habermas chamou de “uso público da história”, ou seja, um uso político. O efeito, porém, é que se pede à historiografia não apenas o conhecimento do ocorrido e uma reconstrução asséptica dos fatos – admitida e não admitida que pudesse existir -, mas um juízo moral e político que justifique o presente a partir do passado ou, ao contrário, que legitime aspirações de mudança da ordem social e política.
Os resultados do século XX exaltam essa dinâmica e a necessidade de estarmos conscientes da força e ambiguidade da historiografia. Por um lado, o século das ideologias experimentou, mais do que qualquer outro, como a história pode ser manipulada, ocultada e distorcida para fins políticos; por outro lado, os processos de descolonização política e de libertação cultural deixam claro que os sujeitos da história são muitos, cada um com direito de contá-la a partir de seu próprio ponto de vista. A narração da história pelos oprimidos, como mulheres ou minorias de todos os tipos, não é a mesma que é contada pelos poderosos ou “vencedores”, exigindo inclusive o uso de palavras diferentes. Só para dar exemplos, em 1992 comemoramos 500 anos do descobrimento ou conquista da América pelos europeus? Ou ainda, o que representa o próximo 31 de março para a história do Brasil?
Vela recuperar a noção de Antropoceno, termo usado a partir dos anos de 2000 para designar uma nova era geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra, um desafio não apenas para as artes e as ciências humanas, mas também para nossa forma habitual de ver as coisas e para a cultura contemporânea em geral. Não há dúvida de que esse desafio surge da complexidade da linguagem técnica que usamos como lente primária sobre as mudanças, mas certamente também deriva das práticas e pressupostos que orientam as artes e as ciências humanas. Estabelecer como tudo isso acontece é, creio eu, da maior urgência: pode até ser a chave para entender porque a cultura contemporânea tem tanta dificuldade em abordar questões basilares.
Portanto, não basta dar espaço para que a memória dos protagonistas transmita os valores da resistência que estão na base da Constituição republicana. Com suas diferenças e discórdias, as memórias podem dividir muito mais do que unir. Da mesma forma, no nível coletivo há necessidade de um trabalho que evite o que o filósofo francês Paul Ricoeur chama de “patologias da memória” em sua obra Memória, História, Esquecimento (La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éditions du Seuil, 2000). Por um lado, “insuficiência “, ou seja, um esquecimento que gostaria de fingir que o passado não existe; por outro, seu excesso, que esmaga o presente sobre o passado.
No primeiro caso, de modo mais ou menos consciente e responsável, o passado é silenciado, ocultado, posto de lado. Mas quando o passado é feito de injustiças, essa operação prende as vítimas à sua condição e a perpetua, abrindo espaço para a repetição do ocorrido e impedindo-nos de confrontar as causas do mal que contém.
Diante dessas tentativas, devemos nos perguntar qual é o objetivo daqueles que negam ou menosprezam a violência do passado nazista e fascista. Para onde querem ir? O mesmo discurso, fazendo as devidas distinções, vale para todos os “pedaços” de história que, como sociedade, não queremos recordar e procuramos manter encerrados no armário ou em algum arquivo secreto, protegidos por omissões e segredos de estado. Quais as razões e, sobretudo, quais podem ser as consequências desse esforço ou mesmo da recusa em se conformar com o passado?
O excesso, contrário ao esquecimento, é um apego que não aceita a fragilidade da memória e a transforma numa espécie de totem que impede o que, em termos psicológicos, se chama “trabalho de luto”: o passado não é entregue à história. O presente é esmagado pelo peso do passado e, portanto, não pode gerar o futuro.
Diante dessas patologias, surge a questão de como desenvolver uma ética e uma política de memória correta, que torne o passado gerativo, permitindo a expressão e apropriação dos valores e significados daqueles que foram protagonistas dele, como vários sambas-enredos abordaram, bem como o reconhecimento dos valores negativos e contradições que suas ações concretas nos entregam. Não se deve desistir, sobretudo pelas dificuldades que surgem. O trabalho de memória é um passo indispensável para a construção da identidade de qualquer nação, povo ou grupo humano. Através da narração e da celebração, a memória individual dos protagonistas adquire uma dimensão social e pode tornar-se a base de uma experiência compartilhada de sentido e, portanto, encontra uma perspectiva na qual todos se reconhecem e da qual todos participam na construção do futuro.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).