A centralidade da luta pela saúde pública
Leia o quarto artigo da série do Le Monde Diplomatique Brasil com análises de militantes de movimentos sociais inspiradas nas manifestações pela democracia e contra Bolsonaro realizadas no dia 7 de setembro.
Brasil, janeiro de 2021, “dia velho” em nosso cenário pandêmico: a crise explode novamente na região norte do país. Temos um general paraquedista no Ministério da Saúde enquanto cientistas e epidemiologistas permanecem na “reserva”; somos milhares de mortos, muitos enterrados em vala comum. Diz-se do Planalto que “Deus está acima de todos” – mas sem rito e sem vela. Os Mortos de Manaus, sem leitos, sem o atendimento dos trabalhadores capacitados da saúde, sem oxigênio, ganham subitamente os noticiários e “escandalizam” o país. Como solução, o Ministério da Saúde lança operativos neoliberais (uma “promissão” capaz de alijar o Trabalho?). Tratecov é o aplicativo que gera receitas médicas a partir de uma “entrevista” digital. Clique nos sintomas e debite sempre o kit covid!
No cotidiano institucional da Saúde a situação está tensa, principalmente porque o trabalho se encontra ainda mais alienado que o de costume. Estamos sem comando centralizado de Estado – público e nacional – para ações de conjunto e concernentes à cada um dos setores de gestão, incluindo o setor privado. Muitos, em maior ou menor grau, respondem de modo “autônomo” às imposições e “brechas” de ordem econômica ou política. Todavia, quase sempre concordando no seguinte aspecto: o capital não pode parar.
Na contracorrente, por meio das redes sociais, trabalhadores e trabalhadoras da saúde denunciam o real tamanho da negligencia federal. Fazem o possível “virando plantões”, articulando leitos e improvisando “estrutura” de atendimento. Em Manaus familiares e amigos das vítimas trazem tubos de oxigênio em garupas de motos e em caçambas de caminhonetes. Isso demostra que a “promissão” não vingou hegemônica diante da concretude das relações humanas. As bases dos serviços saúde e das instituições de referência científica é composta também por habilidosos e resistentes trabalhadores. São eles que operam algum grau de resistência, contrapondo-se à velada política eugênica encampada por setores não apenas fascistas, mas também neoliberais.
Essa resistência é traduzida por lutas de caráter nacional, por comitês regionais científicos e outros que já se articulam, como a Frente pela Vida, os Conselhos de Saúde, o Comitê Científico do Consórcio Nordeste, Sindicados da Saúde, o Projeto Mandacaru etc. Cumprem o papel de confrontar, dentro dos limites institucionais a posição do Governo Federal, em diversos níveis – do kit covid às vacinas, assim como as táticas de controle preventivo da pandemia.
Na arena, uns defendem o distanciamento social, a vacinação, protocolos científicos e seguem aguerridos nas redes sociais denunciando os absurdos; outros aderem à tendência comercial, contra o lockdown , descartam a vachina e promovem as fake news; já um terceiro grupo prima pelo pragmatismo do “agregado”, aquele que “opina obedecendo”, acatando o que a gestão determina e realizando o mais concreto produto do trabalho alienado – como uma esteira de produção em série -, distribuindo carimbos sem nenhuma avaliação propedêutica e cientificamente amparada.
É nesse contexto que a Frente da Saúde Pela Vacinação Pública (FSVP) nasceu, com a visão de agrupar uma ampla variedade de categorias da saúde e com o objetivo de confrontação às práticas do bolsonarismo e seus efeitos. Desde o seu início, contou com o trabalho militante e solidário de diversas pessoas, de distintos âmbitos da saúde, que trocavam e seguem trocando contatos telefônicos e convidando colegas, para formar uma rede tão extensa quanto o tamanho da vontade de transformar o estado de coisas. Rapidamente reuniu sindicatos, departamentos acadêmicos, conselhos de classe, movimentos sociais e trabalhadores independentes -todos vinculados ao setor saúde.
A Carta de Princípios da FSVP orienta a direção do combate ao fascismo e suas práticas eugênicas, assim como confronta as vertentes neoliberais de permeio, fortemente inseridas na superestrutura brasileira. Contemplou os princípios essenciais: 1. Direito e Garantia à Vacinação Pública; 2. Defesa do SUS e do seu caráter público, universal, integral e com controle social pelos trabalhadores e trabalhadoras do país; 3. Defesa da ética no exercício da profissão, respeito dos membros ao princípio da não maleficência; 4. Compromisso com a ciência enquanto metodologia norteadora das práticas em saúde; 5. Defesa da Quebra das Patentes e transferência e descentralização produtivas das vacinas para todos os povos; 6. Defesa das Instituições Públicas de Pesquisa Brasileiras como forma de autonomia, em busca da Soberania Nacional e da proteção integral da saúde da população.
Unificados por estes princípios, os integrantes da FSVP deram início à disputa nas redes sociais, construindo debates distintos, mas sempre em torno de temas relativos à Covid-19, vacina, monopólio de patentes. Para a sua divulgação, contou com a parceria de canais que se agruparam para a transmissão conjunta e simultânea dos encontros virtuais. Entre estes estavam a mídia alternativa (DCM TV, Opera Mundi e Tutaméia TV) com maior alcance de público, os canais sindicais e de movimentos sociais que compõem a FSVP (Sinsprev, Sindsaúde, Simesp, Morhan Nacional e Asfoc-SN) e também canais de movimentos e sindicatos apoiadores da frente (como o Sinasefe-SP, o Fórum Popular da Natureza, o MST e a Frente de Lutas das Trabalhadoras e Trabalhadores do Noroeste Paulista- FLTTN).
Tal composição permitiu a convocação de debatedores de distintos ramos – intelectuais da saúde, quadros políticos, jornalistas e militantes de movimentos sociais. Reflexões variadas ganharam peso, chegando à radicalização, sempre úteis ao público das mídias independentes, às bases sindicais e aos membros da Frente. A abordagem dos temas e avaliações são sempre complexas, mas nunca se desviam dos debates mais acirrados – tais como a abertura precoce das escolas, a desigualdade vacinal entre o centro e a periferia do capitalismo, a privatização das vacinas, a conversão industrial para a produção de vacinas e insumos, a quebra das patentes das vacinas anti-covid etc. Foi possível realizar o debate ecológico causal a respeito da pandemia e sobre as disputas com o sistema privado – uma tentativa de aparelhamento do Plano Nacional de Imunização por “coronéis” do setor produtivo que queriam obter o direito de importação e comercialização internacional de imunobiológicos humanos para vacinar funcionários, ou forjando “jurisprudência” ao setor privado com o intuito de comercializar as vacinas contra a covid no Brasil.
Nas articulações de mobilização regional, a FSVP de imediato aderiu às lutas nacionais do campo democrático-popular, apoiando o calendário nacional de lutas e participando das carreatas e dos atos da Campanha Fora Bolsonaro. Enfatiza o genocídio por meio de cartazes com as fotos e os nomes das vítimas da covid – tendo por referência as lutas das Mães de Maio, brasileiras e argentinas. Os membros da Frente são persistentes e marcam já presença em algumas capitais e cidades do interior de São Paulo, mas nota-se ainda alguma resistência em relação à atuação nas ruas. As razões são muitas: desde as restrições pandêmicas, como o medo e paralisia de ação por conta dos avanços fascistas, alguns talvez questões vinculadas a uma posição não militante.
No âmbito da luta internacionalista, a FSVP participa da construção da Plataforma Mundial de Luta pelo Acesso Universal às Vacinas Anti-Covid, uma articulação em continentes distintos, com a participação de organizações ativistas, partidos políticos de esquerda e coletivos militantes que reivindicam sobretudo a quebra das patentes das vacinas e sua descentralização produtiva para o acesso igualitário a todos os povos do mundo. Nesta inserção buscamos enfrentamento no interior do Parlamento Europeu a partir da participação da Iniciativa Cidadã Europeia. E para dar visibilidade à Plataforma em construção, foram realizados três encontros virtuais para a articulação em distintos países.
A barreira entre os que detêm a compreensão científica da realidade se faz agigantada em relação às massas trabalhadoras. A FSVP trabalha para “furar a bolha” e chegar ao trabalhador comum nas periferias e nos espaços de circulação proletária. Para tal, abraçou a tática de criação dos Comitês Regionais de Mobilização da FSVP, que devem se articular junto às frentes locais de luta do campo democrático-popular, de modo a obter ajuda militante e dar apoio às construções territoriais, a partir do desenvolvimento de métodos e ferramentas mais capilarizados nas regiões, municípios, bairros e comunidades.
A FSVP, devido à persistência de seus membros, conseguiu penetrar em bairros periféricos de trabalhadores e consolidar a prática de panfletagem nas UPAs, UBSs, pontos de vacinação, feiras populares e centros comerciais das cidades. Seus panfletos já cruzaram as fronteiras do estado de São Paulo, alcançando diversas capitais, chegando ao Tocantins, Pará, além de cidades do Interior de vários estados brasileiros. Penetrou em todas as regiões de São Paulo- Capital e em muitos bairros: São Mateus, Campo Limpo, cidade Tiradentes, Guaianases, Lapa, Vila Ipojuca, Pirituba, Vila Santa Catarina, Bexiga etc. Pretende estar nas casas de cada bairro, vila e rincão onde a Covid pode se manifestar.
Conta com o apoio irrestrito do Sinsprev, do Sindicato Municipal dos Servidores Públicos de São José do Rio Preto e Região-, da CUT de São José do Rio Preto- SP, assim como da Associação Brasileira dos Médicos e Médicas pela Democracia –SP, Comitê em Defesa do Hospital Sorocabana e membros de independente para que o trabalho de panfletagem se desenvolva. Para esta tarefa, a Frente se une com os trabalhadores da Educação, Assistência Social, Movimento Estudantil, partidos de esquerda, movimentos sociais organizados e está de braços abertos para se unificar com todo e qualquer movimento e agrupamentos que estejam dispostos a levar adiante a sua voz em prol do SUS e da batalha contra a Covid -19 e as políticas genocidas que foram impostas ao país, determinando a morte dos pobres e da classe trabalhadora. Nunca desistirá de estar no campo de batalha por uma vacinação universal para salvar a humanidade das garras da ganância capitalista.
Recém-criada, a FSVP ainda não atingiu seu pleno potencial. Ainda não conseguiu uma atuação mais robusta nos espaços de trabalho da saúde e na expansão dos comitês locais. Contudo, com a certeza e a nobreza dos seus militantes, irá para além de suas próprias propostas iniciais.
A defesa da saúde pública é um dos pilares fundamentais da FSVP. Seguirá reconhecendo os 31 anos do trabalho humano e da luta social para a construção e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), destroçado pelo corte de investimentos promovido pelos oportunistas e corruptos sistemáticos e os de ocasião; reconhecendo o valor dos profissionais de linha de frente que entregam as suas vidas em defesa da população e permanecem trabalhando sem a necessária terceira dose, como medida de reforço para a segurança sanitária, em meio à circulação crescente de variantes como a Delta.
E considera que não apenas a pandemia veio para ficar, como sequer 50% da população foi vacinada com duas doses, logo, é preciso intensificar a campanha pela vacinação em território nacional e a campanha pela quebra de patentes das vacinas anti-covid, para que as pessoas de todos os continentes sejam vacinadas e não somente nos países mais ricos e desenvolvidos. O congresso brasileiro já aprovou a quebra de patentes de vacinas anti-covid, mas as pessoas não se conscientizaram ainda da sua importância e os políticos não se moveram a respeito. O que estão esperando?
A FSVP não se deixa abater pelo cenário político e sequer pelos desmandos de um governo que já indicou nada menos que quatro ministros da saúde e enfrenta uma CPI, no senado. Práticas ilícitas, crimes de lesa-pátria e contra a humanidade praticados por um verdadeiro conluio entre lobistas militares, gestores do Estado, médicos, pastores evangélicos e oportunistas de toda sorte. Não bastassem a rapinagem do orçamento público e a farra das vacinas superfaturadas, assiste-se ao escancaramento das primeiras evidências dos “experimentos secretos”, de cunho mengeliano, que contaram com a participação ativa de renomados planos de saúde na implementação de “protocolos” eugênicos de atendimento aos pacientes e médicos que realizaram “testes” a beira dos leitos, públicos e privados, sem autorização pelo Comitê de Ética – alguns destes gigantes do mercado da saúde seguem disseminando o “vitaminado” kit covid até o presente o momento.
O quadro é escabroso, mas a Frente não tem ilusões. Para conseguir uma vitória contra o vírus, é preciso antes conseguir uma vitória contra um governo que usa da pandemia para suas finalidades mais abjetas, enquanto o desemprego cresce e a fome campeia o país. Cabe aos trabalhadores se organizarem em todo o território nacional e, baseados na unidade, mostrarem disposição e luta nas ruas, nas fábricas, nos serviços públicos, nas escolas e nos bairros para conquistar essa vitória.
Marcela Pontes, médica comunitária da Estratégia Saúde da Família e Comunidade/SUS. É mestre em Ciências pela USP e membro da FSVP. Contato com a Frente através do e-mail: [email protected]
Confira os demais artigos da série inspirada no Grito dos Excluídos 2021
– Mais 590 mil mortes, consciência ética e lutas contra o bolsonarismo em São Paulo, por Samantha Freitas
– Bolsonaro e o golpe, por Frei Betto
– A moradia é a porta de entrada para todos os outros direitos, por Graça Xavier